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A arte e sua relação com o espaço público
Agnaldo Farias
Professor do curso de Arquitetura da USP/São Carlos
O texto a seguir reúne trechos da palestra que Agnaldo Farias proferiu na abertura do V Encontro Técnico dos Pólos da Rede Arte na Escola, na Universidade de Caxias do Sul (UCS), em 28 de abril de 1997. Logo na introdução, ele enfatizou que, antes de ser crítico de arte, é professor. "Na verdade, meu trabalho como crítico e curador é um desdobramento da minha atividade como professor", sublinhou, relatando um pouco da experiência de quem já lecionou Filosofia no ensino médio e vem participando ativamente do dia-a-dia do curso de Arquitetura da USP/São Carlos, desde sua criação, em 1985.
Hoje, dentro das mais diversas comunidades deste país, produzimos conhecimento sobre arte, construímos escolas de arte e nos organizamos em grupos que atuam realizando exposições e desenvolvendo uma imensa gama de atividades relacionadas com a arte. Todo esse processo alimenta-se de um vasto conhecimento acumulado, uma série de práticas, conceitos e visões acerca do que seja arte, do valor estético de determinadas produções artísticas, entre outros aspectos que cuidamos em transmitir para os alunos. Porém, é curioso notar que aquilo que mais interessa na arte não é o que já temos na conta de algo consolidado, mas, ao contrário, é o que ela carrega e promove de incerteza, de estranhamento. No campo da arte, isso não só é natural, como também é o motor dela mesma, e é um erro que isso não seja encarado desse modo!
Assim, na qualidade de professor, procuro o tempo todo transmitir ao aluno que as formulações apresentadas são formulações, e não verdades absolutas. Alerto-os para o fato de que será sempre preciso deixar espaço para "outra leitura", aquela leitura que não possuo. Naturalmente, é preciso também esclarecer que toda a produção artística, assim como qualquer objeto produzido pelo homem, está inscrita na história. Portanto, também não é o caso de se pensar que não haja objetividade possível no discurso sobre arte. É necessário que o aluno saiba da genealogia, por exemplo, de uma obra qualquer que se resolva analisar, como também é fundamental que ele seja informado do campo de referências teóricas utilizadas na abordagem dessa mesma obra. É dever do professor, quando fala, comenta ou julga alguma coisa, apresentar o "lugar teórico" de onde ele fala, comenta e julga. Dito de uma outra maneira, é dever do professor jamais esquecer aqueles dois versos do Fernando Pessoa: "O que em mim sente está pensando" e "Não sou eu quem descrevo, eu sou a tela e oculta mão colore alguém em mim". Essa posição parece-me essencial para a formação de alunos abertos a novas possibilidades e que se sintam à vontade para pensar novas relações.
Isso posto, e para chegar à questão espaço público e sua relação com a arte contemporânea, relatarei uma experiência. Na Documenta de Kassel, em 1992, havia uma obra de Anish Kapoor que estava chamando muito a atenção do público. Naquela altura, Kapoor era um artista de 38 anos que, dois anos antes, havia sido o representante oficial da Grã-Bretanha na Bienal de Veneza.
A obra estava na praça em frente ao prédio central onde acontecia a Documenta, o Museu Fridericianum, e as pessoas enfrentavam uma fila de uma hora e meia para entrar. O trabalho era um grande cubo branco, de aproximadamente 6 metros de aresta, que tinha uma porta estreita em uma de suas faces. Quando estava quase na minha vez, saiu um sujeito lá de dentro bradando a sua indignação: "Uma hora e meia para ver um tapete redondo no chão!". Nós, os mais próximos da fila, nos entreolhamos sem graça, enquanto eu pensava: "Mais um que a arte contemporânea perde...". Na verdade, a sensação recorrente é que a mídia convida as pessoas para que conheçam a arte contemporânea, e, uma vez diante dela, as pessoas, que a pensavam algo de compreensão tranquila e imediata, sentem-se rechaçadas.
