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A ameaça aos consensos do Cairo

Sonia Corrêa

Coordenadora da Rede Dawn/Brasil

Introdução

Dez anos após a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, ocorrida no Cairo, controvérsias à esquerda e à direita têm provocado debates acirrados, principalmente no que diz respeito a temas como direitos reprodutivos e sexualidade. Em aliança com o Vaticano e os países islâmicos, os Estados Unidos pressionam fortemente os governos que apoiam as deliberações da conferência. Essa atitude, no entanto, vem encontrando resistência, de modo especial em países da América Latina, que lutam contra o fundamentalismo (uma primeira versão deste texto está incluída em Dez anos do Cairo: tendências da fecundidade e direitos reprodutivos no Brasil, publicação organizada por André Caetano, Sonia Corrêa e José Eustáquio Diniz Alves. O Observatório da Cidadania agradece à Abep e à Unfpa, responsáveis pela publicação, e aos editores a cessão do texto).

O debate sobre população e desenvolvimento tem sido, desde o século 18, atravessado por controvérsias agudas. Na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), ocorrida no Cairo, em 1994, muito embora tenha sido possível construir um novo consenso sobre essa correlação - ancorado em princípios de direitos humanos, igualdade de gênero e promoção do bem-estar -, as negociações relativas a alguns conteúdos consumiram horas intermináveis de trabalho. Falou-se muito sobre as mais de 40 horas gastas no debate dos parágrafos 7.2 e 7.3, que definem a saúde e os direitos reprodutivos, bem como do parágrafo 8.25, que trata do aborto como um grave problema de saúde pública.

Entretanto, deve-se dizer que outros aspectos do Programa de Ação do Cairo foram também objeto de debates acirrados. Um exemplo é o terceiro capítulo, que traz análises e recomendações sobre população, pobreza e desenvolvimento sustentável, o mesmo se aplicando ao parágrafo 4.1, que elabora uma definição de família, além de escaramuças pontuais em relação a igualdade de gênero, migração, papel das ONGs e usos das tecnologias.

Desde 1994, registram-se, em todo mundo, avanços importantes, seja no que diz respeito à legitimação da linguagem do Cairo - especialmente no caso de saúde e direitos sexuais e reprodutivos -, seja em termos de implementação de políticas nacionais consistentes com as diretrizes do Programa de Ação. Contudo, críticas ao consenso do Cairo têm florescido tanto à "esquerda" como à "direita" do espectro político.

À esquerda, feministas e vozes da demografia, especialmente latino-americana e indiana, afirmam que o documento final não dedica suficiente atenção às questões de desenvolvimento, pobreza e desigualdade. As posições mais extremas chegam a afirmar que o Cairo foi apenas uma nova versão suavizada do velho "controle populacional". Mais especificamente, no campo demográfico, há quem diga que o documento final carece de elementos mais precisos sobre a dinâmica demográfica global, em especial no que se refere à estrutura etária e ao envelhecimento.

À "direita", particularmente nos Estados Unidos, os setores mais empedernidos do planejamento familiar desenvolveram o argumento de que a agenda do Cairo era demasiadamente ampla e complexa, e isso dificultava a implementação e, em especial, a alavancagem de recursos. Esse argumento leva facilmente à conclusão de que é mais fácil retomar aos velhos e bons parâmetros das necessidades não atendidas de planejamento familiar, usadas eventualmente como estratégia para reduzir a pobreza.

Estratégia Conservadora

Cairo+5 é como se convencionou chamar o processo de revisão e a avaliação da CIPD, que ocorreu passados cinco anos da realização da conferência. O mesmo ocorre com relação a Pequim+5, que é o processo de revisão e a avaliação da Conferência Mundial sobre as Mulheres, ocorrida em Pequim, em 1995.

