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A importância da relação professor–aluno na construção de conhecimento

Márcia Pires Ramos de Magalhães Gomes

Doutora em Educação pela UFRJ, psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Católica de Petrópolis

Que quereis que eu faça dele? Ele não gosta de mim...

Sócrates

Essa enunciação evidencia que, já no século IV a.C., Sócrates compreendia com clareza a importância do bom relacionamento professor-aluno para a construção de conhecimento. A maiêutica, método por ele criado para conduzir seus interlocutores a uma reflexão lógica e crítica sobre determinada questão, a fim de que descobrissem por si mesmos o que previamente acreditavam conhecer, tornava imprescindível que houvesse um vínculo positivo entre as atores sociais envolvidos no processo. Entretanto, apesar do tempo decorrido desde então, essa compreensão de Sócrates nem sempre tem sido entendida por aqueles que se dedicam à profissão docente.

Muito tem sido dito, debatido e escrito sobre a importância do bom relacionamento professor-aluno, porém, no cotidiano da sala de aula isto nem sempre se faz presente.

Quem é o culpado? O professor? O aluno?

Uma análise acurada da situação nos mostra que um e outro não podem ser considerados culpados, mas, indubitavelmente, cabe ao professor tentar estabelecer condições que propiciem um bom clima afetivo com seus alunos.

Isso é fácil? Questionamos. Nem sempre, pois, para que o docente consiga lidar com todos os fatores que se articulam em sua prática, tem que estar bem preparado, o que nos conduz a uma problemática recorrente: a formação do educador - que, para alcançar os resultados pretendidos, nunca pode ser dada como concluída. Temos que estar sempre em formação!

Aqui jaz um problema bastante complexo, principalmente quando nos reportamos ao mundo contemporâneo que vem sofrendo grande impacto decorrente do acelerado avanço cientifico e tecnológico, bem como da globalização.

Apesar dos benefícios inegáveis que esse avanço trouxe à humanidade, provocou também um certo "estado de choque". Para Levy:

Na época atual a técnica e uma das dimensões fundamentais onde está em jogo a transformação do mundo humano. A incidência cada vez mais pregnante das realidades tecno-econômicas sobre todos os aspectos da vida social e também os deslocamentos menos visíveis que ocorrem na esfera intelectual obrigando-nos a reconhecer a técnica como um dos mais importantes temas filosóficos e políticos de nossos tempos.

O fenômeno da globalização interfere de modo concreto no social e individual e, portanto, no processo de interação.

A relação que se estabelece entre o progresso técnico, a internacionalização do capitalismo e o momento histórico em que vivemos nos dias atuais pode ser interpretada como de crise que apresenta características duradouras.

A veiculação da informação através da mídia, indispensável à globalização, não se constitui somente em narrativa do que ocorre, uma vez que pode ser manipulada e, dessa forma, confunde mais do que esclarece. Isso se torna mais grave no momento presente, em que a informação é um dado essencial e imprescindível.

O homem pós-moderno vem sofrendo as consequências das alterações que vêm ocorrendo nas relações sociais, em virtude da velocidade que a elas é impressa. Há, inclusive, temor da robotização do humano com a perda dos valores humanos tradicionais.

A cultura virtual dos jogos eletrônicos, da linguagem fragmentada e dos videoclipes funciona como uma droga que substitui o encontro com o outro e, consequentemente, elimina a ansiedade da separação. Mesmo permanentemente conectado à Rede, o homem contemporâneo sofre de imensa solidão. O mundo virtual interfere na emoção, no pensamento, e substitui a reflexão.

Vem ocorrendo a diluição do que distingue o sujeito e o objeto de conhecimento, uma vez que nosso pensamento está sendo moldado por dispositivos materiais, fazendo com que instituições e máquinas se entrelacem no âmago do sujeito.

Que consequências esse processo vem trazendo para o sujeito?

Acreditamos que o transforma em um "ser em confusão", provocando a construção de egos frágeis e dependentes do investimento no outro. Verifica-se uma adesão acrítica a ideias, projetos e valores impostos pelos países hegemônicos em decorrência da globalização.

Acontece uma mutação sociológica global que vem provocando um processo de personalização que rompe com a ordenação, disciplina e austeridade do mundo moderno. Disso decorre uma sociedade onde o valor máximo é a liberdade sem coação, viver no aqui e agora, liberdade sexual, rebaixamento de hierarquias, legitimação de valores hedonistas e narcisistas. Emerge um sentimento de incerteza em relação ao mundo.