Pois bem, passados alguns minutos entrei com um grupo de oito a dez pessoas naquele espaço tomado por uma penumbra muito intensa. De fato, a pouca iluminação era zenital, escorria lateralmente pelo fio de luz quadrado formado pela pequena distância entre o forro e as quatro paredes. A luz era insuficiente. Apesar de lá fora ser dia pleno, dentro passava-se por aquela curiosa sensação, típica de quem se defronta com o escuro: ficar tateando visualmente o ambiente. Sabemos bem o que acontece quando o olho não encontra nenhuma escora, não consegue encontrar o limite. Nessas situações, nós nos damos conta de que o espaço também é uma invenção da luz. O espaço vai variando à medida que o corpo vai se arremessando para fora de si, vai conhecendo cada vez mais a extensão do entorno tendo o olhar como uma espécie de abre alas.
Havia, dentro da obra de Kapoor, uma pessoa cuidando para que as pessoas se organizassem em círculo, em torno de algo que estava no centro e dotado de formato circular, mais escuro do que a própria escuridão do ambiente: o tal tapete. Num primeiro momento, esse tapete não funcionava exatamente como um tapete, isto é, como um plano depositado no plano do chão. Tudo era muito escuro, e aquilo que vinha do chão tinha uma escuridão ainda mais intensa. E algo escuro dentro da escuridão, como sabemos, funciona aos nossos olhos como algo que pulsa, como se estivesse animado por uma respiração. Quanto a isso, lembro sempre do escritor Joseph Conrad, no seu livro Coração das trevas, quando ele descreve "as sombras se moviam dentro da noite", sendo as sombras os estivadores negros trabalhando no porto. É essa a ideia de alguma coisa escura que se movimenta dentro da escuridão que quero frisar.
Voltando a Kapoor, olhávamos para o chão com uma certa cautela porque, de imediato, não sabíamos o que era aquilo. Paulatinamente, íamos reconhecendo o espaço e, por fim, nos localizávamos dentro dele. Então, aquilo que estava no chão pulsando como uma anêmona parecia se acomodar sob a aparência de um tapete. (Deve ter sido nesse momento que o visitante a que fiz referência irritou-se e correu para fora dali.) A aparência de tapete ocorria por conta do uso frequente que Kapoor faz de pigmento em pó, material que confere uma qualidade muito característica, uma textura aveludada diferente, por exemplo, da textura de uma superfície espelhada, reflexiva, pela qual o olhar desliza. Tirando partido desse material, Kapoor ratifica a ideia de que o olhar tem tato. Pois bem, de volta ao segundo momento, isto é, para quando a forma se acomodava como tapete, vale dizer, transformava-se num tapete, as pessoas se acomodavam, aproximavam-se do trabalho, debruçavam-se sobre ele, eram quase que sugadas para dentro dele. Só então se revelava a verdadeira natureza daquilo que estávamos olhando: não era um tapete, mas sim uma abertura circular, um buraco cavado no chão.
Confesso que saí dali muito incomodado. Vocês riem, mas é para isso que serve a arte, é para incomodar mesmo. Esse é o papel da arte, ela nos coloca diante de determinadas coisas que já conhecemos, mas que, por seu intermédio, as revemos e reconhecemos.
É fato que nós, da área de artes, muitas vezes ficamos apreensivos com nossa insegurança diante de certos trabalhos artísticos, de nossa profunda ignorância diante deles. Essa apreensão se deve ao fato de sermos frequentemente identificados como aqueles que sabem. Estamos sempre corremos o risco de alguém nos perguntar: "O que isso quer dizer?". Não sei quanto aos outros, mas são muitas as vezes em que desejo que não perguntem isso para mim, até porque não saberia o que responder na hora. Ainda mais quando se está num evento como a Documenta de Kassel ou a Bienal de São Paulo, que são verdadeiros hipermercados de problemas. Nesses eventos, existem 700 problemas colocados em cada esquina, cada um deles é uma equação de quatro incógnitas.
