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A literatura poética e possíveis usos didáticos

Ildeu de Castro Moreira

Instituto de Física - UFRJ

Poesia na sala de aula de ciências?

Introdução

A interdisciplinaridade em sala de aula é um tema importante e que deve sempre ser explorado pelo professor. Neste artigo, mostra-se como Física e Literatura podem formar um belo dueto para tornar mais interessante a interação entre ambas.

Existem relações profundas entre Ciência, cultura e arte no processo de criação humana. No entanto, a discussão integrada dessas dimensões raramente se realiza nas salas de aula. Numa tentativa de motivar a discussão de alguns temas científicos importantes e atuais, em particular dentro da Física, mas não exclusivamente, propomos a exploração, em sala, de poemas referentes à Ciência existentes na Literatura brasileira e portuguesa, de forma interligada e em interação com outras disciplinas (Português e História, por exemplo).

Dentro do objetivo didático exposto, poemas foram aqui reunidos segundo um tema “científico” geral. A ideia é que sejam discutidos de maneira interdisciplinar, de preferência acompanhados de um apanhado histórico das relações entre Ciência e poesia relativas àquele tema, do contexto científico e literário associado e de análises sobre o conteúdo e forma dos poemas. Os temas abordados nesta primeira ação exploratória foram: a máquina do mundo; tempo e evolução; a matéria; os astros; a bomba atômica; caos e fractais; vida, pensamento e complexidade; cânticos dos quânticos; a ciência em si. Percorremos vários momentos da literatura poética lusa e brasileira, iniciando por Os Lusíadas, o grande poema épico da nossa língua. Os poemas selecionados a seguir são apenas exemplos possíveis; muitas outras escolhas poderiam ter sido feitas. Um professor, com imaginação, dedicação e tempo, poderá com certeza construir seu próprio conjunto de belos e instigantes poemas, todos eles associados a temas científicos. Limitamo-nos também a alguns poucos comentários de caráter geral sobre cada tópico considerado.

Ciência e poesia pertencem à mesma busca imaginativa humana, embora ligadas a domínios diferentes de conhecimento e valor. A visão poética cresce da intuição criativa, da experiência humana singular e do conhecimento do poeta. A Ciência gira em torno do fazer concreto, da construção de imagens comuns, da experiência compartilhada e da edificação do conhecimento coletivo sobre o mundo circundante. Tem como vínculo restritivo, ao contrário da poesia, o representar adequadamente o comportamento material; tem, mais profundamente que a leitura poética do mundo, a capacidade de permitir a previsão e a transformação direta do entorno material. As aproximações entre Ciência e poesia revelam-se, no entanto, muito ricas, se olhadas dentro de um mesmo sentimento do mundo. A criatividade e a imaginação são o húmus comum de que se nutrem. Na origem desses dois movimentos, as incertezas de uma realidade complexa que demanda várias faces que podem transformar-se em versos, em gedankens ou ser representados por formas matemáticas. Haroldo de Campos dizia, sobre Schenberg, que: na estante de Mário física e poesia coexistem - como asas de um pássaro.

Nos tempos atuais, em que a Ciência e a tecnologia impregnam profundamente nossa cultura e permeiam nosso cotidiano, com seus benefícios extraordinários mas também com suas mazelas, a poesia poderia parecer um anacronismo. Mas, talvez, as muitas pequenas verdades científicas constituam apenas uma abordagem incompleta e limitada do mundo. Relembremos Einstein: Não superestimem a ciência e seus métodos quando se trata de problemas humanos! A poesia e a arte, que parecem constituir necessidades urgentes de afirmação da experiência individual, uma visão complementar e indispensável da experiência humana, não podem ficar de fora das atividades interdisciplinares com os jovens nas escolas, mesmo aquelas ligadas ao aprendizado de Ciências.

