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Milton Santos (03/05/26 - 24/06/01)

Karla Hansen

Um militante da esperança

No dia 3 de maio de 1926 nascia, no interior da Bahia, o geógrafo Milton Santos, um dos mais importantes representantes do pensamento livre e original da academia brasileira. Foi conhecido primeiro no exterior, onde viveu e se tornou célebre, para só então ser reconhecido no Brasil, quando recebeu o Prêmio Vautrin Lud, em 1994, equivalente ao Nobel na Geografia.

Autor de cerca de 40 livros e 300 artigos científicos, Milton Santos era, sobretudo, um grande humanista que, sem se deixar levar pelo pessimismo comum ao meio acadêmico, acreditava na transformação social e mostrava os caminhos de um outro mundo possível, para além dos aspectos perversos da globalização capitalista.

Numa longa entrevista concedida em dezembro de 1997 - quatro anos antes de falecer, em São Paulo -, a uma equipe de primeira linha de intelectuais da revista Democracia Viva (IBASE), o geógrafo fala de suas ideias, trajetória, infância e da sua condição de cidadão negro no Brasil. Também fala da inserção da geografia nas ciências sociais, de resistência, engajamento, do poder dos pobres e, acima de tudo, ele fala de esperança.

Leia a entrevista, na íntegra:

DV - A geografia é uma ciência que teve origem com os militares. É exatamente uma ciência de guerra. Era vista mais na perspectiva da conquista do que na perspectiva da humanização. Como se deu essa passagem, uma vez que hoje - e o sr. é o melhor exemplo disso - a geografia é um instrumento que pode ajudar na reconquista da cidadania?

Milton Santos - Eu creio que as ciências podem servir para tudo. Não há uma exclusividade do ponto de vista ético de uma disciplina. . verdade que as ciências criadas no fim do século passado tiveram um papel forte na produção de uma série de "ismos", e a geografia faz parte disto. O europismo e a geopolítica têm relação, de um lado, com as guerras, porque levaram os países europeus a se preparar para uma nova guerra. Do ponto de vista da geografia, apareceu na Alemanha e na França esta busca de legitimação o da conquista e da dominação. Então, a geografia também se prestou a esse papel de justificar o imperialismo.

DV - Inclusive os mapas mundi tradicionais e todo mapa é uma deformação da perspectiva - estão centrados na Europa, não é?

Milton Santos - Exatamente.

DV - Então, deformam o resto do globo e tornam a relação entre os povos expressão o da visão europeia e não do que é geograficamente, digamos assim, correto. É uma construção?

Milton Santos - A cartografia é uma representação. Então há a possibilidade de uma escolha. Num livrinho meu o ilustrador pôs o mundo de cabeça para baixo, sugerindo que era o Sul que estava em cima. E o editor, sem desejar perturbar, desobedecer à sugestão do arquiteto que bolou a ideia, pôs a representação o costumeira. Porque a cartografia tem essa ideia de criar um costume, um hábito de viver que tem consequências políticas. Mas a geografia, eu creio, quando decide se inserir nas ciências sociais plenamente, passa a ser conduzida pela ideia de história e pela ideia de totalidade. Aí ela pode ser outra coisa. O geógrafo passa a ter uma visão mais abrangente do mundo e passa a ter a palavra, porque é por aí que as coisas começam e terminam.

DV - Isso me lembrou o primeiro contato da palavra com a geografia, que foi em "Os sertões", de Euclides da Cunha, quando ele começa a descrever a geografia da Terra. Foi a primeira vez em que eu me dei conta de que a geografia é uma paixão. Depois, lendo os seus livros, me lembrei dessa mesma apreensão da geografia.

DV - O sr. falou do território como ator, como conceito...

Milton Santos - Eu poderia entrar na questão por dois níveis. Primeiro, há que ter uma vontade do discurso e há que saber que é através do discurso que a gente torna o trabalho acessível. O trabalho intelectual é feito em dois pedaços, um é a pesquisa propriamente dita, o outro é o discurso, quer dizer, a busca das palavras. Não sei se é o caso de vocês, mas, no meu caso, sair por exemplo do país, como faço religiosamente de tempos em tempos, é essa busca da palavra Essa busca da palavra também pode ser obtida pela leitura de filósofos, quaisquer que sejam. Não precisa ser marxista, não. A gente lê, adapta na pesquisa, faz a leitura de filósofos e aí se reabastece para essa busca de palavras na medida em que lê noções de justiça em grego, em latim, como os psicanalistas pretendem de alguma maneira ser. A diferença é que as palavras para os psicanalistas são inteligíveis, mas apenas para eles. E por seus iguais. (Risos.) Os geógrafos são mais modestos, buscam palavras que possam ser ditas dentro de um ônibus qualquer.

DV - E essa questão do meio ambiente? Como isso renovou ou vulgarizou a geografia? Existem muitas correntes?

Milton Santos - Bem, essa questão do meio ambiente... Isso é apenas uma metáfora. Eu me pergunto se ela chega a produzir conceitos ou se produz apenas o discurso ideológico. Se é uma verdade ou uma meia verdade. Nesse sentido, não creio que a questão do meio ambiente tenha contribuído realmente para fazer avançar o conhecimento do mundo, porque é um tratamento muito forte de uma parcialidade. O meio ambiente nem chega a ser uma subtotalidade. Na realidade, é um tratamento limitativo da questão do meio, do meio ambiente, digamos. O que há é uma maneira de se relacionar com a chamada natureza. Porque não é a relação realmente do homem com natureza. Isso é um equívoco. O homem se relaciona com uma sociedade cheia de espaço, mas não com a natureza. Porque não há dialética do homem com algo que não tem finalidade como a natureza. A natureza não tem finalidade, ela não busca nada. O que faz sentido, no nosso entorno, é que há uma presença humana, ainda que esta presença possa parecer imperceptível. Então, o enfoque do meio ambiente é equivocado, inclusive por isso. Não estou dizendo que não haja gente que procura outra coisa. Mas neste particular, creio que este longo parêntese feito pela enorme força que é dada a esse parâmetro do meio ambiente teria que ser revisto com rapidez, para restabelecer a História. Como é que se produz essa relação entre o homem e a chamada natureza? No nosso tempo a natureza acabou. E nós insistimos em falar na natureza. A discussão desse desgaste de um meio que é resultante de uma forma de produzir, de uma forma de usar o planeta, que é a visão puramente ecológica, induz a uma premissa que conduz o desenvolvimento de forma cada vez mais equivocada. E é essa a razão pela qual os estudos do meio ambiente são os estudos mais financiados no mundo. Os financiamentos só vão hoje para aquilo que não tem interesse, que não permite que o mundo seja visto. Porque o processo de globalização não é resultado do acaso, é resultado de um planejamento extremamente bem-feito.

DV - Uma conversa sua com o Gilberto Gil, no site dele na Internet, sugere toda uma noção de direitos humanos que espetaculariza o humano, mas perde a dimensão o dos direitos do homem. Como é isso? Porque o grande esforço do pensamento sobre direitos humanos recente foi no sentido de ampliar o conceito para direitos econômicos e sociais, para um campo que evite justamente esta espetacularização.