Retomemos a discussão sobre a obra de Kapoor, algo que se assemelha a uma escultura. Até a estatuária de Rodin, trabalhava-se com a certeza de que a escultura, antes mesmo de ser um corpo tridimensional - até porque uma árvore é um corpo tridimensional -, é, por definição, alguma coisa posicionada sobre uma base e que faz referência a algo (um busto, uma cena histórica, uma figura bíblica) fora dele. Até a passagem do século XIX para o XX, prevaleceu, soberana, a ideia de que uma escultura é uma mensagem, uma evocação, uma lembrança mitificada, engrandecida, apenas encarnada em pedra, bronze ou madeira. Como se sabe, o elemento diferencial da produção moderna foi o fato de ela ter como principio chamar a atenção para os seus elementos constitutivos, sua importância enquanto corpo, materialidade, cor, gesto, vontade de formalização e discurso, e não tanto como uma metáfora, ou seja, algo que fale de outra coisa. Sabemos que Brancusi foi o primeiro a se digladiar com esse problema, o primeiro a efetuar a passagem entre a preponderância do tema para a preponderância da forma. Questão em cujo um dos extremos possíveis encontra-se Kapoor. Brancusi fez isso pela incorporação da base, do pedestal, no seu raciocínio sobre a natureza da escultura. Ao considerar a base como um corpo, um volume, pensou-o como não como um elemento passivo, um mero suporte daquilo que lhe era colocado em cima, mas como um corpo profundamente relacionado com o corpo que ele aparava. A base deixava assim de servir como um moldura, uma demarcação de um espaço que nada tem a ver com o nosso espaço, trivial, profano. Similarmente aos tronos que dentro dos ambientes eram posicionados numa altura mais elevada, uma maneira de sublinhar a importância hierárquica daquele que os utilizavam, a base de uma escultura - e pensemos nas estátuas equestres que ornamentam algumas de nossas principais praças e no alto das quais nosso heróis brandem suas espadas - é o lugar do símbolo, o patamar mais nobre e elevado onde mereciam ficar as imagens a serem cultuadas.
Ora, de volta ao cubo branco de Kapoor, vemos que ela se trata de um grande pedestal, uma enorme base, muito embora esvaziada, sem nada sobre ela, sem um símbolo, o que não deixar de ser um comentário sobre a posição da arte dentro da sociedade, dentro da cidade contemporânea. Não que a arte não tenha lugar, mas certamente seu lugar não é mais o mesmo de antigamente. De fato, no caso de Kapoor, a arte não é alguma coisa ostensivamente visível, com a qual você tem uma relação de exterioridade. Ele nos coloca dentro da obra. E como se não bastasse, existe um buraco que está dentro do chão, trata-se de uma obra que se expande para baixo, negativamente. Uma obra que o espectador sequer sabe até onde vai. Seu nome, a propósito, é "Descendo para o limbo...".
A arte, portanto, não é algo que se oferece, mas é uma potência. Provoca-nos uma sensação que não se conclui nos sentidos. De fato, somente sentidos não dão conta. Fui ter a dimensão e uma noção mais precisa da natureza do "buraco" de Kapoor, sua obra, quando comprei o catálogo da exposição, que mostrava um corte do trabalho, uma perspectiva axonométrica pela qual verifiquei que ele era uma esfera perfeita, cavada no chão. Segundo a representação, aquilo que se podia ver correspondia a uma espécie de "tampa" de uma laranja, algo cujo interior só podia ser visto de cima. O interessante é que o desenho do objeto é o projeto do objeto. Quem garante que o artista tenha se dado ao trabalho de fazer uma esfera? Sob esse ponto de vista, a revelação total do trabalho se dá num segundo momento, longe dele, a partir de seu exame através de um outro meio, qual seja ele, o catálogo da exposição, um meio impresso.
Um outro trabalho artístico que eu gostaria de comentar na esteira desta conversa sobre arte e sua relação com o espaço público refere-se a uma situação vivida pelo personagem Auggie Wren, personagem criado por Paul Auster e interpretado por Harvey Keitel no filme Cortina de fumaça. Um detalhe no filme me interessou em particular, por essa relação da arte com o cotidiano da cidade. Auggie é gerente de uma tabacaria que fica numa esquina do Brooklyn, em Nova York, e um de seus clientes é um escritor, interpretado por William Hurt. O escritor fica amigo de Auggie e aproxima-se dele. Um dia, Auggie recebe o escritor em casa e resolve mostrar a ele seu trabalho fotográfico, que consiste no seguinte: todos os dias, às 8 horas da manhã, há muitos anos, ele coloca a câmera fotográfica exatamente no mesmo lugar, na mesma posição, e bate uma foto. De principio, o escritor fica passando em revista os vários cadernos fotográficos, vai folheando, dizendo que está achando interessante, vai virando, virando, virando as páginas. Até que Auggie diz: "Mais devagar, você não está olhando". O escritor responde: "Mas é tudo igual". E o fotógrafo insiste: "Não. Não é tudo igual, olhe com atenção". Só então, à medida que vai desacelerando o olhar, o escritor começa a observar as nuanças, perceber as diferentes luzes, nas diferentes épocas do ano. Ele vai vendo as pessoas retratadas e, enfim, vê a própria mulher que foi assassinada. Aquilo é surpreendente, e ele não se controla e começa a chorar. Esse momento é muito tocante, é muito forte a surpresa de que aquilo que interessa é o detalhe, desde que se esteja atento.