A Máquina do Mundo

Neste tópico, nada melhor do que iniciar com o grande poema da literatura portuguesa escrito por Camões. Muitos temas de astronomia e da visão geocêntrica hegemônica no século XVI surgem ali entre as glórias, sucessos e insucessos das armas e da gente portuguesa. Trata-se, em particular, de um excelente ponto de partida para uma possível interação entre o professor de Física, o de Português e o de História. Outros poetas da língua portuguesa abordaram, sob óticas diversas, o tema da ‘Máquina do Mundo’, aqui iniciado por Camões, como Carlos Drummond de Andrade e Haroldo de Campos. Reproduzimos abaixo dois menos conhecidos, do século XX. O primeiro deles é um belíssimo poema do físico, poeta e divulgador da Ciência Rómulo de Carvalho, falecido poucos anos atrás, e que escrevia sob o pseudônimo de Antonio Gedeão. O último, que trata da visão quântica do mundo, é da lavra do poeta brasileiro moderno Marco Lucchesi.

Os Lusíadas - Canto X - 80/90

Luís de Camões

Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assim foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus; mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.

Este orbe que, primeiro, vai cercando
Os outros mais pequenos que em si tem,
Que está com luz tão clara radiando,
Que a vista cega e a mente vil também,
Empíreo se nomeia, onde logrando
Puras almas estão daquele Bem
Tamanho, que Ele só se entende e alcança,
De quem não há no mundo semelhança.

Aqui, só verdadeiros, gloriosos
Divos estão, porque eu, Saturno e Jano,
Júpiter, Juno, fomos fabulosos,
Fingidos de mortal e cego engano.
Só pera fazer versos deleitosos
Servimos; e, se mais o trato humano
Nos pode dar, é só que o nome nosso
Nestas estrelas pôs o engenho vosso.

E também, porque a Santa Providência,
Que em Júpiter aqui se representa,
Por espíritos mil, que tem prudência,
Governa o Mundo todo que sustenta
(Insiná-lo a profética ciência,
Em muitos dos exemplos que apresenta:
Os que são bons, guiando, favorecem,
Os maus, em quanto podem, nos empecem);

Quer logo aqui a pintura, que varia,
Agora deleitando, ora insinando,
Dar-lhe nomes que a antiga Poesia
A seus Deuses já dera, fabulando;
Que os Anjos de celeste companhia
Deuses o sacro verso está chamando;
Nem nega que esse nome preminente
Também aos maus se dá, mas falsamente.

Enfim que o sumo Deus, que por segundas
Causas obra no Mundo, tudo manda.
E, tornando a contar-te das profundas
Obras da Mão Divina veneranda:
Debaixo deste círculo, onde as mundas
Almas divinas gozam, que não anda,
Outro corre, tão leve e tão ligeiro,
Que não se enxerga: é o Móbile primeiro

Com este rapto e grande movimento
Vão todos os que dentro tem no seio;
Por obra deste, o Sol, andando a tento,
O dia e noite faz, com curso alheio.
Debaixo deste leve, anda outro lento,
Tão lento e subjugado a duro freio,
Que, enquanto Febo, de luz nunca escasso.
Duzentos cursos faz, dá ele um passo.
Olha estoutro debaixo, que esmaltado
De corpos lisos anda e radiantes,
Que também nele tem curso ordenado
E nos seus axes correm cintilantes.
Bem vês como se veste e faz ornado
Co largo Cinto de ouro, que estelantes
Animais doze traz afigurados,
Aposentos de Febo limitados.

Olha, por outras partes, a pintura
Que as estrelas fulgentes vão fazendo:
Olha a Carreta, atenta a Cinosura,
Andrômeda e seu pai, e o Drago horrendo.
Vê de Cassiopeia a fermosura
E do Orionte o gesto turbulento;
Olha o Cisne morrendo que suspira,
A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira

Debaixo deste grande Firmamento,
Vês o céu de Saturno, Deus antigo;
Júpiter logo faz o movimento,
E Marte abaixo, bélico inimigo;
O claro Olho do céu, no quarto assento,
E Vênus, que os amores traz consigo,
Mercúrio, de eloquência soberana;
Com três rostos, debaixo vai Diana.

Em todos estes orbes, diferente
Curso verás, nuns grave e noutros leve;
Ora fogem do Centro longamente,
Ora da Terra estão caminho breve,
Bem como quis o Padre onipotente,
Que o fogo fez e o ar, o vento e neve,
Os quais verás que jazem mais a dentro
E tem co Mar a Terra por seu centro.