Milton Santos - Para começar, gostaria de dizer que estou consciente dos enormes esforços sobre o plano internacional, vamos dizer mundial, porque a palavra internacional me parece também, difícil, especializada. Sobre o plano universal. Há enormes esforços no sentido de criar uma ética que se torne passível de eficácia através do direito internacional. O problema é que as ofensas a uma ética desejável envolvem uma parte enorme da humanidade e a lista dessas ofensas é muito grande. A maior parte das campanhas sobre direitos humanos reduz alguns itens da lista. Segundo: os sujeitos dessas ofensas, os objetos dessas ofensas são sujeitos diminuídos por elas, aqueles que são objeto de espetacularização Isso sempre tocado por uma mídia, como a internacional e como a que nós temos, que cria um certo sentimento de solidariedade em relação àquelas vítimas de espetacularizados. Enquanto isto, os direitos do homem continuam tendo dificuldades. Mas como é que eu faço funcionar a lei? Quem faz funcionar a lei são os Estados, ainda hoje. Não é o mundo, o mundo não tem força para impor normas de conveniência. Nós voltamos à ideia de Estado. A globalização vai obrigar de novo, com muita força, a que a gente leve em conta a existência dos Estados. Que são os únicos capazes de exercer a ação no sentido de ampliar os direitos do homem. De tal maneira que o Estado faz isso hoje para as grandes empresas e para a informação, que não são assim tão absolutas na sua força. Nem o dinheiro nem a informação teriam a força que têm em países como o Brasil, sem que o Estado decidisse lhes dar a mão forte.

DV - A crítica que o sr. faz à academia leva a um certo pensamento espontaneísta. Por outro lado, o sr. fala na questão da globalização. Em que lugares poderíamos ser ajudados, dado que a academia leva a um um processo de mediocrização crescente?

DV - A globalização tem limites, mas é preciso pensá-la a partir de suas possibilidades. Uma delas é a produção de novos territórios. Que não se referem necessariamente ao terreno, no caso, ao local. Mas que se produzem, talvez, a partir da absorção o, na esfera mundial, de conceitos, visões e de solidariedade que vão se construindo a partir da generalização de uma crítica à exclusão, à desigualdade etc... Isto é uma possibilidade ou uma fantasia?

Milton Santos - Na primeira pergunta, eu creio no seguinte: a gente fala muito no mundo, mas eu acho que há dois caminhos. Você pode partir de uma coisa que não existe, que é o mundo, tal como é o parâmetro atual. Ele é produto e é dirigido. E esse dirigir, que diz respeito à velocidade, à competitividade, ou seja, ao conjunto de ideias que são ideológicas, digamos assim, e que regem o mundo, esse mundo que produz um sistema descredenciado. A outra forma de fazer a globalização é a partir dos países. É para essa que já estamos marchando. Porque o período histórico atual está morrendo. Esse período da globalização está morrendo. Então o que nós vamos ter é uma outra globalização produzida a partir dos territórios, de suas culturas, das aspirações do que Carlos Lessa chamou ontem (no debate de lançamento da revista, em dezembro) de povo. E que eu preferiria chamar de pobres, porque são os que têm força real hoje, do ponto de vista da criatividade, e não nós. Então, há essas duas coisas. Quer dizer, apostar no que, aparentemente, ainda não existe. Aparentemente, porque estamos em um mundo onde a ideologia comanda e onde as ideias fabricadas podem impor essa ideologia. Há uma enorme força de difusão, graças a todas as formas de monopólio que criam as editoras, não é? Porque um dos grandes dramas do mundo atual são esses monopólios da difusão. As editoras - uma dúzia no mundo todo - decidem o que vai ser publicado e o que não vai ser. E aí a gente desemboca na universidade. A universidade tem dificuldades em função da crescente dependência, de um lado, dos fundos de pesquisa, e, de outro, da mídia, que dita os assuntos, inclusive os assuntos em ciências sociais. Então, a universidade se torna repetitiva, como uma decorrência de sua própria mecânica, o processo de crescimento das pessoas. Há uma separação crescente entre os que governam a universidade e os outros. Quer dizer, você tem os cartolas da universidade, os corretores, os decanos, que são um grupo que procura se reproduzir a qualquer custo. E o resto da universidade, que, quanto mais afastada disto, melhor. Mas também pior, porque passa a não ter re- cursos para produzir ou difundir o que pensa. Mas na universidade se é pago, mal ou bem, mas pago, para ter uma atividade permanente, e você tenta compatibilizar o sustento de sua família com a vontade de caráter. O que nem sempre é possível. Às vezes, essa latino-americanização, essa argentinização da universidade brasileira, que ainda é um oásis, passa a ser uma ameaça, inclusive à produção intelectual independente. Porque a maior parte das pessoas passa a ter os olhos nos contratos. Com os recursos permite-se circular e evita-se produzir. Porque você, circulando, não precisa produzir, já tem a sua reputação assegurada. Estou vendo a universidade como um sistema também. As vocações autênticas, digamos assim, acabam sendo deprimidas, peladas e postas na sombra.

DV - É muito difícil para os alunos. Há resistência a pensar...

Milton Santos - Os estudantes são feitos um pouco à nossa imagem.

DV - É um desafio poder produzir, poder manter a ética e a dignidade. Tenho a impressão de que a carreira feita no exterior, os prêmios, lhe deram a possibilidade de independência. Como foi esse trajeto? Como construiu essa trajetória de intelectual brasileiro que está podendo dizer as coisas hoje sem depender de uma verba pequena para pesquisar?

Milton Santos - Em 1964 eu tinha carreira local, regional, na Bahia, onde era advogado. Fiz direito, pretendia ser professor de teoria do Estado, mas descobri rapidamente que a cadeira estava reservada para um menino, filho de um professor, que tinha nesse momento 16 anos. Descobri que eu nunca poderia ser professor na Bahia. Depois, como eu não queria ser funcionário, o governador me ofereceu um emprego, mas recusei porque os professores explicavam que era ruim ser burocrata. Então, eles me deram essa ideia da liberdade da faculdade de direito. E aí, já havendo ensinado geografia desde os 15 anos de idade, quando comecei a ensinar para poder me vestir e frequentar uma faculdade de gente bem vestida, me entreguei inteiramente à geografia. E quando surgiu "O Analista", um jornal que funcionava como um partido, passei a ser o redator principal e, com isso, obtive alguns pontos políticos de alguma importância. O presidente Jânio Quadros que me desculpe, fui representante dele no estado da Bahia. A minha sorte foi que não fiquei muito tempo em nenhum posto político. E aceitava lugares na política com a condição explícita de que me deixassem sair alguns meses para estudar no estrangeiro. De alguma forma eu estava num jornal que criava condições de prestígio, com uma certa independência em relação aos partidos. O jornal, de fato, era um partido. Com isso, a geografia eu fazia na Bahia, que era muito vinculada com o território. Como a gente não tinha nem máquina de calcular, muito menos computadores, as estatísticas a gente as vivia. Agora não é mais possível, as estatísticas hoje são abstrações. Isso nos permitiu, a nós da minha geração, ter uma sensibilidade em relação ao território que criava uma credibilidade. Isso me deu, no meu estado, um certo prestígio vindo do trabalho intelectual. Fui secretário de Estado e de planejamento econômico, apesar de ser geógrafo. Na faculdade de direito também se estuda economia, aliás, no ginásio também se estudava economia política, obrigatoriamente. E quando chegou 1964, eu era um homem regional, e quase nacional na minha área, que não tinha visibilidade. Internacional antes de ser nacional. Porque eu chego na França e não sei se, devido à minha origem comovente, passo a ser um excluído que assume sua exclusão. Então, na França, depois de dar aula um ano ou dois, eu, que era um seguidor quase que total da geografia francesa, comecei a me perguntar: mas será que isso responde, ajuda a entender? E é isso que me levou depois ao marxismo. O marxismo chegou para mim após um processo lento, amadurecido. Isso me permite hoje não ser aquele marxista.