Porém, é preciso dizer que as grandes controvérsias relacionadas ao Cairo se situam no campo dos conteúdos relativos a família, sexualidade, reprodução e adolescência, que têm estado sob um ataque persistente das forças do conservadorismo moral. No âmbito da própria Organização das Nações Unidas (ONU), esse ataque assumiria contornos dramáticos, tanto no Cairo+5 como em Pequim+5, quando essas forças fizeram o possível para destruir os consensos de 1994 e 1995. Nossa interpretação, já naquele momento, era de que o Vaticano e os países islâmicos haviam adotado a estratégia de impedir a adoção de novos documentos, pois isso poderia ser politicamente interpretado como se os consensos do Cairo e de Pequim não tivessem mais ressonância. Essa estratégia continua em pauta, e seu poder de fogo foi claramente amplificado a partir da chegada do governo Bush ao poder no início de 2001.

Desde então, os ataques à agenda do Cairo têm sido sistemáticos e cada vez mais virulentos. Basta lembrar que a primeira medida administrativa tomada por Bush foi exatamente a reatualização da chamada Lei da Mordaça, que impede o uso de recursos da Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) por parte de ONGs de países que realizem atividades relacionadas ao aborto. Isso refletiria sobre outros processos, como, por exemplo, na Sessão Especial da Assembleia Geral sobre HIV/Aids, em 2001, quando foi proposta a abstinência como único método de prevenção do HIV/Aids. Árduas batalhas sobre serviços de saúde sexual e reprodutiva tiveram lugar na revisão de dez anos da Cúpula da Infância, ocorrida em maio de 2002. Nas sessões ordinárias da Comissão para o Status da Mulher, ocorreram vários conflitos relacionados a gênero, violência sexual e tráfico de mulheres. É importante mencionar que, nessas ocasiões, os Estados Unidos operaram em aliança aberta não só com o Vaticano, mas também com os países islâmicos.

Estados Unidos garantem restrições

Em 2001, as pressões estadunidenses fizeram com que as metas do Cairo fossem excluídas da pauta de indicadores, definida para monitorar as chamadas Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDM), que apenas contemplam medidas de morte materna e infecção pelo HIV/Aids. Em julho de 2002, o Congresso estadunidense bloqueou a transferência de US$ 34 milhões para o Fundo das Nações Unidas para a População (Fnuap), ampliando ainda mais as restrições financeiras para implementação do Cairo, especialmente nos países mais pobres.

Por essa razão, desde 2002 os países amigos do Cairo e as redes internacionais engajadas com a agenda da conferência, compreendendo que essas pressões colocavam em risco o processo dos dez anos da Conferência do Cairo (Cairo+10), empenham esforços para evitar uma nova negociação global em 2004. Em abril de 2002, a Comissão de População e Desenvolvimento da ONU (CPD) decidiu, com forte apoio europeu, que o processo de revisão seria realizado apenas nos planos regionais e numa perspectiva "técnica", ou seja, seria evitada a renegociação de conteúdos e definições.

Os Estados Unidos são membros plenos da Comissão Econômica e Social para a Ásia e o Pacífico (Escap) porque controlam territórios no Pacífico. Da mesma forma, alguns países europeus tornaram-se membros plenos por conta de antigos territórios coloniais.

Ainda em outubro de 2002, numa reunião preparatória da Comissão Econômica e Social da Ásia e Pacífico, realizada em Bangcoc, a delegação estadunidense anunciou publicamente que não reafirmaria os compromissos do Cairo. Todas as referências, no documento final, a serviços de saúde sexual e reprodutiva e a direitos sexuais e reprodutivos foram postas entre colchetes, ou seja, tornaram-se objeto de negociação por falta de consenso. A arrogância dos Estados Unidos provocaria reação negativa por parte de vários países asiáticos e, sobretudo, das redes internacionais que se mobilizaram rapidamente para evitar um desastre.

Assim, na etapa final da conferência, os Estados Unidos ficaram completamente isolados, e o documento do Cairo foi reafirmado. Posteriormente, ficaria claro que outras negociações regionais aconteceriam: na América Latina e Caribe e na África. Além disso, a mesma tensão brutal se reproduziria nas sessões ordinárias da CPD de 2003 e 2004. Em todas essas ocasiões, o núcleo central do embate seria reafirmar ou não o programa de ação.