Tudo é possível, tudo é permitido, aumentando, portanto, a tolerância aos impulsos destrutivos.

O racional vem sendo desprestigiado a não ser que esteja a serviço de exigências  específicas, com destaque para a competitividade.

Uma vez que o professor e o aluno estão imersos nesse contexto, como poderá o primeiro ter condições de assegurar ao segundo uma formação que o capacite a lidar com essa produção de dificuldades e expectativas?

Bacha mostra compreender esse fato ao comentar que "perdida como arte de formar a educação ter-se-ia tornado entre nós técnica de adaptar com pretensões à ciência, tendo no mercado sua única ambição".

Esclarece, a seguir, a autora que isso:

É o que sugerem nossas instituições formadoras, substituindo com mestria a formação artesanal de homens, pela produção em série de técnicos. Os seres maquínicos resultantes dessa produção/formação são como eletrodomésticos, inseparáveis dos seus manuais de funcionamento: "como pesquisar", "como ensinar" [...] máquinas, além de apenas se prestarem ao uso de outrem, não são divididas por um inconsciente.

Ah! O inconsciente, tão sabiamente trazido à luz por Freud há mais de um século e até hoje vista com desconfiança por alguns a quem é delegada a tarefa de formar.

Hoje as máquinas funcionam quase como já previa a ficção no filme 2001 - Uma Odisseia no espaço. As pessoas agem quase como máquinas, aparentemente ignorando a existência do desejo, que nos exige o cumprimento de regras emocionais.

Podemos mesmo afirmar que existe realmente uma espécie de lógica das emoções humanas, bem diferente do que usamos para explicar os motivos de nossas ações. A instância de onde provêm as regras limitantes e o inconsciente.

Mas como entender as manifestações do inconsciente uma vez que se constitui em estrutura psíquica que fez com que os sentimentos não sejam expressos em linguagem direta, mas que se manifestem através de comunicação que se cala ou disfarça seus verdadeiros motivos?

Pensamos que através do acesso às contribuições que a teoria psicanalítica trouxe à tona é que o professor teria melhores condições para tentar lidar com as formas por meio das quais o inconsciente se expressa. Não apenas o de seus alunos, mas, principalmente, o seu.

O educador age não-somente por aquilo que ale diz e faz, mas, mais por aquilo que ele é. E pelo que é tanto no plano consciente como no inconsciente: ou seja, segundo o grau de maturidade afetiva e de domínio internos.

O professor sempre é um modelo de identificação para seus alunos pois, depois da família, é a escola o principal locus de aprendizagem relacional no âmbito social.

Podemos afirmar que, em pelo menos um aspecto, o ambiente escolar tem maior influência que o do lar na medida em que a vida familiar, geralmente, segue padrões fixos aos quais a criança se acostuma. A escola apresenta novos professores, colegas, tarefas intelectuais e demandas sociais que requerem permanente capacidade de adaptação por parte da criança. Quanto mais novo for o aluno, maior probabilidade terá o professor de interferir na sua formação, na medida em que será tomado como "modelo identificatório".

Para Laplanche e Pontalis, o conceito de identificação assume na obra de Freud um valor central, que fez dele mais que um mecanismo psicológico entre outros descritos, e, sim, o processo pelo qual o ser humano se constitui. Nessa perspectiva, os autores assinalam que os processos de imitação e contágio mental já eram conhecidos há longa data, mas foram mais bem explicitados por Freud, quando afirmou que "a identificação não é simples imitação, mas apropriação baseada na pretensão de uma etiologia. Ela exprime um `tudo´ e relaciona-se com um elemento comum que permanece inconsciente [mas] esse elemento comum é a fantasia".

É à fantasia que recorremos em nossos momentos difíceis e que nos possibilita o acesso à capacidade de criar, característica tão valorizada pela educação. "A recusa da fantasia afeta a capacidade humana de conhecer, recusando nossa habilidade para pensar [...]. E provocando aquilo que costumamos chamar de inibição intelectual".

Enfatiza ainda a autora que se torna indispensável:

Instar a quem ensina, quem pesquisa, quem supervisiona, quem orienta, quem trata, quem forma, enfim, quem expõe e se expõe, a explorar a dimensão imaginária dos processos cognitivos aprimorando sua performance, ampliando seu pensamento, alargando sua capacidade de conhecer e de se conhecer.