DV - Qual marxista?

Milton Santos - O atual?

DV - Não, aquele que chegou e depois...

Milton Santos - Era uma mistura de altuserianismo e felizmente, de sartrismo, de existencialismo, que é o que ficou. A minha posição atual é considerada, por colegas anglo-saxãos, estrutura- existencialista. Eu acho que o estruturalismo, desde que seja ajudado pela história, tem muito a contribuir. Essa ideia de sistema, que a gente jogou fora. Porque a gente dizia: isso é neopositivismo, não se fala de sistema. O que é uma bobagem. Você pode associar a ideia de sistema à ideia de estrutura, incluir a noção de tempo. E se você junta a tudo isso não uma pitada, mas uma carrada de existencialismo, aí consegue uma humanidade no seu processo de pensar.

DV - O sr. estava lá na França em maio de 68?

Milton Santos - Estava.

DV - E já era marxista?

Milton Santos - Não, eu não era marxista. Fiz um livro durante esse período que acho que é o que está me servindo para fazer todos os outros. Porque foi um momento de explosão, eu não podia sair, eu estava em Bordeaux. Não havia sido promovido ainda para Paris. E também não havia dinheiro para pegar um trem. Aí fiquei em casa e pela primeira vez liguei a televisão. Porque, como bom intelectual afrancesado, não podia olhar televisão o. Era um absurdo um intelectual fazer isso. Mas aí olhei a televisão e vieram aquelas ideias nos meus botões. E tudo que eu fiz até hoje em termos de ideias creio que saiu desse livro. O livro se chama "MDRV" O trabalho "MDNM" de um geógrafo no Terceiro Mundo. Era um manifesto contra o departamento, a universidade onde eu estudava. Um departamento atrasado, e continua sendo na França, porque era sede da empresa colonial. A primeira cadeira da geografia colonial.

DV - Como é que chegou na USP, no centro?

DV - É depois da Tanzânia.

Milton Santos - Eu estava ensinando na Columbia University e fui convidado para ajudar a criar uma faculdade na Biafra.

DV - Mas e essa chegada a Columbia?

Milton Santos - Não sei muito bem, nunca se sabe exatamente por quê. Era a abertura, havia uma certa caça a intelectuais portadores que poderiam portar as ideias da trilateral. Era em Columbia que estava (Zbigniew) Brzezinski. Columbia tinha a pretensão de reitora do mundo. Vocês sabem que há universidades que elaboram uma ideia de mundo. E a globalização o é produto de algumas universidades americanas, com ajuda de universitários de outros países. A ideia de globalização o resulta do trabalho intelectual muito sério. A bilateral não existiu pesado, não.

DV - Só tinha aquelas espécies de estratégias...

Milton Santos - Ah, sim, exato. Eu tenho medo de voltar à ideia da conspiração o. Na verdade, sem conspiração não teria havido globalização. . a primeira vez que uma divisão de trabalho é organizada a priori, planejada. A produção da globalização o é produto de um projeto.

DV - Mas, se a gente pensar assim, a própria colonização é. Em 1500, há um pensamento do mundo e há uma conquista do mundo.

Milton Santos - Mas faltavam as condições técnicas que permitiram.. .

DV - Mas a geografia, se eu bem entendo seu pensamento, é um produto, não é bem um ponto de partida. É um produto humano.

Milton Santos - Sempre que vê uma política ela propõe ideias que são difundidas, que permitem ação. A política também é isso. E aí a geopolítica antes cita o trabalho dos estatísticos e dos mercadores, hoje financistas, não é? E só que não havia as condições para uma conquista global do mundo. Inclusive, a base do imperialismo é a não homogeneização. Você pode ter um império muito na frente dos outros do ponto de vista tecnológico, financeiro e comercial, e que convive com os outros impérios. O Império Americano é o primeiro que decide sozinho se vai comandar o mundo. Isso resulta de condições históricas novas.

DV - Estou querendo voltar para a trajetória do professor.

Milton Santos - Da força da realidade eu fui para MIT (Massachusetts Institute of Technology, em Boston). Que tem lá seu charme também

DV - É aristocracia?

Milton Santos - Mas também plutocracia, porque a gente se acostuma a ver o mundo acadêmico a partir da Europa. E os americanos se consideram como o lugar próprio para ser cadinho. O professor visitante pode ficar por 6 meses ou por um ano. Enquanto isso se satisfazem alguns estudantes, alguns grupos.

DV - O próprio (Noam) Chomsky do MIT não é convidado nem para falar em Harvard, que é do lado. Ele é mantido ali com ótima figura, meio que à parte da ideologia.

Milton Santos - Ele é necessário.

DV - Eles precisam dele por perto.

Milton Santos - Isso. Mas o MIT é outra história. Quer dizer, eu havia sido chamado para ensinar realmente, porque eu tinha um contrato com uma universidade do Canadá. Porque eu sabia que não podia ficar na França, começava a ser um país extremamente comerciante e quando eu vi que o próprio Celso Furtado começava a ter dificuldade para renovar o seu contrato, coisa sobre a qual ele ainda não falou, eu comecei a pensar. Dois meses antes eu descobri que não tinha lugar, porque as tentações de política internacional dentro da minha disciplina desaconselhavam. Quem me convidou, rompeu o convite. E aí tive que ir para qualquer lugar. Como eu tinha este convite anterior do MIT, aí eu fui, como pesquisador, vivi lá um ano, vivendo com US$ 460 por mês e daí eu fui para o Canadá, Toronto, ensinei um ano e as portas se fecharam. Amigos da OEA me arranjaram emprego em Lima onde fiquei seis dias, fui contratado pela University College de Londres, tinha um contrato. Mas, chegando lá, não pude encontrar casa para morar, porque as casas onde eu queria morar os proprietários não queriam muito. Isto foi em 73, e como a direção da universidade não quis me ajudar na busca da casa, a razão era racismo, não? Daí decidi que não podia ficar onde eu deveria ficar um ano. Demorei apenas nove dias. Daí fui para a Venezuela, para onde eu ia sempre que não tinha emprego. E aí colegas de Columbia que já haviam tentado me nomear e não conseguiram, obtiveram a minha nomeação.

DV - Que época era essa?

Milton Santos - Era época das grandes migrações forçadas. Três quartos da população o foram obrigados a mudar de lugar.

A ideia é que as populações mudavam de lugar e não havia solução porque os recursos se multiplicariam se as pessoas se reunissem em algum lugar. Se as populações estão dispersas como é que eu vou dar educação, saúde e ideologia? A ideologia depende muito da aglomeração, não é? Não havia televisão.

DV - E aí vamos chegar na USP, não é?

Milton Santos - Mas a minha mulher engravidou de meu segundo filho, que fez agora 20 anos.

DV - O sr. se casou na França?

Milton Santos - Casado?! Eu tinha conhecido minha mulher na França, ela era pobre, a partir daí ela me acompanha por todos esses países. Eu tinha outro filho que vivia na Bahia junto com a mãe dele. Ele me encontrou em todos esses países, era ele quem me levava os discos... Em função da ideologia dele do momento (risos). Pois bem. Eu me recordo. Isto é anedótico, a minha mulher engravida e a minha decisão é que o filho tinha que nascer na Bahia.

