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A educação inclusiva e a universidade brasileira

Eniceia Gonçalves Mendes

Professora da Universidade Federal de São Carlos

In: Espaço, nº 18/19 (dezembro/2002 - julho/2003)

O presente artigo aborda o legado de 30 anos da história da institucionalização da educação especial no Brasil. As evidências apontam, como produto dessa história, a falta de acesso à escola, para a grande maioria da população de crianças e jovens com necessidades educacionais especiais, e a natureza excludente da atual rede de serviços. Questiona-se, a partir de então, se a filosofia de "integração escolar" chegou a ser implementada em nosso país e se há risco de o mesmo fenômeno de retórica ocorrer com a educação inclusiva. Discutem-se, ainda, as possibilidades da educação inclusiva na superação dos atuais problemas da área e a responsabilidade da universidade, enquanto agência de produção de conhecimento e de formação, em compor o esforço coletivo, juntamente com políticos, prestadores de serviços, familiares e indivíduos com necessidades educacionais especiais, para a construção da educação inclusiva no Brasil.

Introdução

Embora iniciativas isoladas e precursoras possam ser constatadas em nosso país, na área de educação especial, a partir do século XIX, apenas na década de 70 se constata uma resposta mais abrangente da nossa sociedade a essa questão (Bueno, 1993; Marques et al., 2003).

Nota

O termo "educação especial" vem sendo erroneamente compreendido como o antônimo do termo "educação inclusiva". Cumpre ressaltar que, no presente trabalho, adotamos o termo educação especial como uma área de conhecimento que busca desenvolver teorias, práticas e políticas com vistas a atender às necessidades educacionais especiais diferenciadas de uma parcela da população, que não se aprendem se forem sujeitos apenas as oportunidades regulares oferecidas pela cultura. Assim, o conceito não se confunde com uma proposta de escolarização separada do ensino regular ou com determinados tipos de organização de serviços

O início dessa nossa história coincidiu com o auge da hegemonia da filosofia da "normalização e integração" no contexto mundial. Se até então havia o pressuposto de que a segregação escolar permitiria melhor atender às necessidades educacionais diferenciadas desses alunos, após esse período houve uma mudança filosófica orientada pela ideia de integração escolar em escolas comuns.

A partir daí, passamos supostamente cerca de 30 anos atuando sob o princípio de "integração escolar", até que emergiu o discurso em defesa da "educação inclusiva" no país, a partir de meados da década de 90. Um dos argumentos recorrentes tem sido a proposição de que a "inclusão" requer uma revisão na forma como vem sendo equacionada a educação de crianças e jovens com necessidades educacionais especiais. Antes de avançar o debate, convém analisar que legado nos deixou nossa história de 30 anos de "integração escolar".

Os frutos de 30 anos da educação especial brasileira

Na atualidade, constata-se que, para uma estimativa de cerca de 6 milhões de crianças e jovens com necessidades educacionais especiais, não chega a 400 mil o número de matrículas, considerando o conjunto de todos os tipos de recursos disponíveis, ou seja, desde os matriculados em escolas especiais até os que estão nas escolas comuns (ver Folha de S.Paulo, 11/6/99). Portanto, a grande maioria dos alunos com necessidades educacionais especiais está fora de qualquer tipo de escola. Tal quadro indica muito mais uma exclusão escolar generalizada dos indivíduos com necessidades educacionais especiais na realidade brasileira, a despeito da retórica da integração escolar.

As mazelas da educação especial brasileira, entretanto, não se limita à falta de acesso. Os poucos alunos com necessidades educacionais especiais que têm tido acesso a algum tipo de escola não estão necessariamente recebendo uma educação apropriada, seja por falta de profissionais qualificados ou mesmo pela falta generalizada de recursos. Além da predominância de serviços que envolvem, desnecessariamente, a segregação escolar, há evidências que indicam um descaso do poder público; uma tendência de privatização (considerando-se que a maioria das matrículas está concentrada na rede privada e, mais especificamente, em instituições filantrópicas) e uma lenta evolução no crescimento da oferta de matrículas, em comparação com a demanda existente.