Sócrates também é lembrado por outra sábia enunciação: "conhece-te a ti mesmo", tão bem detalhada por Korzak no que se refere à atitude daqueles que pretendem dedicar-se à educação.

Aprenda a se conhecer antes de pretender conhecer (o outro). Observe os limites de sua própria capacidade [...] antes de todos os que pode compreender, instruir está em você. E por você mesmo que é preciso começar.

Voltemos ao processo de identificação. O professor torna-se um modelo para o aluno, uma vez que o amor é um dos principais estímulos para que a educação se dê. A identificação se fez presente pela introjeção das exigências do professor. O que autoriza essa identificação é um processo cunhado por Freud de transferência. Através desse processo é atribuído um sentido especial a uma pessoa, determinado pelo desejo. Dessa forma, o professor torna-se depositário de algo que pertence ao aluno. Daí deriva o seu poder sobre ele. A transferência, como afirma Freud, é inconsciente, entretanto tudo que o aluno deseja e que o professor tenha condições de suportar a posição em que ele o colocou.

Todas as falas e ações do professor são percebidas através da posição que ocupa no inconsciente do aluno. Sendo investido pelo desejo do aluno, o mestre ganha poder. Essa posição em que o aluno o coloca não deixa de ser incômoda para o professor, pois não é fácil fazer uso desse poder sem que isso venha a subjugar quem o investiu e impor-lhe suas ideias e valores.

Bohoslavsky destaca essa dificuldade ao comentar que:

O professor pode achar que suas intenções são boas - e elas realmente podem sê-lo a nível consciente - pode pretender desenvolver no aluno a reflexão crítica, a aprendizagem criativa, o ensino ativo, promover a individualidade do aluno, seu resgate enquanto sujeito, mas, uma vez definido o vínculo pedagógico como um vínculo de submissão, seria estranho que tais objetivos se concretizassem.

Enfatiza Freud que só será bom educador aquele que conseguir estar em paz com a criança que viva dentro dele, e que o ato de aprender sempre supõe uma relação com outra pessoa, a que ensina. O aprender é aprender com alguém.

Apesar de identificar a educação como uma profissão impossível, Freud contribuiu substancialmente para o seu entendimento em sua obra.

Uma tentativa de lidar com a problemática que o professor enfrenta em sua ação docente seria prepará-lo, desde o início de sua formação, para entender que tanto suas atitudes como as de seus alunos, muitas vezes, são movidas par motivações inconscientes e exigirão bastante esforço de sua parte pare tentar revertê-los.

Não é difícil para o professor resistir à tentação de abandonar a segurança que um vínculo definido verticalmente oferece, a tranquilidade sentida em uma aula preparada em todos os seus detalhes, de modo a impedir mudança de rumo, a imposição de seu pensamento sem espaço para a discordância bem como a comodidade que é conseguida através do "pedestal" em que se coloca e ainda a gratificação narcisista oriunda da suposição de que seus alunos mantêm a expectativa de sua onissapiência.

Como podemos ver, são inúmeras as dificuldades que o professor enfrenta para desenvolver com seus alunos um relacionamento que contribua para conduzi-los à autonomia. O máximo que podemos esperar é que o professor não se prenda a um rigor excessivo, mas que mantenha sua autoridade oriunda de sua competência, generosidade, segurança, disponibilidade e amor por seus alunos. Dessa forma, eles terão condições de desenvolver sua criatividade e espírito crítico, que Ihes permitirão enfrentar os desafios e exigências do mundo contemporâneo.

Referências

LEVY, P. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999, p. 7.

LEVY, P.; LABROSSE, D. O fogo libertador. São Paulo: Iluminuras, 2000.

LIPOVETSKY, G. A era da razão. Lisboa: Moraes Editores, 1967.

BACHA, M. N. A arte de formar: o feminino, o infantil e o epistemológico. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 13.

MAUCO, G. Psicanálise e educação. Lisboa: Moraes Editores, 1967.

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, I. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 228.

Bacha, op. cit., p. 20.

Bacha, op. cit., p. 21.

KORZAK, J. Como amar uma criança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, p. 166.

KUPFER, M. C. Freud e a educação: o mestre do impossível. São Paulo: Scipione, 1989.

BOHOSLAVKY, R. A psicopatologia do vínculo professor-aluno: o professor como agente socializador. In: PATTO, M. H. S. Introdução à psicologia escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 1989, p. 320-341.

SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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