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A cor da desigualdade no debate orçamentário
Rosana Heringer
Socióloga, pesquisadora da Universidade Cândido Mendes (Ucam), da Cepia/Fórum da Sociedade Civil nas Américas e membro do Instituto de Estudos Raciais e Étnicos (Ierê).
Texto extraído do Boletim Orçamento e Democracia, n.13, Out.-Dez.1999
Ao longo desta década houve significativos avanços no que diz respeito à consolidação dos ideais democráticos no Brasil. Apesar da persistência de inúmeros fatores que contribuem para que esta realização esteja longe de se tornar plena, é possível observar o país hoje e avaliá-lo como mais democrático do que há dez ou quinze anos atrás, ao menos no que diz respeito aos aspectos institucionais.
As iniciativas de democratização do orçamento, principalmente através da implantação do orçamento participativo, apresentam-se como uma das mais bem sucedidas formas de realização destes ideais democráticos na prática.
O debate sobre orçamento público vem se tornando mais complexo ao longo dos últimos anos, à medida que diferentes grupos da sociedade aumentam sua participação no debate sobre a definição da alocação de gastos públicos, principalmente no âmbito municipal. Vários têm sido os avanços por parte de grupos comunitários, associações de bairro, entidades voltadas para o atendimento a crianças e adolescentes, organizações de mulheres, entre outras, em fazer valer suas demandas, através da presença na implementação do orçamento participativo.
Contudo, no campo do debate democrático e da implementação de ações destinadas à realização destas propostas, a dimensão racial e étnica ainda não foi incorporada como um dos fatores importantes para a democratização efetiva da sociedade brasileira. Enquanto vários outros grupos específicos foram capazes de fazer valer suas demandas e propostas no campo político e no debate orçamentário em particular, as organizações de defesa da população negra (preta e parda, segundo classificação oficial) e dos povos indígenas ainda se encontram bastante sub-representadas.
Tal ausência explica-se por motivações de ordem histórica que reforçam a interpretação corrente sobre uma suposta harmonia entre os diferentes grupos étnicos e raciais em nosso país, aliada a uma recusa em se examinar profundamente as causas da extrema desvantagem social a que está sujeita a grande maioria da população negra existente no país.
Qual projeto de nação?
Encarar de frente o debate sobre as desigualdades raciais historicamente acumuladas e socialmente reproduzidas no Brasil apresenta-se como um desafio de grandes proporções, pois significa examinar a fundo o próprio projeto de nação que se está construindo e a definição sobre quem são e serão, no futuro, os beneficiários deste projeto. O fato de que a desigualdade e a pobreza têm cor no Brasil faz com que nossas políticas sociais supostamente universais terminem por ter resultados insuficientes, na medida em que não contribuem para a superação desta ordem de desigualdades.
Estudos recentes (como, por exemplo, Mobilidade social no Brasil: padrões & tendências, de Maria Celi Scalon, Iuperj/Revan) demonstram a cristalização das posições sociais em nossa sociedade, tanto em termos intrageracionais quanto intergeracionais. A desigualdade social permanece quase intocável, na medida em que as políticas econômicas não favorecem uma efetiva distribuição de renda e de riquezas. Dentro deste contexto, o Estado precisa agir, através de mecanismos próprios, no sentido da promoção da igualdade.
A fim de que este ideal se realize, em muitos casos são necessárias mais do que políticas universais para superar o quadro de desigualdade existente. Tais ações podem traduzir-se em programas de estímulo ao aumento da escolaridade de grupos específicos da população; em políticas de saúde que levem em conta a incidência diferenciada de doenças entre os grupos étnicos e raciais; na adoção de programas de capacitação e qualificação profissional que estimulem a população negra, as mulheres e jovens, por exemplo, a ocuparem melhores posições no mercado de trabalho, entre outras medidas possíveis.
A viabilidade de políticas deste tipo está intimamente associada ao grau de aceitação do conjunto da população sobre a relevância das mesmas. Para que se chegue a isto, é necessário que se estabeleça um grande debate no âmbito da sociedade brasileira, no qual se busque aprofundar a relação existente entre democracia e igualdade de oportunidades. Da capacidade das organizações da sociedade civil, e do movimento negro em particular, de estabelecer a articulação entre estes fatores poderá resultar uma participação mais ativa no debate sobre orçamento público, estabelecendo novas prioridades e redefinindo o papel do Estado como agente fundamental na promoção da igualdade.
É certo que este não é um debate simples no âmbito da sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, apresenta-se como inadiável se queremos incorporar, não apenas de maneira formal, mas efetivamente, o componente da diversidade à nossa concepção democrática. Tanto o Estado quanto as empresas e organizações da sociedade civil poderão ter um papel relevante nesta tarefa de valorização da diversidade e promoção da igualdade, através de ações diretas e de participação num debate público que contribua para a criação de uma nação mais justa, inclusive em termos raciais e étnicos.
Publicado em 31 de dezembro de 2005
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