DV - Baiano é incorrigível.

Milton Santos - E aí me encontrei em Paris com o atual presidente da República. Só baiano mesmo, em vez de ter filho em Paris ou Nova Iorque quer ter na Bahia. . que ter filho no Brasil é caríssimo. Na França não se paga nada. Você até recebe dinheiro. Se você tem muito menino você passa o resto da vida recebendo. (Risos) Mas o baiano aqui decidiu que o menino ia nascer na Bahia e foi o que aconteceu. E aí eu me dei conta de que estava com 50 anos e se fosse para a Nigéria tinha que ficar vários anos, criar uma faculdade, fazê-la viver. E aí apareceu um convite para ir para o Rio Grande do Sul, para onde não fui, porque achava que eu tinha que poder circular sem depender do empregador, o que é fundamental. E o Rio Grande do Sul, fica longe do Brasil, não é? (Risos) E aí fui obrigado a não aceitar. E em São Paulo, a minha amiga, Maria Adélia de Souza, me ofereceu uma consultoria e arranjou uma segunda consultoria que permitiu que me instalasse em São Paulo. Daí eu bati várias vezes nas portas da USP, várias vezes. E as portas fechadas. E os meus colegas do Rio me chamaram e eu estive aqui. Peço desculpas, mas eu queria o melhor. E o melhor acho que era a USP.

DV - E aí participou de um concurso.

Milton Santos - Não, este concurso resulta da decisão prévia de me acolher. Não vou me vangloriar do concurso, não. Houve uma decisão. Os colegas velhos foram embora e os colegas mais novos decidiram me acolher. E eles prepa- raram o caminho para mim. Me fizeram contratar professor com a promessa de que o concurso seria aberto.

DV - Você acha que é geógrafo porque é nômade ou é nômade porque é geógrafo?

Milton Santos - Acho que sou geógrafo por causa da ideia de movimento. O movimento real sempre me chamou a atenção.

DV - O sr. fala muito da posição solitária, independente, mas o sr. cria uma rede de sustentação de amigos.

Milton Santos - Mas não somos um grupo, sabe. Esta é a grande diferença. Amigos você tem, uma meia dúzia, com os quais não concorda sempre e eles não concordam com você. Mas não creio que a dignidade seja propriedade de uma ideologia. Na França, o maior apoio que tive não era gente de esquerda, era do outro lado. Me davam um apoio extremamente forte. Não sei se aconteceu a mesma coisa com o Celso (Furtado). Mas aconteceu isso. Os apoios que eu tive são muito mais difusos do que organizados.

DV - O sr. se referiu ao fato de ser um excluído que assume a sua condição. Então a pergunta é sobre o fato de ser um intelectual negro e sobre a experiência do racismo. O racismo interfere na sua trajetória? O sr. sofreu algum episódio de racismo?

Milton Santos - Acho que há uma incorporação o desta ilusão porque você descobre que, não importa qual seja o seu sucesso, você não pode ser reconhecido como igual. . a minha experiência, é meu cotidiano, é uma mutilação. Apesar da notoriedade que acabei obtendo isso não diminui a sensibilidade. Porque há uma atitude objetiva em relação aos negros. A primeira atitude é que, a palavra eu não sei como será, não é bem desprezo, uma consideração menor.

DV - Na Bahia a atitude é diferente. O negro na Bahia é assim... uma coisa de altivez.

Milton Santos - Mas eu não considero que o negro deixe de ser altivo em outros estados.

DV - Mas a maneira de se colocar no mundo... Eu acho que ser baiano não é sem consequências.

Milton Santos - Muito obrigado. (Risos.) Creio que é a coisa do lugar, outra vez. . a coisa da subjetividade. Creio que a subjetividade, hoje, tem a ver muito com os lugares.

DV - O ambiente...

Milton Santos - O ambiente, para falar esta palavra infame, tem que ver... Mas também na Bahia o racismo foi elaborado durante quatro séculos. Ao mesmo tempo que a ideia de cultura, e isto é a grande diferença com os outros estados, avançou no século, enquanto o Sul e o Sudeste do Brasil já estavam dentro do comportamento industrialista. Afrânio Coutinho, da Academia de Letras, dizia que a Bahia é uma ilha. Todos os baianos que vinham para cá queriam triunfar no Rio. Eles iam lá, faziam festa, mas nos deram a ilha porque a gente olhava para o Rio como um grande intelectual e tudo o mais, mas o comportamento era muito ilhéus. Tanto que Aprigama, um genial literário da Bahia, é o gênio da ilha. E eu creio que isso permitiu esse espaço pela cultura. Acho que isto tem um papel muito forte. E quando chega a indústria ela não se mistura realmente com essas raízes profundas. Então há essa aparência de tolerância, passa-se a mão pela cabeça, o que acabou exasperando. E depois quando há o descolamento das classes... porque até o começo dos anos 60 havia uma possibilidade de trânsito, não permanente, mas de quando em quando, entre as classes sociais. Você via o outro, você podia conversar com a família do seu colega que era filho de banqueiro, de grandes herdeiros e de grandes nomes. Isso acabou. Hoje você tem na Bahia os ricos de um lado, os pobres do outro. A forma da cidade ajuda nesse sentido. E as pessoas acabam descobrindo. E chega a era da expressão pela música, pela arte. Que, digamos assim, é uma das manifestações, das contradições da técnica.

DV - Quer dizer, a cultura na Bahia é que é a trincheira, não é?

Milton Santos - É sim. Eu não saberia explicar cientificamente. Estou dando aqui mais uma impressão de um sujeito que viajou muito e que passou a ver de uma certa forma a realidade da sua gente.

DV - Parece que a cultura religiosa de origem negra teve um papel muito grande na Bahia. Na explosão musical e até na explosão o anterior dos antigos baianos havia conexão com a questão religiosa. Em que outro estado do Brasil a cultura religiosa, de origem negra, tem este alcance popular?

Milton Santos - Popular. Porque as classes médias negras não tinham maior contato com isso. Ao contrário, isso era escondido.

DV - Era proibido, inclusive na década de 40...

Milton Santos - Ah, isso é outra coisa. Você tem uma proibição. Mas, por outro lado, nas classes médias negras estabelecidas, caso da minha família, havia um silêncio em relação...

DV - Mas havia um sincretismo, desde o catolicismo à lavagem das escadarias...

Milton Santos - Mas quem guardava eram os pobres, o povo, não éramos nós, da classe média. Talvez daí venha a força, porque a classe média não tem força. Então a força vem de baixo, e os guardiões dessa coisa eram os pobres. Eles não tinham discurso, exceto este .

DV - Não se compara, por exemplo, a cultura da Bahia com a cultura de Minas Gerais, onde o negro lidava com ouro. Não deixou nenhum vestígio esta cultura. Só arte. Só às vezes, numa etapa de transgressão o de Aleijadinho, que não aceitava ser negro, nem era aceito pelos brancos. Mas é muito diferente. A Bahia tem uma explosão de pintura, de liberdade de expressão o muito grande.

DV - E a sua infância?

Milton Santos - Meus pais eram professores de primário, como meus avós maternos, que eram professores diplomados, antes da Abolição. Meu avô pertenceu ao Ciclo Operário, que era o predecessor do sindicato. O meu avô paterno...

DV - Ciclo Operário, eram católicos.

Milton Santos - Católicos, católicos era outra coisa, quer dizer, iam à missa, faziam roupas para os pobres. (Risos.)