A Máquina do Mundo

Antonio Gedeão

O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.

Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.

A Quarta Parede

Marco Lucchesi

Esta foi a
bela e preciosa
lição de Bohr
e Mann
de sua mecânica
sublime
antes maldestra
hoje tão bela
como laura,
nise e glaura
esferas
musicantes
de Pitágoras...
esta foi
a bela
e preciosa
descoberta

que
a máquina
do mundo
flutua
em mil pedaços
partículas
sabores
(lauras
e jasmins
também flutuam)
ínvios
mares

e o nada
sobrenada
entre infinitos
infinitos

Tempo e Evolução

Em quase todos os ramos da árvore da Ciência, um dos conceitos centrais no entendimento dos fenômenos naturais é o da evolução no tempo. Também na literatura poética universal, o tempo é um dos temas mais recorrentes, pela vinculação óbvia com a vida e a morte.

Dentro da visão científica clássica, o tempo é considerado como um parâmetro essencial de referência, unidimensional, ordenado e contínuo, que flui independentemente de seu entorno. Essa concepção tornou-se, a partir do século XVII, profundamente entranhada na Física e se espraiou para outros domínios da Ciência. Na segunda metade do século XIX, o conceito de entropia, introduzido como padrão de medida para a desordem crescente de um sistema natural, cristalizou a perspectiva de um caos terminal: a morte térmica do mundo. A Ciência parecia dar as mãos às concepções religiosas de uma conflagração final, sem perceber que tais especulações estavam baseadas em determinado modelo de sistema fechado, a que o universo poderia não querer se adaptar. Esta noção de caos final, entremeada com a do caos primordial, habitava já a cultura, a Filosofia e o discurso poético.

Aqui tomamos dois exemplos. João Cabral nos fala do tempo que existe na agulha de um instante e Murilo Mendes faz um estudo poético do caos que lembra a conflagração final.

Habitar o Tempo

João Cabral de Melo Neto

Para não matar seu tempo, imaginou:
vivê-lo enquanto ele ocorre, ao vivo;
no instante finíssimo em que ocorre,
em ponta de agulha e porém acessível;
viver seu tempo: para o que ir viver
num deserto literal ou de alpendres;
em ermos, que não distraiam de viver
a agulha de um só instante, plenamente.
Plenamente: vivendo-o de dentro dele;
habitá-lo, na agulha de cada instante,
em cada agulha instante: e habitar nele
tudo o que habitar cede ao habitante.

E de volta de ir habitar seu tempo:
ele corre vazio, o tal tempo ao vivo;
e como além de vazio, transparente,
o instante a habitar passa invisível.
Portanto: para não matá-lo, matá-lo;
matar o tempo, enchendo-o de coisas;
em vez do deserto, ir viver nas ruas
onde o enchem e o matam as pessoas;
pois como o tempo ocorre transparente
e só ganha corpo e cor com seu miolo
(o que não passou do que lhe passou),
para habitá-lo: só no passado, morto.

Estudo para um Caos

Murilo Mendes

O último anjo derramou seu cálice no ar.
Os sonhos caem na cabeça do homem,
As crianças são expelidas do ventre materno,
As estrelas se despregam do firmamento,
Uma tocha enorme pega fogo no fogo,
A água dos rios e dos mares jorra cadáveres.
Os vulcões vomitam cometas em furor
E as mil pernas da Grande dançarina
Fazem cair sobre a terra uma chuva de lodo.
Rachou-se o teto do céu em quatro partes:
Instintivamente eu me agarro ao abismo.
Procurei meu rosto, não o achei.
Depois a treva foi ajuntada à própria treva.

Os Astros

As estrelas, planetas, galáxias, cometas e outros objetos que são objeto de estudo da Astronomia têm sido um tema constante e inspirador para inúmeros poetas. Já mencionamos Camões e suas incursões astronômicas, mas inúmeros outros podem ser citados ao longo dos últimos séculos. Seguem-se apenas dois exemplos, que falam da Lua e da órbita dos planetas, sendo que o segundo deles foi escrito por um matemático e poeta que atualmente é professor da UFRJ.