Na sessão da CPD de 2003, foi possível, a partir de uma aliança inédita entre o Grupo dos 77 e a União Europeia, isolar uma vez mais os Estados Unidos. Mas, na sessão de março de 2004, produziu-se um sério impasse, entre outras razões, porque, na mesma semana, discutiu-se um boletim administrativo do secretário-geral Kofi Annan que anunciava uma nova regra da ONU assegurando benefícios e pensões a parceiros e parceiras do mesmo sexo de seus funcionários e funcionárias, sempre que a regra exista nas leis nacionais de seus países de origem.

Os países islâmicos, em associação com os Estados Unidos e o Vaticano, contaminaram a discussão da CPD, alegando insidiosamente que a reafirmação do Cairo significaria também a aceitação do "casamento gay". A resolução em negociação na CPD só seria finalmente aprovada em maio de 2004 após uma série de negociações informais. Entretanto, o resultado final não foi ideal, pois se incluiu no texto uma referência ao relatório da conferência na sua totalidade, o que significa enfatizar as reservas aos textos. Deve-se dizer, ainda, que, desde 2002, esta tem sido uma estratégia sistemática dos Estados Unidos: incluir, no corpo dos textos aprovados ou em notas, a menção explícita às reservas feitas no Cairo, de maneira a legitimá-las politicamente.

Entre o risco e a resistência

O processo do Cairo+10 na América Latina e no Caribe deve ser situado em relação a esse contexto mais amplo, uma vez que os Estados Unidos também são membros plenos da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), que é a instância institucional onde o processo regional se desenrola, no qual destacamos a reunião chamada "Mesa Diretiva de Acompanhamento da CIPD", ocorrida em março, na cidade de Santiago, no Chile. Nessa oportunidade, houve a presença inédita de mais de 40 países e de mais de 300 participantes, representando ONGs e redes de mulheres e de jovens.

O resultado político de Santiago foi excepcional. Não só a declaração final reafirma o Cairo como também inclui menção ao parágrafo 63 do Cairo +5, que trata de medidas de atenção ao aborto inseguro; além disso, adota linguagem clara em relação à saúde e aos direitos de atenção aos adolescentes. Em relação especificamente ao aborto, o resultado pode e deve ser atribuído à posição firme dos países do Mercosul.

Uma vez mais, em Santiago, a delegação estadunidense foi isolada. Em sua declaração final, os Estados Unidos reiteraram, numa sala atenta e silenciosa, sua posição a favor da abstinência e contra o aborto. Fizeram, sobretudo, referências veementes aos recursos financeiros que investem na região para atender a necessidades de planejamento familiar e prevenção do HIV/Aids, indicando que lançariam mão disso para pressionar e punir os países que dependem desses recursos.

É importante destacar ainda que, no início de junho, ocorreram dois processos de negociação regional, cujos resultados também podem ser comemorados: o primeiro deles foi a reunião regional africana para o Cairo+10, realizada em Dacar, no Senegal, cujo documento final também reafirmou o Cairo; e o segundo foi a 9a Conferência Regional Latino-Americana e Caribenha da Mulher (Pequim+10 regional), na Cidade do México, durante a qual a delegação estadunidense teve, novamente, um desempenho conservador e arrogante. Segundo a nota de imprensa produzida pelas organizações feministas durante o processo de negociação:

O governo norte-americano enviou um comunicado a alguns países da região, no qual informa as suas ações, enfatizando o fato de que há uma soma de US$ 2,5 bilhões no orçamento da iniciativa global Desafio do Milênio que ainda não está aprovada para o ano de 2005 e que poderia beneficiar os países da região. Este comunicado pode ser interpretado como uma tentativa de manipular a posição dos governos presentes na Nona Conferência Regional da Mulher para que obedeçam aos critérios explicitados pelos Estados Unidos na negociação. Esta ação parece se constituir uma clara violação da soberania dos países da América Latina e do Caribe.

Porém, a despeito das pressões dos Estados Unidos e de uma forte presença de grupos conservadores mexicanos na conferência, assim como havia acontecido em Santiago, a declaração final também reafirmou as plataformas de Cairo e Pequim, fazendo, ainda, menção explícita aos direitos sexuais e reprodutivos.

