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A História aqui, agora
Lorenzo Aldé
Redator e revisor do Portal
A gente acha a nossa vida tão curta diante da História... Fica com pena de não ter vivido a Belle Époque, de não ter descoberto os Beatles ao vivo na adolescência, de não ter frequentado as rodinhas de bossa nova ou de não ter morado no sítio com os Novos Baianos, de não ter visto, incrédulos, na recém-adquirida televisão, o Homem chegar à Lua, de não ter presenciado Woodstock ou estado em Paris no Maio de 68. A vida não é só bela, e assim escapamos também de viver na Europa das Grandes Guerras, para não falar da Peste medieval ou do Brasil de Médici. Quem nasceu do início dos anos 70 para frente ficou com a sensação de que a História tinha parado. Houve até teóricos que anunciaram em grande estilo "o fim da História": a História dos grandes acontecimentos e revoluções, uma História feita de marco em marco, de virada em virada. O mundo pós-ilusões estaria caminhando sobre uma esteira de mesmice desesperançada, e o Muro de Berlim seria o último suspiro para corroborar a tese. Sim, assistimos a este grande marco: a queda do Comunismo e o fim da URSS. Depois disso, vigoraria o pensamento único representado pela agenda da Globalização.
Será?
Como se bilhões de vidas mutantes na face de um pequeno planeta conseguissem congelar o tempo e embarcar numa marola comum, com um só sentido e um só destino: permanecer sempre igual! Somos jovens, nascemos no fim das utopias, e no entanto nossas existências se veem cercadas da Grande História. No Brasil, assistimos à redemocratização, vimos o povo (alienado, despolitizado, desinformado, dizia-se e diz-se ainda) lotando praças e ruas em todo o país pelas Diretas. Elas não vieram "já", mas o desejo coletivo sacudiu nossa História e começou a enterrar um passado triste e escuro. Vimos, sim, o fim do Muro de Berlim, mas não só: também as trágicas guerras que se seguiram; a sangrenta disputa high-tech de Bush-Pai pelo petróleo no Iraque; o fim do apartheid na África do Sul; a lenta agonia do continente africano; o assustador crescimento da anacrônica China, comunista e globalizada; a sobrevivência de Fidel; a consolidação no Novo Império Romano ao norte das Américas; a improvável união da velha Europa; a disseminação da informática; o narcotráfico e o tráfico de armas controlando boa parte do capital mundial; o crime chegando ao poder na Colômbia e nos morros cariocas; neoditaduras e neopopulismos na América do Sul; a democracia seguindo em frente no Brasil, com a deposição legal de um presidente eleito e o povo nas ruas de novo; as agendas da cidadania tomando corpo no mundo ocidental, em constante conflito com os interesses econômicos das nações hegemônicas; a ameaça fundamentalista de Bush-Filho e o ameaçador terrorismo globalizado; e, no Brasil, o advento de uma nova Constituição, inclusiva por excelência, e 13 anos de democracia sem sobressaltos institucionais. Novo século, novo milênio.
Para quem achava que só o que aconteceu de "macro" em sua vida haviam sido as Copas do Mundo e o chinfrim do Cometa de Halley, não custa olhar os fatos: permanece intenso o maremoto da História. Quem vive, vê.
Pois a História do Brasil e do mundo nos brindam com dias de grande impacto. Quem está vivo, hoje, tem olhos para ver: o maior partido de esquerda da América Latina, forjado em duas décadas de atuação democrática, está chegando ao poder da maior nação do continente, com uma agenda que traduz a mobilização de amplos setores da sociedade, notadamente aqueles que têm maior representatividade junto às classes populares desfavorecidas, vítimas de um longo processo de exclusão social, econômica e moral. O Partido dos Trabalhadores, na contramão da guinada à direita neoliberal observada em todo o mundo ocidental, foi consagrado por 52 milhões de votos, numa inédita convergência de interesses e esperanças que perpassou as gigantescas diferenças sociais e regionais que marcam o país. Mais: o presidente eleito é originário da classe mais desfavorecida da região mais desfavorecida do Brasil (mais simbólica exclusão social, só se fosse negro). E, depois de 30 anos de militância política, continua vivendo como um cidadão comum, como as milhões de pessoas humildes que chegaram à classe média. Não é preciso muita pesquisa para constatar: o ex-retirante nordestino, ex-metalúrgico e sindicalista, ao chegar às mais altas rodas de poder do país (isto já há pelo menos 16 anos), não fez questão de viver como vive a elite. O resultado é que chega à presidência falando de igual para igual à maioria dos brasileiros. Sua emotividade, que soaria insuportavelmente populista na boca de qualquer outro político, é límpida e sincera. Seu discurso, repleto de desejo de transformar as relações sociais do país, tem a credibilidade que teria o de qualquer agente social comunitário cuja vida é deparar-se diretamente com as desigualdades concretas. O presidente eleito fala, e o que se ouve é um renovado código político. É a democracia de volta à sua origem: a representação de aspirações legitimamente populares. E tudo isso dentro de um percurso democrático estável, sem revolução, rompimento, cisão social ou institucional.
São dias históricos. Espero que sejam anos históricos. No mapa-mundi uma luz se acende sobre o Brasil e seus próximos passos. O pensamento único, que gera desigualdades já questionadas em toda parte, ganha enfim um contraponto notável. Não se sabe para onde o maremoto nos leva, e por isso mesmo a esperança de mudança de rumos não é vã nem utópica.
A História não acabou. E nós somos, mais do que nunca, seus autores. Como você pretende escrevê-la?
Publicado em 31 de dezembro de 2005
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