Satélite

Manuel Bandeira

Fim de tarde.
No céu plúmbeo
A lua baça
Paira
Muito cosmograficamente
Satélite.

Desmetaforizada,
Desmitificada,
Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o golfão de cismas,
O astro dos loucos é dos enamorados,
Mas tão-somente
Satélite.

Ah Lua deste fim de tarde,
Demissionária de atribuições românticas,
Sem show para as dìsponibilidades sentimentais!

Fatigado de mais valia,
Gosto de ti assim:
Coisa em si,
- Satélite.

Kepleriana

Ricardo Kubrusly

Acordanoite

universo besta
esse com muitos planetas
estrelas que não se sabem
luzes
e tantas teorias
tantos matemáticos

as órbitas são pernas merecidas
monumentos
geometria
elipses traçadas num invisível preto
remotamente controladas
por botões à minha mesa

sou quem as concebe
em pânico
duzentos anos atrasado.

A Matéria

Buscar entender a constituição das coisas e utilizar isto em seu proveito sempre foi um desafio básico em todas as civilizações. Aqui reproduzimos alguns poemas que vão desde Camões, que retrata a teoria aristotélica dos quatro elementos, até a surpresa dos poetas (e cientistas) modernos com a estranha estrutura da matéria que nossa mente e nossos aparelhos mal conseguem vislumbrar. Uma história de um átomo foi esboçada poeticamente pelo escritor e médico Rodolfo Teófilo, que desempenhou importante atividade nas campanhas de vacinação no Nordeste, há cerca de um século.  Lucchesi explora a supersimetria, os quarks e os quasares.

Os Lusíadas - Canto VI

Luís de Camões

E vê primeiro, em cores variadas,
Do velho Caos a tão confusa face;
Vem-se os quatro Elementos trasladados,
Em diversos ofícios ocupados.
Ali, sublime, o Fogo estava em cima,
Que em nenhuma matéria se sustinha;
Daqui as cousas vivas sempre anima,
Depois que Prometeu furtado o tinha.
Logo após ele, leve se sublima
O invisível Ar, que mais acima
Tomou lugar, e, nem por quente ou frio,
Algum deixa no mundo estar vazio.

História de um Átomo (Eternidade da matéria)

Rodolfo Teófilo

Fui átomo de rocha, fui granito,
Fui lava de vulcão, fui flor mimosa,
Sutil perfume, nuvem borrascosa
Manchando a transparência do infinito.

Vaguei no espaço... errante aerolito
Transpus mundos de essência vaporosa.
De santos fui artéria vigorosa,
O coração formei a ser maldito.

Nasci com a Terra; gaz eu fui com ela,
Estive de Princípio na procela,
Fui nebulosa, sol, planeta agora.

Há cem mil séculos vivo m’encarnando,
Águia n’altura, verme rastejando,
Pólen voando pelo espaço a fora.

Modo Inaugural

Marco Lucchesi

Na luz deserta
do primeiro dia
está quebrada
a supersimetria

e assim despontam
múltiplos destinos
no mar onipresente
de neutrinos...

e vagam quase-seres
pelo mundo
lançados num abismo
alto e profundo

na luta intempestiva
onde se plasma
o modo inaugural
do protoplasma...

a sombra luminosa
de um quasar
e as formas múltiplas
de ser e estar

as quase borboletas,
e sabores
de quarks, e de sombras,
e motores...

na antemanhã de rosas
o arrebol
e o quase amor que rege
o pôr-do-sol

resíduos de giocondas
beatrizes
sonhando com poetas
infelizes...

assim agia Deus
sive natura
na zona fria
da matéria escura

e o rígido
combate prosseguia
do ser e do não ser,
e ainda prossegue,

que o nada
se insinua noite e dia

A Bomba Atômica

O impacto da bomba atômica em Hiroshima deixou registros memoráveis na pena de poetas brasileiros, como Carlos Drummond e Vinicius. Fiquemos com um poema deste que escreveu também o bem conhecido Rosa de Hiroshima, que foi musicado por Ney Matogrosso. A discussão dos riscos e das aplicações da Ciência, assim como dos aspectos éticos envolvidos na atividade científica podem ser estimulados a partir deles. E estes são temas importantes a se discutirem nas escolas, já que a formação adequada para a cidadania passa também por uma correta apreciação da Ciência e da tecnologia, seus funcionamentos e seus usos.