Faço uma relação disso com os trabalhos dos situacionistas, aquele grupo de artistas que gostavam de visitar cidades que não conheciam, em grupos, armados de máquinas e gravadores e tudo o mais que pudessem usar para captar o que é a cidade. Eles encaravam a própria cidade como alguma coisa sem forma definida, uma miríade de acontecimentos ininterruptos, onde tudo acontece a cada minuto, a cada segundo.
O problema é que, quando estamos na cidade, temos objetivos. Vamos de um ponto a outro e não percebemos o que há no meio do caminho. Essa é a diferença da arte com relação ao resto, assim como da dança para a caminhada. Na caminha, o objetivo é chegar a determinado ponto; na dança, é o corpo por ele só, com tudo o que pode oferecer, é uma certa ociosidade. E é fundamental para que você possa redescobrir o próprio corpo. Como diz Millôr Fernandes, "o jogo de xadrez é fundamental para desenvolver a nossa capacidade de jogar xadrez". É esse livre pensar. É esse saber desinteressado. É essa capacidade de se abstrair, de focar a atenção numa coisa que se resolve ali mesmo. Não tem aquela razão pragmática de quem contempla o mundo com a intenção de buscar algo que está além dele.
Em seu livro clássico As cidades invisíveis, Italo Calvino nos apresenta Kublai Khan, o imperador mongol que tinha um império tão vasto que ele próprio não o conhecia. Por conta disso, nomeava os embaixadores para que atuassem como seus olhos. Esses embaixadores visitavam as diversas cidades que compunham o império e voltavam para a corte a fim de contar ao imperador como eram aquelas cidades. Marco Polo era o embaixador preferido porque suas cidades eram as melhores. Mas que cidades? As cidades que ele visitava ou as que ele inventava? Afinal, cada cidade era tão espantosa que bem podia ser uma invenção. Em determinado momento, Kublai Khan diz que seu embaixador preferido está blefando. Esse é, talvez, um dos melhores momentos do livro, quando ele insinua que Marco Polo não pode conhecer tantas cidades assim, que as cidades por ele visitadas e posteriormente descritas seriam uma mesma cidade, apenas vista por ângulos diferentes. Todas elas seriam Veneza, a única cidade que o Marco Polo efetivamente conhecia. A hipótese - ou acusação - de Kublai é muito possível. Afinal, quantas cidades cabem dentro de uma cidade?
Isso me lembra uma poesia de Jorge Luis Borges na qual Buenos Aires é "a outra rua, o centro secreto das praças... o alheio, o lateral, o bairro que não é teu nem meu, o que ignoramos e queremos". Então, são mesmo muitas as cidades que cabem dentro de uma mesma e única cidade. Essa é a hipótese de Kublai Khan, digo, de Calvino, e a resposta de Marco Polo, digo, de Calvino é igualmente extraordinária: "Mas você há de convir, ó poderoso Kublai, que uma coisa é a cidade e outra é o discurso que a descreve, mas entre ambas existe uma relação". Quer dizer, o discurso que a descreve não se confunde com o objeto, tem relação com o objeto, mas não é objeto. Nós vivemos nos esquecendo disso. A rigor, um texto como esse do Italo Calvino só pode ser pensado dentro dos marcos da modernidade. Na modernidade, temos, mais do que nunca, a consciência de que aquilo que se está fazendo é uma aventura de linguagem. Então, essa é a força que a palavra pode ter, ou que uma boa tela pode ter, ou que uma boa escultura pode ter, ou que uma boa obra de arte, seja lá em que categoria ela se enquadre, pode ter. É disto que estamos falando: da capacidade que o homem tem de apresentar coisas, de colocá-las para os outros homens e para si próprio e de se extasiar diante disso.