DV - O Brasil é isso. O Ciclo Operário foi ligado pela Igreja Católica.

Milton Santos - Os meus avós paternos eram agricultores urbanos. Minha avó vendia verdura de pé no chão, na cidade. do lado da minha mãe era outra coisa, gente com vontade de ser fina que tocava piano... Tinha que ter piano. Meu bisavô era maestro, amigo do Rui Barbosa. E eu nasci aí, filho de professores de primário, que eram humildes mas não eram pobres.

DV - Em que lugar da Bahia?

Milton Santos - Eu nasci no interior.

DV - Professores primários nesta época eram pessoas que tinham prestígio e instrução.

Milton Santos - Eu não fui à escola, estudei em casa e terminei o primário com 8 anos. Meu pai me ensinou, me fez aprender em casa francês, álgebra e as boas maneiras, que eram indispensáveis, então. Saber andar com uma senhora na rua, saber que não se toca nas pessoas, que você tem que usar as palavras, não as mãos. Então, tudo isso eu aprendi, bom, e esqueci. (Risos)

DV - Mas qual era a cidade?

Milton Santos - Meus pais foram para diversas cidades, para a zona do cacau, no sul da Bahia, e daí me mandaram para o ginásio, onde fiquei interno. Talvez daí venha a resposta à sua pergunta sobre a solidão. Eu tive desde cedo esta experiência de ter tido uma educação no seio da família. O que não impedia a convivência com as meninas, não é? (Risos.)

DV - Não precisava de escolas para isso.

Milton Santos - Isso havia. Você vai dizer que é da negritude, mas não é isso, não. (Risos.) . da condição humana. Aí eu fiquei dez anos, praticamente vivendo neste colégio...

DV - Dos 10 aos 18? A adolescência inteira no colégio!

Milton Santos - E comecei a ensinar lá dentro, mesmo. Depois eu tinha o meu quarto separado.

DV - Era religioso o colégio?

Milton Santos - Não, não. Era um colégio leigo.

DV - Não era comum.

Milton Santos - Era um colégio para filhos de espanhóis e judeus. De modo que nos tínhamos uma boa mistura, diversas classes médias. Classe média não religiosa. Não eram nem os jesuítas, nem os maristas. Não havia a pretensão... A direção da escola era cheia de livres pensadores...

DV - Salvador?

Milton Santos - Em Salvador. E daí a faculdade de direito era precedida de uma coisa que vocês talvez nunca tenham ouvido falar, que é o chamado curso pré-jurídico.

DV - Propedêutico.

Milton Santos - Onde a gente fazia todas as disciplinas sociais, tinha política, sociologia, psicologia, que era dada por um grande professor. Até hoje eu penso que quem estuda psicologia não precisa fazer psicanálise. Pois o discurso você aprende no ginásio. (Risos.)

DV - Nós todos temos uma passagem, principalmente entre a adolescência e juventude, de alguém que influenciou decisivamente nossas vidas. Quem foi essa pessoa para o sr.?

Milton Santos - Bem, na Bahia era obrigatoriamente influenciado por Rui Barbosa e Castro Alves. (Risos.) Mas no ginásio tive alguns professores extremamente instigantes. O professor de português, que criava as frases no quadro-negro para nos ensinar sintaxe, por exemplo. Era especialmente filosófico. O professor de história, que dava aulas muito ricas. Evidente que a história era a histó- ria da Europa. Acho que existia um clima no ginásio, na Bahia nesse momento, onde havia uma enorme preocupação com o humanismo. Acho que foi, talvez isso, marcante. Josué de Castro me impressionou. No segundo ano eu li aquele livro dele chamado "Geografia da fome". Um livro que ele fez para o ginásio. Todo o debate atual da geografia está ali neste livro. O que era uma forma de ver a história, a história vista como reconstrução o do planeta. Acho que teve um papel muito forte.

DV - Isso tudo levou-o a ler muito, desde pequeno?

Milton Santos - Desde cedo. Os poetas ingleses, a literatura inglesa, um pouquinho dos portugueses. Acho que é o momento de ler. Aos 18 anos aí você chega à faculdade e vai poder ler coisas precisas.

DV - E os brasileiros?

Milton Santos - Os brasileiros eram pessoas simples, como José de Alencar, Machado de Assis.

DV - A associação entre o que o sr. falou antes sobre a segregação, o racismo, e como isso evoluiu numa sociedade como a brasileira e que se exprime até em divisão o de território, classes e raças, como é vista pela Geografia? Estou falando na dupla experiência do sr. como negro e geógrafo.

Milton Santos - . que eu não trato desta questão, não é meu terreno.

DV - O sr. fez uma palestra com o título "As exclusões da globalização: pobres e negros".

Milton Santos - Cada vaga de progresso técnico, na medida em que cada vaga de desenvolvimento vem acompanhada por uma concentração do poder econômico, amplia as exclusões. Essas exclusões eram atenuadas até recentemente por uma certa ideologia igualitarista que a globalização o suprime. Ser superior ou inferior é próprio do processo globalizador. Então, no caso dos negros, eles são mais desamparados agora do que eram antes e do que serão num futuro próximo. Essa é minha tese. Quer dizer, se o Brasil voltar a crescer mesmo de forma mais distributiva, a situação dos pretos vai ficar terrível. . possível que chegue à explosão que o Celso Furtado, conversando comigo em Paris, imaginava. Não chegou ainda, vai chegar, creio eu quando o Brasil tiver um crescimento distributivo. E os negros não vão poder participar porque no Brasil tudo depende de um bom telefone. Até para ter um médico. Ninguém vai ao médico sem pedir ao primo, à tia, ao compadre que recomende. Eu com um ano, com minha posição na faculdade, não tinha um bom telefone. E tem a educação, que começa a ser ela própria não igualitária. Tá, vamos botar o negro na escola porque vai melhorar. Ora, você tem diversas escolas e os negros vão às escolas que não permitem uma inclusão cabal, complexa, completamente aceitável no mundo novo que está se criando. Acho que o Brasil atual é terrível para os negros, o Brasil distributivo, que vocês estão querendo construir, será pior. Pelo menos do ponto de vista imediato. A menos que haja revolta, que espero que vá se dar.

DV - O sr. apoia política de ação afirmativa?

Milton Santos - A questão não é por aí. O debate é outro. O que é que o Brasil quer fazer pelos seus negros? O que ele quer fazer pelos seus índios a gente já sabe, não é? Agora, pelos negros a gente não sabe.

DV - Nós não temos um povo fora dos negros. Nós somos negros.

Milton Santos - O quê? Nós somos negros?

DV - A gente não é branca.

Milton Santos - Que é isso, menina!

DV - Tem muita gente que argumenta que nos EUA você tem segregação inclusive nas classes baixas. Em Boston, você vai visitar a periferia e vê a separação até entre pobres: negros, jamaicanos em um bairro, negros americanos, pobres de origem irlandesa, em outro. Os irlandeses não se misturam com os americanos negros. Os americanos negros não se misturam com os jamaicanos. Enfim, mesmo na classe pobre você tem esse "apartheid" social. Coisa que no Brasil não tem. Você vai em uma favela, todo mundo convive. Bem, esses são argumentos que as pessoas apresentam para mostrar as diferenças entre aqui e lá. Agora, nas classes baixas, não se vê isso, se vê uma convivência. Essa convivência se dá por uma falta de consciência ou porque realmente nas classes mais baixas não existe uma discriminação maior, como nas elites. O que o sr. acha?