A Bomba Atômica

Vinicius de Moraes

I

e = mc2
EINSTEIN
Deusa, visão dos céus que me domina
...tu que és mulher e nada mais!
(“Deusa”, valsa carioca.)

Dos céus descendo
Meu Deus eu vejo
De paraquedas?
Uma coisa branca
Como uma fôrma
De estatuária
Talvez a fôrma
Do homem primitivo
A costela branca!
Talvez um seio
Despregado à lua
Talvez o anjo
Tutelar cadente
Talvez a Vênus
Nua, de clâmide
Talvez a inversa
Branca pirâmide
Do pensamento
Talvez o troço
De uma coluna
Da eternidade
Apaixonado
Não sei indago
Dizem-me todos
É A BOMBA ATÔMICA
(...)

II

A bomba atômica é triste
Coisa mais triste não há
Quando cai, cai sem vontade
Vem caindo devagar
Tão devagar vem caindo
Que dá tempo a um passarinho
De pousar nela e voar...
Coitada da bomba atômica
Que não gosta de matar!

Coitada da bomba atômica
Que não gosta de matar
Mas que ao matar mata tudo
Animal e vegetal
Que mata a vida da terra
E mata a vida do ar
Mas que também mata a guerra...
Bomba atômica que aterra!
Pomba atônita da paz!

Pomba tonta, bomba atômica
Tristeza, consolação
Flor puríssima do urânio
Desabrochada no chão
Da cor pálida do hélium
E odor de rádium fatal
Loelia mineral carnívora
Radiosa rosa radical.

Nunca mais, oh bomba atômica
Nunca em tempo algum, jamais
Seja preciso que mates
Onde houve morte demais:
Fique apenas tua imagem
Aterradora imagem
Sobre as grandes catedrais:
Guarda de uma nova era
Arcanjo insigne da paz!

Caos e Fractais

A análise do comportamento de sistemas não lineares trouxe, nas últimas décadas, elementos renovados de reflexão sobre uma questão fundamental na Filosofia e nas ciências: o papel do acaso e da necessidade no quadro conceitual construído pelo homem em sua tentativa de entender e de prever o comportamento da natureza. Com o caos determinístico ressurgiu o debate sobre o determinismo, o livre arbítrio, o significado das leis da natureza e capacidade humana de prever eventos futuros.

As estruturas multifacetadas e rugosas emanadas da natureza e provenientes também dos estudos do caos conduziram à criação de novas geometrias, como a dos fractais que, no exemplo a seguir, surge musicada em ritmo nordestino. A ordem pode emanar da desordem e vice-versa. E ambas como categorias instáveis e contextuais. Iniciemos com Murilo Mendes, que faz brotar do caos as criações orgânicas. Affonso Romano explora as consequências do bater de asas de uma borboleta, uma metáfora que se espalhou na literatura de divulgação científica para caracterizar a sensibilidade às condições iniciais.

A Inicial

Murilo Mendes

Os sons transportam o sino.
Abro a gaiola do céu,
Dei vida àquela nuvem.

As criações orgânicas
Que eu levantei do caos
Sobem comigo
Sem o suporte da máquina,
Deixam este exílio composto
De água, terra, fogo e ar.

A inicial da minha amada
Surge na blusa do vento.
Refiz pensamentos, galeras...
Enquanto a tarde pousava
O candelabro aos meus pés.

Desse caos erguem-se criações orgânicas.

"Breve História da Ciência - a busca da verdade" (trecho)

Irik Newth

Aparentemente
existe um número infinito de seres vivos
que seguem a lei da probabilidade.
O astrônomo pode calcular
onde se encontrará o planeta Júpiter em três mil anos.
Mas nenhum biólogo
pode prever
onde a borboleta pousará.

Fractal

César Nascimento, Alê Muniz

Fractal pode ter beleza
Fractal, apesar da certeza
Fractal, ô, ô, revela beleza

Dando se tira que em todo aço,
Até no mais puro traço,
Existe um momento tal,
Existe um momento-flor
Que poderá vir a ser fractal

Traço um traço ao lado do traço
Na diagonal da diagonal
Fractal

Uma fractal pode ter beleza
Apesar da certeza
Uma fractal pode ter.