Três meses mais tarde, o processo regional se encerraria em Porto Rico, quando a delegação dos Estados Unidos repetiu ameaças, ofereceu resistências e pressionou países individualmente, especialmente os centro-americanos. No entanto, a resolução final de novo reafirma o Cairo e endossa a declaração que resultou da reunião de Santiago. Surpreendentemente, os Estados Unidos se uniram ao consenso, ainda que - juntamente com El Salvador, Costa Rica e Nicarágua - tenham feito reservas explícitas em relação ao aborto. Muitas pessoas interpretaram essa "flexibilidade" como uma atitude relacionada ao processo eleitoral de 2004. Por esse viés, em San Juan (Porto Rico), a administração Bush evitou projetar uma imagem de intransigência e arrogância.

Avanços na Implementação do Cairo

Chegamos, portanto, em meados da primeira década do século 21, tanto nos planos nacionais como global, em condições, de maneira geral, muito mais desfavoráveis do que as observadas dez anos atrás. Entretanto, mesmo em tempos tão sombrios, registram-se movimentos de resistência e não poucos "saltos adiante". Nesse sentido, o momento político mais significativo dos últimos tempos foi, sem dúvida, a grande marcha que aconteceu em Washington em abril de 2004. Nesse evento, ficou explicitada para o mundo a contradição aberta entre a política de governo em relação ao aborto e as posições da sociedade estadunidense. A marcha foi, de fato, a maior manifestação pública de protesto contra George W. Bush desde que ele assumiu em janeiro de 2001.

Mas também podemos - e devemos - contabilizar os resultados das várias negociações que tiveram lugar recentemente nas Nações Unidas como sendo expressão de derrota das posições fundamentalistas contrárias ao Programa de Ação da CIPD. Desde 2002, as posições progressistas que apoiam a agenda do Cairo "venceram" em pelo menos 11 oportunidades: a revisão de dez anos da Cúpula da Criança (Nova York, 2002), Rio+10 (Johanesburgo, 2002), a Conferência Asiática de População e Desenvolvimento (Bangcoc, 2002)), duas sessões ordinárias da Comissão de População e Desenvolvimento (Nova York, 2003 e 2004), o processo regional na América Latina e no Caribe  (Port of Spain, Santiago e San Juan, 2003 e 2004), o processo regional Cairo+10 na África (Dacar), a 9a Conferência Latino-americana e Caribenha da Mulher (México, 2002) e a aprovação na Assembleia da Organização Mundial de Saúde (OMS) do documento "Estratégias para a Saúde Reprodutiva" (maio de 2004). Isso não é exatamente pouca coisa quando se consideram as condições geopolíticas globais.

Finalmente, é preciso dizer que, a despeito de inúmeros obstáculos, pelo menos na América Latina, a implementação do Cairo avança. A Unidade de Gênero da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso) do Chile elaborou indicadores visando medir um Índice de Compromissos Cumpridos (ICC), no que diz respeito à Plataforma de Ação de Pequim em oito países da região: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Peru e Uruguai. Os indicadores foram agrupados em cestas que correspondem a três áreas estratégicas: participação e acesso ao poder, autonomia econômica e emprego, saúde e direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. O resultado final indica que há progresso exatamente em relação à terceira área.

Isso é muito positivo, pois, como bem sabemos, são inúmeros os fatores que comprometem a qualidade das políticas de saúde sexual e reprodutiva e, mais especialmente, o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos. Em relação a isso, contabiliza-se falta de recursos e de vontade política ou até falta de clareza conceitual e dificuldades operacionais. Sobretudo em todos países da região, os governos se movem com muita cautela nesse terreno das políticas públicas, pois estão constantemente reféns das ameaças feitas pelas hierarquias religiosas ou se mostram temerosos de perder apoio eleitoral dos setores conservadores. Os avanços identificados pelo ICC da Flacso sugerem que, pelo menos na América Latina, a agenda do Cairo se configura também como uma plataforma estratégica de resistência política contra os fundamentalismos e de defesa sistemática do Estado laico como condição e garantia da democracia

Fonte: Observatório da Cidadania, Relatório 2004; ITeM/Ibase, Rio de Janeiro. p.32-34

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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