Eu, por exemplo, leciono na USP, em São Carlos, e quase toda a informação que tenho é de segunda mão. Quase toda a informação que tenho é impressa, no melhor dos casos. No entanto, os europeus se acostumaram a dizer, exatamente para afirmar a nossa impotência, que só poderíamos criar diante dos museus, diante da obra ao vivo. Então, como fazemos, se nossos museus são capengas, se nossa produção, ao menos aos olhos deles, não tem tanta importância? Tanta importância com relação a quê? O que se está discutindo em produção artística? É diante desses problemas que nos movemos.
O que quero dizer é que nos esquecemos, por exemplo, de que, por volta dos anos 10 do século XX, Marcel Duchamp faz uma crítica de uma iconoclastia total. O que ele mostra, e que Joseph Beuys tempos depois mostra também, é que todos nós somos artistas, que a arte não está na capacidade de construir um objeto com certo virtuosismo, mas sim na capacidade de recuperar o mundo pela importância que se dá a ele. Se nós ficarmos achando que não somos capazes de fazer arte porque não temos um Paul Klee, um Mondrian, um Pollock na nossa cidade, estaremos perdidos. Quero chamar a atenção para o fato de que existem outros modos de referência, outras formas de se pensar a arte, de perceber essa infinita e variada matéria que há no detalhe, como nos mostra o cineasta que fez Cortina de fumaça.
A meu ver, uma das piores falsas questões que persiste neste país diz respeito ao que é regional, nacional ou internacional. Toda a grande arte, em última análise, é regional. Afinal, de onde é que o artista vai falar, senão do seu próprio lugar? E o seu lugar pode ser Itirapina, desde que ele olhe para lá, porque Itirapina está no mundo. Também é preciso entender que aquilo que é inventado na Europa ou na Índia não pertence à Europa ou á Índia, mas sim pertence ao mundo, porque o nosso mundo, em primeiro lugar, é tudo aquilo que ecoa em nós, seja proveniente de algum espaço e tempo remotos ou da esquina mais próxima.
O que importa é despertar o aluno para essa riqueza que o mundo tem e para a riqueza que pode ter a relação dele com o mundo. Nesse sentido, a cidade é o maior exercício que temos. Na cidade, há uma proliferação de matérias. É uma memória ao mesmo tempo individual e coletiva porque os espaços falam de nós.
Quero encerrar citando uma novela de Guimarães Rosa, da qual eu gosto muito. Manuelzão e Miguilim é uma novela inteira muito sonora, auditiva. No fim do texto, Miguilim está na estrada quando vêm dois homens a cavalo. Na verdade um só. Um homem que pergunta por que Miguilim está com o olho tão apertado: "Você não está bem da vista?". Miguilim não sabe. O sujeito tira os óculos e os coloca em Miguilim. Então, ele começa a ver tudo: as cores, o telha da terra, o arame dos insetos, os vidros claros da manhã. Ao mesmo tempo, esse homem que dá a visão a ele, esse homem que tudo pode, vai levá-lo a uma outra cidade. E ele pergunta: "Mãe, é o mar?". E ele fala uma coisa sensacional: "Mãe, por que que acontece tudo?".
A arte é, talvez, a última possibilidade deste mundo tão opaco. E está rigorosamente nas mãos de quem trabalha com educação fazer com que os alunos que estão se formando percebam a infinidade de coisas que compõem o mundo. Entendê-lo como sendo um elenco de imagens gloriosas que a nossa expressão produziu é pouco. O mundo é mais do que isso. Se tivermos o quadro, será perfeito, maravilhoso, mas uma fotocópia já serve. Temos - e podemos - de conjugar esse esforço em fazê-los saber a história da arte com uma visita àquilo que é próximo deles, deixando e estimulando que dentro de cada um deles aflorem elementos como a evocação, a imaginação, a nostalgia, a memória. Assim, quando você pedir para um aluno que olhe para o mundo, para que escolha um fragmento daquilo que interessa da sua cidade e da sua experiência nela, ele certamente irá eleger alguma coisa. O que é o mesmo que dizer que ele irá se escolher dentro das coisas que, em última análise, existem porque fazem sentido para ele. Ele vai se reencontrar no mundo.
Publicado em 31 de dezembro de 2005
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