Vida e Pensamento, Fractais e Complexidade

Ao se estudar sistemas constituídos de muitos elementos, verificou-se que podem apresentar novas propriedades, as propriedades emergentes, não contidas na escala inferior. Ou seja, o todo é mais do que as partes, seu funcionamento não está contido inteiramente na análise de suas partes isoladas. O termo sistemas complexos passou a ser utilizado para designar estruturas constituídas de muitos elementos que interagem de forma não linear e que podem apresentar propriedades adaptativas; existe neles a possibilidade do aparecimento de situações de auto-organização, com a emergência de comportamentos coletivos novos.

Exemplos de estruturas que poderiam ser melhor descritas por estes sistemas são a vida e o próprio pensamento, cuja razão e constituição já povoavam a imaginação e aguçavam a lógica dos poetas há muito tempo. Augusto dos Anjos, um dos maiores poetas de literatura brasileira, passeava tranquilo por entre esta universal complexidade, enquanto Cecília Meireles nos fala de máquina delicadamente construída. João Cabral, por seu turno, tece maravilhosamente uma manhã, numa representação pictórica muito apropriada à ideia das propriedades emergentes como construções acima das partes.

A Ideia

Augusto dos Anjos

De onde ela vem? De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas do laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica...

Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No mulambo da língua paralítica!

As Cismas do Destino

Augusto dos Anjos

A universal complexidade é que Ela
Compreende. E se, por vezes, se divide,
Mesmo ainda assim, seu todo não reside
No quociente isolado da parcela!

Máquina Breve

Cecília Meireles>

O pequeno vaga-lume
com sua verde lanterna,
que passava pela sombra
inquietando a flor e a treva
— meteoro da noite, humilde,
dos horizontes da relva;
o pequeno vaga-lume,
queimada a sua lanterna,
jaz carbonizado e triste
e qualquer brisa o carrega:
mortalha de exíguas franjas
que foi seu corpo de festa.

Parecia uma esmeralda
e é um ponto negro na pedra.
Foi luz alada, pequena
estrela em rápida seta.
Quebrou-se a máquina breve
na precipitada queda.
E o maior sábio do mundo
sabe que não a conserta.

Tecendo a Manhã

João Cabral de Melo Neto

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E, se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

O Cântico dos Quânticos

O extraordinário sucesso da Física Clássica contribuiu para o fortalecimento das concepções mecanicistas, mas ele foi profundamente abalado no início do século XX. O comportamento da matéria no domínio microscópico e suas repercussões  acroscópicas, em particular o estudo da interação entre radiação e matéria, conduziram a resultados experimentais que contrariavam as previsões clássicas. Novas ideias, experimentos e técnicas apuradas conduziram a uma profunda revolução na Física nas primeiras décadas do século passado. A emergência da Física Quântica atingiu profundamente as concepções vigentes sobre o determinismo ao atribuir um caráter essencialmente probabilístico à descrição dos fenômenos microscópicos.

Os estranhos fenômenos quânticos, embora não tivessem, na época imediata, deixado uma repercussão tão grande quanto a relatividade, ecoam atualmente por entre os versos de muitos poetas e músicos contemporâneos. Bandeira examina onde e como anda a onda e o moderno bardo Gilberto Gil entoa o cântico dos quânticos em um CD chamado Quantum. André Carneiro viaja sereno nas ondas quânticas.

A Onda

Manuel Bandeira

a onda anda
aonde anda
a onda?
a onda ainda
ainda onda
ainda anda
aonde?
aonde?
a onda a onda

Quanta

Gilberto Gil

Quanta do latim
Plural de quantum
Quando quase não há
Quantidade que se medir
Qualidade que se expressar

Fragmento infinitésimo
Quase que apenas mental
Quantum granulado no mel
Quantum ondulado do sal.
Mel de urânio, sal de rádio
Qualquer coisa quase ideal

Cântico dos cânticos
Quântico dos quânticos

Canto de louvor
De amor ao vento
Vento arte do ar
Balançando o corpo da flor
Levando o veleiro pro mar
De pensamento em chamas
Inspiração
Arte de criar o saber
Arte, descoberta, invenção
Teoria em grego quer dizer
O ser em contemplação

Cântico dos cânticos
Quântico dos quânticos

Sei que a arte é irmão da ciência
Ambas filhas de um Deus fugaz
Que faz num momento e no mesmo momento desfaz.