Milton Santos - Bem, eu não sou um especialista nesta questão. Então a minha resposta é de alguém que não tem competência para falar. Ainda não estou totalmente certo de que uma hora ou outra não se diga: "Ah! Você, o negro...". Acho que isso existe também nas classes baixas. A questão da distinção.

DV - Mas se cria um pouco como um território, não se cria?

Milton Santos - Se cria junto com o território.

DV - Porque o sr. imagina que a coisa caminha para o pior e não para uma possibilidade de fusão?

Milton Santos - Talvez chegue à fusão o, sim. Mas estou falando do processo.

DV - Mas o que, por exemplo, a gente teria que fazer hoje para antecipar o amanhã?

Milton Santos - Eu acho que posso dar as ideias, as ideias são portadoras, elas conduzem. Se a gente começa a falar, a gente dá as pautas. Mas sobretudo partir do Brasil. Essa tendência atual da África do Sul, parece que tem até uma expedição o americana que veio convidar todo mundo para ir para a África do Sul dos EUA. Eles me contactaram também para fazer parte do comitê. E eu pedi meios para conhecer, pois eu não conheço os movimentos negros e sou, de certa forma, distante deles. Eu disse, aceito, mas vocês me ajudam como, no sentido de uma ação política.

DV - O que eles queriam?

Milton Santos - Eles querem fazer livros. E sugerir comparações com o Brasil, os Estados Unidos, a África do Sul. E tudo o mais. O parâmetro tem que ser o Brasil. Acho que esse enfoque comparativo é uma diversão politicamente elaborada.

DV - Mudando um pouquinho de assunto, o sr. falou que a notoriedade lá fora chegou antes de chegar ao Brasil. Quando é que chegou ao Brasil?

Milton Santos - Eu tenho a impressão o que terá sido no mesmo momento que um grupo de jovens dentro do Brasil começou a renovar a geografia.

DV - Mudando de assunto, as novas gerações são totalmente Estados Unidos. O que isso significa para a cultura da gente? A influência cultural abre possibilidades? Como o sr. vê a influência marcadamente americana e que impactos isso tem para o futuro na reconstrução o da cultura brasileira, na ideia de povo brasileiro?

Milton Santos - Eu vejo com apreensão o. Vou dar a minha geografia. A geografia nasce sob a inspiração utilitarista nos Estados Unidos. Então ela se divide e se faz a partir de necessidades do mercado, necessidades práticas.

DV - Geografia urbana, mais administração o, mais..

Milton Santos - Aplicação imediata, resposta imediata. E desprezo por uma visão totalizante, que é dada pela história, pelo presente se realizando. E isso ganha maior peso com a globalização. A presença forte da filosofia econômica na filosofia política, graças aos americanos, é que perturba todo o pensamento social, porque se põe como centro da elaboração da ideia de antiguidade. O Brasil é um país fácil, aceita a influência com facilidade. Nós acabamos nos exprimindo como mandam que a gente se exprima. A gente escrevia como os franceses, agora a gente redige como os americanos. O que constitui uma mutilação voluntária, que reduz a força da nossa expressão como povo.

DV - O sr. fala com muita violência da informação como embarreiramento da cultura. Dá para notar na universidade, na produção intelectual e na capacidade de o povo reagir...

Milton Santos - De baixo para cima.

DV - Isso o sr. falou sobre a Bahia, quando falava da religiosidade, da cultura. Que na verdade era o povo, e não a classe média, o guardião...

Milton Santos - Só que a antropologia nos ensinou que os pobres vivem da mão para a boca, são imediatistas.

DV - Nós e o povo, porque tem uma expressão que o sr. cunhou, da qual gosto muito, que é a sabedoria da escassez. E ao mesmo tempo o sr. fala da naturalidade da desigualdade. Temos aí um paradoxo bem interessante. Porque o povo também materializa essa desigualdade. Eu queria que o sr. falasse um pouco sobre isso. Como é que isso poderia contribuir para a desnaturalização da desigualdade?

Milton Santos - Vamos distinguir os pobres dos miseráveis. Os miseráveis têm dificuldade para descolar um pensamento. Porque eles vivem no limite extremo da vida biológica. Mas os pobres eles são, como nós, sensíveis ao consumo. Quando eu digo assim dá a impressão o de que estou achando que o pobre não é subordinado ao mundo do consumo. Também é. Só que ele tem maior facilidade de descobrir isso. No caso do Brasil, até recentemente, cada vez que a classe média estava apertada, vinha uma solução, uma norma, um jeitinho que devolvia a ela a possibilidade de consumo. Agora é que começam a ser negados à classe média esses achegos, essa reinstalação no mundo do consumo. Acho que o mundo do consumo é ambivalente. As pessoas acabam por descobrir. Então esta consciência que vai ser criada lentamente, a da escassez, que não é sistêmica mas é fortemente sentida, vai ter um papel mais forte, e aí eu entro com a minha pretensão intelectual, porque o intelectual sistematiza, oferece essa sistematização, pela boca dos sindicatos, dos partidos, se fossem sérios, da imprensa _ que, de uma maneira ou de outra, acaba sendo sensível a isso. E aí entra um pouco o que vocês estão chamando de minha notoriedade.

DV - O sr. propõe a liberdade absoluta do intelectual na elaboração dos seus conceitos sobre o mundo, sobre a sociedade. No entanto, o sr. não admite para si mesmo a ideia de um engajamento. Essa visão, digamos, platônica da atividade pensante, é compatível com uma sociedade como a nossa, onde há carência de ideias que possam alterar a estratificação social, carência de movimentos que possam mudar esse quadro social. O intelectual não tem um papel fundamental?

Milton Santos - Acho essa pergunta excelente. Agora, essa falta de engajamento não existe. Acho que sou plenamente engajado. Mas penso que não tenho que estar nos partidos nem na porta da fábrica, onde estaria perdendo tempo. A produção de ideias é tão lenta, um processo tão doloroso, é preciso ser especialista nisto.

DV - Entendi agora.

Milton Santos - Então, meu papel não é ser de um partido. Num partido eu desapareceria, porque seria rapidamente convidado para ser assessor, que é a coisa mais prática para matar um sujeito. Ou mesmo ministro, e aí mesmo você fica morto, porque você tem que publicamente renegar o que pensa.

DV - Engajamento é isso aí.

Milton Santos - É outra coisa. Eu sei que no Brasil há muita resistência a isso. O Sartre, toda vez que era chamado, quando era necessário, estava lá. Eu sou negro, estou pronto, cada vez que o movimento negro chamar, a falar as poucas coisas que posso pensar como cidadão. Mas não sou especialista na causa negra. Eu fiz geografia e é através dela que tenho que dar a minha contribuição.

DV - O sr. fala na falta de novidade na academia... talvez seja até o contrário. Precisa é de mais intelectuais fora dos partidos, pensando.

Milton Santos - Acho que é isso. É pequeno esse número, tem gente desconhecida, muita gente nova, porque o processo de conhecer o outro no Brasil é muito complicado.

DV - Eu trabalho na questão agrária. Algumas pessoas do movimento sem-terra são deputados hoje, inclusive a nível federal. Carreiras políticas impensáveis no Brasil de 20 anos atrás. Mas eu me pergunto se, justamente por ser intelectual de peso, desconstruir um pouco essa linguagem dos que estão na política, chamando a atenção para isso, não seria também importante.