Pode-se dizer, portanto, que os resultados dos últimos 30 anos de política de "integração escolar" provocaram uma grande expansão das classes especiais, favorecendo o processo de exclusão na escola comum pública. Os modelos de serviços propostos pelo movimento de integração escolar, que previam uma opção preferencial pela inserção na classe comum com a manutenção do continuum de serviços, ou sistema de cascata, nunca chegaram a ser implementados na "integração escolar" à moda brasileira. Os recursos predominantes ainda hoje são classes especiais nas escolas públicas e nass escolas especiais privadas e filantrópicas.

Em perspectiva a educação especial inclusiva

O debate sobre a questão da educação inclusiva é hoje um fenômeno de retórica como foi a integração escolar nos últimos 20 anos.

O paradoxo é que, ao mesmo tempo em que se trata de uma ideologia importada de países desenvolvidos - que representa um alinhamento ao modismo, pois não temos lastro histórico na nossa realidade que a sustente -, não podemos negar que, na perspectiva filosófica, a inclusão é uma questão de valor, ou seja, é um imperativo moral. Não há como questioná-lo dentro da ética vigente nas sociedades ditas democráticas, e não dá para descartar que a adoção de diretrizes baseadas na educação inclusiva pode ser a única estratégia política com potencial para garantir o avanço necessário na educação especial brasileira.

Em outros países, por exemplo, o movimento se assenta em contextos em que já existia um razoável acesso à educação, uma rede diversificada e melhor qualificada de serviços, nos quais a perspectiva de educação inclusiva representou apenas um passo natural em direção à mudança. Aqui, a educação inclusiva é ainda uma página em branco de uma história a ser construída. E como pode a universidade brasileira contribuir para esse processo?

A educação inclusiva e a universidade brasileira

Traduzir a educação inclusiva das leis, dos planos e intenções para a realidade requer conhecimento e prática. É preciso, portanto, questionar: qual a prática necessária? E o conhecimento necessário para fundamentar a prática? Sem dúvida, esse é um exercício para a pesquisa científica.

A ciência será essencial para que a sociedade brasileira busque contribuir, de maneira intencional e planejada, para a superação de uma educação especial equivocada que atua contra os ideais de inclusão social e plena cidadania. Assim, enquanto agência de produção de conhecimento, o papel da universidade na construção da educação inclusiva é essencial.

Entretanto, não é qualquer pesquisa que tem potencial para apoiar tal processo de construção. É necessário se fazer uma pesquisa mais engajada nos problemas da realidade e que haja implicações práticas e políticas mais claras. Por outro lado, é necessário também que o processo de tomada de decisão política privilegie mais as bases empíricas fornecidas pela pesquisa científica sobre inclusão escolar.

Uma prioridade emergente para a pesquisa na atualidade seria a produção de conhecimento sobre procedimentos que gerem dados que permitam subsidiar o acompanhamento de políticas públicas educacionais, que adotam a perspectiva da inclusão, sobre formação de professores (do ensino regular e especial) e estratégias pedagógicas inclusivas que possam ser adaptadas para a realidade brasileira.

A mudança requer ainda um potencial instalado, em termos de recursos humanos, em condições de trabalho para que ela possa ser posta em prática, pois é na existência de pessoal cientificamente preparado para identificar as armadilhas de concepções e procedimentos inadequados que reside a possibilidade de alterar a realidade da educação especial no país.

A universidade, enquanto agência de formação, além de produzir conhecimento, tem a responsabilidade de qualificar os recursos humanos envolvidos, tanto em cursos de formação inicial como continuada, o que é um desafio considerável para o sistema brasileiro de ensino superior.

Enfim, o futuro da educação inclusiva em nosso país dependerá de um esforço coletivo, que exigirá uma revisão na postura de pesquisadores, políticos, prestadores de serviços, familiares e indivíduos com necessidades educacionais especiais, para trabalhar numa meta comum que é a garantia de uma educação de melhor qualidade para todos.

Referências bibliográficas

BUENO, José Geraldo Silveira. Educação especial brasileira: integração/segregação do aluno diferente. São Paulo: Educ, 1993.
MARQUES, C. A.; JENEVARI, G. P.; SOUZA JUNIOR, J. S.; ANTUNES, K. C. V.; CARVALHO, M. D. M.; PAULA, O. L. B.; FERREIRA, S. M. A. A década de 60: a realidade da educação especial no Brasil. Temas em Desenvolvimento, v. 11 (66), p.19-26. 2003.
FOLHA DE S.PAULO. A mancha do analfabetismo. Folha de S.Paulo, São Paulo, 27 mar. 2001. Folha Trainee, p. 8.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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