Ondas Quânticas

André Carneiro

O universo só existe
quando observo.
Lento voo da asa,
teu andar de praia,
a nuvem gorda de água
desaparecem
se eu falho.
Penso, alto atravessa
e molda um fato.
O espelho me inventa,
a ruga não sou eu quem traço.

Comprimo o corpo de átomos
entro nos túneis de mundo
e passo.
Você sorri,
não acredita no inseto dourado
quando eu pouso na face.

Energias quânticas
modelam seios e braços.
Retrato não reconheço,
linhas do rosto,
corpo e vontade desmancho,
teço de novo, sou coautor
sem nenhum quadro.

Explico o momento,
a nave tomba,
gotas translúcidas
giram prótons e nêutrons
neste céu de maio.

Sorriso de cinema vale
vinte e quatro passos
por segundo, o planeta gira
completamente tonto.
Dentro deste verso
sua boca muda,
deslizo de skate
no suave das nádegas,
aqueço veias
no ouro caminho do ventre.

A pequena morte pulveriza
meu corpo imortal,
o beijo solda lábios,
só a memória falece.

A Ciência em si

Como funciona a Ciência? Quais as suas similaridades ou diferenças com a arte? Quais os impactos do pensamento científico na cultura humana? Qual o papel que desempenhou a introdução das ideias científicas em vários momentos de nossa história? Como os usos e abusos da Ciência e da tecnologia ameaçam a humanidade? Como a Ciência se relaciona com a cultura no Brasil? Quais as limitações da Ciência como percebidas pelos poetas? Alguns poemas podem nos auxiliar e ser pontos de partida para tais discussões. O primeiro deles vem da pena irônica de um estudante brasileiro da Universidade de Coimbra, em 1785, ao ironizar a Viradeira portuguesa e o alijamento do pensamento científico com o retorno da deusa da Estupidez a Portugal. Outros, mais atuais, tratam da Ciência em si e de sua inserção em nosso mundo, da ciência que sonha e do verso que investiga.

Reino da Estupidez (1785)

Francisco de Melo Franco

A mole Estupidez cantar pretendo
Que, distante da Europa desterrada
Na Lusitânia vem fundar seu Reino.

(...)

- “Muito ilustres e sábios acadêmicos!
Por direito divino e por humano,
Creio que deve ser restituída
À grande Estupidez a dignidade
Que nesta Academia gozou sempre.
Bem sabeis quão sagrados os direitos
Da antiguidade são; por eles somos,
Ao lugar que ocupamos, elevados.
Oculta vos não é a violência
Com que foi desta posse desbulhada.
Vós, testemunhas sois dos sentimentos
Com que a vimos partir tão desprezada:
Porém sempre, apesar do seu desterro
Constante, tributei dentro em meu peito
Homenagens devidas à que fora
Na minha infância carinhosa Mestra
E na velhice, singular Patrona.
Entrai pois, companheiros, em vós mesmos,
Ponderai sem paixão: para que serve
As pestanas queimar sobre os autores,
A estimável saúde arruinando?
P’ra levar este tempo em bom sossego,
Divertir e passar alegremente,
Acaso precisais de mais ciência?
Se os dias desta breve e curta vida
Tivéssemos com os livros perturbado
Teríamos acaso mais prebendas,
Mais dinheiro, mais honra, mais estima?
De que podem servir estes estudos
Que mais da moda se cultivam hoje?
A barb’ra geometria tão gabada
Que mil proposições, todas heréticas,
Aqui faz ensinar publicamente,
Sabeis para que presta neste mundo?
Diga-o a Inquisição e mais não digo.
Oh, góticos estudos nunca ouvidos
Nos tempos, em que tanto florescia
Um Seara, maior do que o seu nome
Um Pupilo, um frei Paulo de São Mauro
Que sempre chorarão os frades bentos!
Histórias Naturais, Foronomias,
Químicas, Anatomias, e outros nomes
Difíceis de reter, são as ciências
Que vieram trazer os estrangeiros.
Há coisa mais cruel, mais desumana,
Mais contrária à razão, que ver os médicos,
Um cadáver humano espatifando,
Um corpo que habitou o Espírito Santo?
Nunca tal praticaste, oh bom Lopes,
Quando pelo Natal, em um carneiro,
O bofe, o coração, as tripas todas,
A teus hábeis discípulos mostravas.
Quem pode sem desprezo ver um lente
De imensos estudantes rodeado,
Pelos campos vagar, ali colhendo,
Uma ervinha, uma flor, um gafanhoto?
Acolá, c’um fuzil ferindo as pedras?
Deixemos, pois, um dia, oh sábia gente,
Estes prestígios que nos têm cegado;
Ponhamos como dantes estas coisas
Em seu antigo ser; como bons filhos
Recebamos a nossa Protetora;
O que foi sempre seu, em paz governe”.