Milton Santos - Estou de acordo, porque essa execração geral da política é um horror. Mas a gente tem que dizer também que eles não são políticos, que não fazem política. Acho que quem faz política no Brasil hoje são as grandes empresas e a população pobre.

DV - O poder local, por exemplo, que tem a sua cidade, tem os vereadores, tem que fazer as coisas, porque senão não ganha nas próximas eleições. Taí uma boa questão.

Milton Santos - Quando você toma a prefeitura de São Paulo, você vai dizer: ah! foi a Erundina!, mas faz uma política neoliberal.

DV - Do possível.

Milton Santos - Mais do que o possível, claramente ajudando com essas coisas das operações cruzadas que têm aqui também. Quem puder pagar fica com um pedaço da cidade, como se a cidade não fosse uma unidade. Quer dizer, será que não há outra solução? Essa falta de imaginação das esquerdas, o discurso, inclusive, da maior parte da gente é um discurso extremamente atrasado.

DV - O sr. faz palestras e seminários geralmente para uma plateia instruída. Para que outro público o sr. gostaria de falar?

Milton Santos - Primeiro, os jovens. Porque os adultos a gente denuncia. Os jovens porque a minha linguagem é, de uma forma ou de outra, abstrata. Não quer dizer que os pobres não sejam capazes de abstração, mas essa abstração se exprime por palavras, que são carregadas de significação. Então eu faço esse esforço mas não creio que consiga inteiramente. . evidente que público como esse que o Plínio (de Arruda Sampaio) e o (João Pedro) Stédile me ofereceram...

DV - São trabalhadores?

Milton Santos - Trezentos sujeitos que vieram do Brasil inteiro...mas o próprio movimento sem-terra tem uma arregimentação. Precisa de palavras de ordem, que são um obstáculo à escuta dos demais.

DV - Então o sr. fala pouco para esse tipo de público?

Milton Santos - Porque não é o meu circuito, não é? Eu o alcanço através da revista deles, que me busca, através dos estudantes que são engajados...

DV - E aí o sr. tem que usar uma linguagem como a que o sr. estava usando.

Milton Santos - Essa linguagem eu tenho que trazê-la para a universidade também.

DV - Comecei a ouvir falar muito no sr. como uma resistência no campo do pensamento.

Milton Santos - Tem que encontrar o discurso eficaz, porque não adianta só fazer a pesquisa.

DV - O sr. encontrou?

Milton Santos - Em alguns casos tenho a impressão que sim, porque está vingando, né? E ele está entrando nos programas de ensino, vocês quiseram me ouvir...

DV - A sua fala também é muito despida de jargão, ela vem com uma naturalidade que é bastante sedutora porque dá a impressão de que não vem do mundo acadêmico, mas que é uma formulação originalíssima. . uma virtude se despir desses mantos que a academia impõe?

Milton Santos - . que acaba sendo uma discussão entre conceitos. E o essencial frequentemente não aparece. E a força dos sujeitos citados, o argumento de autoridade, que é sempre antipático, não é?

DV - O sr. está vendo agora um tipo de inclinação ou não? O sr. falou ontem em abandonar os conceitos estrangeiros de pensar o Brasil. Para se pensar o Brasil com o olhar voltado para o Brasil, sem influências de pensamentos de fora. O sr. acha que hoje está surgindo um pensamento voltado para pensar o Brasil como o Darcy Ribeiro pensava ou a tendência é o contrário?

Milton Santos - Não é abandonar, você tem que ler.

DV - Para fazer análise...

Milton Santos - Agora, em parte, nós lemos errado. Porque a gente não lê nunca o que vem da Índia, nem da África, nem da Ásia. Então a Europa... o que são os pobres, na Europa? Ou mesmo nos Estados Unidos? Então a nossa epistemologia de ciências sociais, quando a gente imita a Europa, como a gente sempre fez, a gente está excluindo os pobres. Aparecem depois, como chantilly no bolo. Um dos problemas do PT é que é a única organização de classe média com o chantilly dos pobres. Nós escrevemos com elegância importada e não com uma forma elegante de dizer as coisas à moda brasileira. Aí você não publica fora. Porque para publicar fora tem que ter aquela elegância, primeiro francesa, hoje anglo-saxão. A sobrevivência na universidade exige esta subserviência.

DV - Malabarismo?

Milton Santos - Subserviência mesmo. Você põe no seu currículo "fui citado tantas vezes". Isso não quer dizer nada. A citação é um exercício político. A citação é cada vez mais um exercício da política e não da inteligência. O que a gente deve descobrir são formas intermediárias. A forma pura da oposição a essa maneira é suicida. Tem que ter 70 anos para fazê-la, não é? Porque, senão, você fica execrado. . nesse sentido que eu acho que a universidade tem que passar por uma revolução.

DV - Difícil é de onde ela vem, porque os estudantes...

Milton Santos - Os coitados... Nós os desmanchamos, não é?

DV - As ideias são elaboradas, elas são reapropriadas, voltam... As ideias não têm pátria, são ideias de uma época. Problemas de uma época. Por exemplo: em relação ao PT, acho que a gente sabe muito pouco do que esses partidos fizeram com o poder local no território brasileiro nos últimos tempos. Falta pesquisa, falta entender. Não que eu esteja discordando de que o que aparece no PT é o que o sr. está apontando. Mas, em termos locais, há muitas coisas que não foram analisadas ainda. Pensar que o Estado pode ter um novo papel. Mas a ideia de povo brasileiro não tem que passar pela ideia de encontros culturais. Nós somos uma grande mistura, ora a fronteira é territorial e nacional, ora internacional. Temos que conhecer mais o nosso país nos seus processos sociais em curso do que o povo reagindo à ideia que vem de fora. Ou assimilando e adaptando.

DV - Ou criando. Queria que o sr. falasse um pouco sobre isso. Se a gente pega uma frase separada, a gente pode ter a ideia de uma essência pronta, é só descobrir.

Milton Santos - Eu vou dizer que sou otimista!

DV - Que bom!

Milton Santos - E a razão essencial de meu otimismo é o que está se passando nos lugares que nós não conhecemos. Primeiro, porque somos levados a estudar lugares segundo uma epistemologia que não é adequada à realidade, à descoberta, então a gente repete as mesmas buscas. Mas os lugares começam a fazer coisas diferentes. Saiu recentemente no "Jornal do Brasil" um artigo bem interessante onde um sujeito mostrava que está havendo formas de organização quanto à saúde, por exemplo, que são inovações.

DV - Condições regionais que são inovativas, adaptadas à situação.

Milton Santos - A situação de distribuição o de recursos públicos está criando em alguns lugares uma efervescência e vai levar, creio eu, à produção de uma nova federação. Que vai ser primeiro de lugares e posteriormente vai ser a federação brasileira renovada. Porque os lugares não podem responder às demandas das populações locais. Então, canhestramente, eles vão buscando soluções. Mas como nós não estamos preparados para trabalhar na questão do lugar, a própria geografia está engatinhando nisto, e a ciência política é ainda, em boa parte, jornalística. Como nas ciências políticas, ela se torna descolada das situações concretas. Então nós estamos adiando esse conhecimento do lugar. É por aí que a gente vai refazer o caminho. Quando o Brasil, mais o Peru, mais a Argentina, mais a Costa do Marfim se reconstruírem na base dessas experiências, dessa efervescência do lugar, é que nós vamos fazer a globalização.

DV - Tem alguns pensadores, a maior parte antropólogos, que andam dizendo que um desdobramento da globalização, a quebra da fronteira, levaria ao surgimento de tribos, novas tribos que ultrapassam fronteiras. Então você pode ter no Brasil, na França, uma mesma tribo que ignora o Estado, ignora essas fronteiras e que se constitui em uma tribo autônoma, feita por pessoas de origem as mais diversas. É possível esse ressurgimento?

Milton Santos - O intelectualismo cria imagens. Não há limite para a criação o de imagens. Agora, eu creio que a proximidade tem um papel. E acho que esse é o papel central na mudança, porque é a partir da proximidade que você cria um novo ente. Quer dizer, quanto mais diferente, melhor. E quanto mais diferente o debate, ainda que silencioso, mais rico. Mas que não vai recriar muito pelo poder da Internet. É um equívoco. Então a gente volta à questão do lugar. Está bem que a gente se comunique com outros pela Internet, é muito agradável. Não custa nada fazer um e-mail começando com meu caro colega e acabando com um muito afetuosamente. Só que não é isso que vai...

DV - Talvez o interessante nesse processo é que você admite a construção de novas identidades ou de múltiplas identidades que ultrapassam, provavelmente, as esferas locais das próprias culturas, sem perder essa sua consciência profunda de que você está localizado em uma língua, em uma cultura, em um país. Mas a globalização o, olhando-a com um olhar mais otimista, talvez ofereça hoje abertura e canais de comunicação que permitam a construção e a identificação a partir de outros referenciais.

Milton Santos - Acho que a proximidade, a coopresença, que é uma expressão que vocês usam muito na antropologia, tem um papel, porque são as trocas de todo o tipo e inclusive as simbólicas, mas também as trocas resultantes do processo de produção. O reconhecimento das diferenças, que a distância apaga. E aí há o apelo às tribos, mas a construção não vem da similitude.

DV - Queria ouvir um pouco mais sobre a afirmação de que quem faz as grandes políticas são as grandes empresas...

Milton Santos - Veja como é que o território se organiza hoje. O Brasil é isso. E aqui você tem lugares eleitos pelas grandes empresas. Só que o território é um sistema. Chega uma grande empresa para se instalar, ela reclama das condições. Depois que ela se instala, ela instala a sua ética. A ética da empresa que contamina o lugar, porque ela cria emprego, tem um papel nos gastos públicos, tem um papel na educação que é oferecida. Então essa empresa tem um comando sobre a vida social, ela toma o lugar do Estado. E os políticos pensam que fazem política, mas quem está fazendo política territorial e social são as empresas. E a política obriga a uma controvérsia, por mínima que seja, há compromissos... pão, pão, queijo, queijo... se não quiser vou-me embora.

DV - Tem a filantropia empresarial. Está na moda.

Milton Santos - Bom, o que acontece em um lugar tem implicação sobre o resto. Então acaba o território sendo governado de maneira cega. Quer dizer, sobre a vida de um país como o Brasil o governo não tem comando, não há governo, não há uma governabilidade a partir disto. E nós seguimos, quer dizer, as classes médias e as classes poderosas apenas acompanhamos. Os pobres não podem acompanhar, nem precisam, porque não têm emprego. Eles vivem do chamado setor informal, vivem de expedientes. Só que eles conversam entre si... e nós não. Eles negociam todos os dias, os pobres. Porque cada dia é diferente do outro. O potencial de descoberta é enorme por isso, porque nem um dia é igual ao outro. Os nossos dias são iguais, porque a gente tem o cheque ouro, tem o excedente, o cartão de crédito, que faz com que a gente tenha uma vida parecida...

DV - Tenha estabilidade.

Milton Santos - Uma certa estabilidade. Para cada um. E é isso que me parece ser promissor, porque nós vamos ter aliança entre os formuladores que estão na classe média e os excluídos. Então, nesse sentido, a política é feita pelas empresas, por cima, e pelos pobres, por baixo. As empresas conquistam uma boa parte dos intelectuais. Falta que os pobres conquistem mais intelectuais. Só que não pode ser só os pobres, quer dizer, não dá para ser bajulador dos pobres. Tem que ver o conjunto da sociedade, porque senão o não se veem os pobres.

DV - Um pedido de uma mensagem para os jovens. A revista vai chegar para os professores, para o país inteiro. E também para os jovens.

Milton Santos - Acho que nunca houve uma fase na história da humanidade tão propícia à realização de uma sociedade humana igualitária e feliz. Nunca houve. Acho que em todos os tempos a gente esperou por isso. Temos tudo aí para construir uma nova sociedade.

DV - Como fazer?

Milton Santos - Acho que a partir da produção de ideias portadoras, suscetíveis. de explicação geral, que sejam sistêmicas, que permitam ver as coisas. Você pode ver um outro sistema de ideias. Quanto mais a juventude for chamada a pensar o mundo como um todo, a ter uma visão da história e a reconhecer como é o mundo atual, melhor. A ideia que eu quero desenvolver é sobre as técnicas da informação o. A tecnologia mata a técnica. Porque o homem torna-se desnecessário de alguma forma. Então não tem técnica. Porque a técnica é a relação do homem com o entorno. A técnica da informação restaura o artesão, de alguma maneira. A atividade que melhor utiliza a técnica da informação é a aviação. E tanto da torre como do avião as soluções são induzidas ali, no momento oportuno, por homens. As condições históricas atuais, as grandes empresas, a ideia de produtividade, de velocidade, de competitividade é que impede essa utilização correta das técnicas de informação, por enquanto. Mas a população já descobriu que ela não muda com velocidade, não é isso?

DV - O sr. é mesmo um otimista, não é?

Milton Santos - Sou inteiramente otimista.

DV - O que a gente vê hoje é que a propagação dessas ideias está cada vez mais difícil. Os jovens estão cada vez mais perdidos, sem ideologias, sem ideias. . o que a gente está vendo. E o sr. diz também que a academia não traz novidades. Por que é tão propício agora? Justamente por isso? Está na hora de entrar com as ideias? Mas como?

Milton Santos - É uma busca. O importante é que há uma busca. Os jovens estão sequiosos de ouvir. Eu vou dizer uma coisa: a minha agenda está cheia de compromissos para o ano que vem.

DV - Para falar para jovens?

Milton Santos - Jovens e menos jovens. Mas, sobretudo, jovens. E eles passam por cima dos seus professores. Eles pressionam os professores. Não falando do meu exemplo pessoal, mas é isso que acontece, pressionam o diretor da escola, da faculdade etc. Pressão. Há uma coisa nova surgindo aí. E talvez via rap, via música popular. Via tudo isso. Essa produção da política feita fora da política. Que é Gil, é Marisa Monte, é Chico, é Caetano, é Milton Nascimento que produzem a cultura. O que é curioso é que a cultura é produzida nos lugares. Acho que isso é que é importante. Essa relação que se recria entre cultura e lugar.

DV - Muito obrigado.

Milton Santos - Estão otimistas? (Risos.) Mas não foi otimismo por encomenda, viu?

Rio de Janeiro, dezembro de 1997

Fonte: DEMOCRACIA VIVA • Nº 2 • FEV 98

Fotos: Wagner Santana

Entrevistadores:

  • Cândido Grzybowski, sociólogo, diretor do IBASE
  • Regina Novaes, antropóloga, professora da UFRJ e pesquisadora do ISER
  • Alcione Araújo, escritor e dramaturgo
  • Clara Góes, psicanalista, escritora e professora da UFRJ
  • Regina Zappa, jornalista
  • Átila Roque, historiador
  • Pascoal Soto, editor

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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