A Ciência em si

Gilberto Gil, Arnaldo Antunes

Se toda coincidência
Tende a que se entenda
E toda lenda
Quer chegar aqui

A ciência não se aprende
A ciência apreende
A ciência em si

Se toda estrela cadente
Cai pra fazer sentido
E todo mito
Quer ter carne aqui

A ciência não se ensina
A ciência insemina
A ciência em si

Se o que pode ver, ouvir, pegar, medir, pesar
Do avião a jato ao jaboti
Desperta o que ainda não, não se pôde pensar
Do sono eterno ao eterno devir
Como a órbita da Terra abraça o vácuo devagar
Para alcançar o que já estava aqui
Se a crença quer se materializar
Tanto quanto a experiência quer se abstrair

A ciência não avança
A ciência alcança
A ciência em si.

Os Filósofos

Carlos Saldanha

Ante o empolgamento
que foi galvanizando
sucessivamente
os frades copistas,
os geômetras,
os astrônomos,
os pálidos almirantes com suas lunetas,
os monarcas augustos com suas esferas armilares,
e os tabeliões
Ante as maravilhas da Ciência
e do Progresso Tecnológico,
Aconteceu que
os filósofos, pouco a pouco,
com suas ideias vagas,
suas caraminholas na cabeça,
um após outro,
entre chacotas mal disfarçadas,
foram sendo jogados ao mar,
tichipum, tichipum,
por cima do parapeito do convés
do Barco do Conhecimento
que navega por mares ignotos,
levando à proa
a orgulhosa máscara
de Francis Bacon...

Cuidado, Capitão,
Cuidado...

Grafito Para Maiakovski

Murilo Mendes

Um cosmonauta cantando dá volta ao cosmos
Enquanto eu desfaço a barba.

Constrói-se a décima musa
Economia dirigida Unatotal
Que deverá mover o homem novo

Planifica-se nos laboratórios
A futura direção dos ventos
Extrai-se a energia das algas
Opera-se o sol

Eletrifica-se a eternidade
Reversível

Entretanto
O PLANETA NÃO ESTÁ MADURO PARA A ALEGRIA.

Terminemos esse passeio poético-científico com uma homenagem a um físico brasileiro que soube conjugar como poucos, na sua prática de físico e de humanista, a Ciência e a arte.

Hieróglifo para Mario Schoenberg

Haroldo de Campos

o olhar transfinito do mário
nos ensina
a ponderar melhor a indecifrada
equação cósmica (...)

na estante de mário
física e poesia coexistem
como asas de um pássaro -
espaço curvo -
colhidas pela têmpera absoluta de
volpi

seu marxismo zen
é dialético
e dialógico

e deixa ver que a sabedoria
pode ser tocável como uma planta
que cresce das raízes e deita folhas
e viça
e logo se resolve numa flor de lótus
de onde
- só visível quando damos conta -
um bodisatva nos dirige seu olhar
transfinito.

Talvez, relembrando Gedeão, uma fresta de nada aberta no vazio possa vir a ser também a poesia em uma ala de aula.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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