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A orçamentação como conflito de interesses

Aaron Wildavsky

Tradução livre do livro de Aaron Wildavsky, The New Politics of the Budgetary Process, second edition, 1992, pp. 1-8. Elaborada por Ana Beatriz Cerbino.

A palavra que originalmente significava uma bolsa ou sacola de couro usada para carregar dinheiro, adquiriu, através dos anos, um sentido mais amplo. Hoje ainda encontramos traços etmológicos da palavra "orçamento" quando ouvimos, por exemplo, sobre o "pacote orçamentário" encaminhado pelo Congresso e o presidente. Já percorremos um longo caminho desde quando carregávamos o orçamento com as mãos, embora possamos lamentar isto. A bolsa não só cresceu consideravelmente como tornou-se bastante amorfa.

O "Orçamento dos Estados Unidos" não é representado por um documento apenas. O único documento que parece formalmente um orçamento é um livro apresentado as demandas do presidente. Quando ouvimos falar que o orçamento "não é realista", aprendemos que muitas destas demandas provavelmente não serão realizadas. O mesmo pode ser dito das resoluções orçamentárias da Câmara e do Senado especificando quanto deve ser gasto no total e nos programas prioritários, assim como quanto de receita deve ser arrecadada. No final, somos deixados como uma variedade de peças legislativas - gastos através de apropriações, crédito, taxas preferenciais, etc - que juntas constituem o orçamento.

O que queremos dizer quando falamos em orçamento? Em um certo sentido o orçamento é uma projeção. Um orçamento contém palavras e números que propõem gastos para determinados objetivos e metas. As palavras descrevem tipos de gastos (salários, equipamentos, viagens) ou objetivos (prevenção à guerra, melhorar a saúde mental, prover habitação de baixa renda), e os números estão relacionados a cada item. Presumivelmente, aqueles que fazem um orçamento pretendem que haja uma conexão entre o que está escrito e os acontecimentos futuros. Se requisições por fundo estão garantidas, se eles são gastos de acordo com as instruções e se as ações envolvidas levam às consequências desejadas, então os objetivos estabelecidos serão alcançados. Orçamentos tornam-se elos entre recursos financeiros e comportamento humano, a fim de alcançar objetivos político. Apenas através da observação é possível determinar em que grau as projeções postuladas no orçamento estão corretas.

Em uma definição mais geral, orçamentar refere-se a transformar recursos financeiros em objetivos humanos. Um orçamento também pode ser caracterizado como uma série de metas com etiquetas de preços afixados. Uma vez que os fundos são limitados e têm que ser divididos de um jeito ou de outro, o orçamento tornou-se um mecanismo de fazer escolhas entre gastos alternativos. Quando as escolhas estão relacionadas entre si a fim de alcançar as metas desejadas, um orçamento pode ser chamado de coordenado. Ao incluir uma especificação detalhada de como os objetivos devem ser alcançados, um orçamento pode servir também como um plano de trabalho para aqueles que assumem a tarefa de sua implementação. Se é dada ênfase à obtenção do máximo retorno político para uma determinada soma de dinheiro, ou para o alcance dos objetivos desejados ao menor custo, então um orçamento pode tornar-se um instrumento para garantir eficiência.

Pode haver, no entanto, uma grande lacuna entre as intenções daqueles que elaboram um orçamento e sua realização. Embora o orçamento projete o alcance de determinadas metas através de gastos planejados, uma avaliação pode revelar que nenhum recurso foi gasto naqueles propósitos, que o dinheiro tenha sido gasto em outros intentos ou que as mesmas metas foram alcançadas de formas diferentes.

Visto de outro ângulo, o orçamento pode ser considerado um contrato. O congresso e o presidente prometem fornecer recursos sob determinadas condições e os órgãos concordam em gastar o dinheiro da maneira como foi estipulada. Quando um órgão distribui as verbas, entre suas subunidades isto pode ser considerado um contrato interno. Se um contrato é exequível ou não, ou se os partidos efetivamente concordam com o que está estipulado no contrato, é uma questão de averiguação.

A amplitude de um orçamento impõe uma série de obrigações e controles mútuos sobre as partes contratantes. A palavra "mútuo" deveria ser enfatizada porque é muito fácil assumir que o controle seja exercido unilateralmente pelos superiores (parlamentares, departamentos, etc...) sobre os formalmente subordinados. Porém, quando um comitê de apropriação aprova alguns gastos e não outros, quando estabelece condições para despesas, ele também se obriga a manter sua parte do trato. Um chefe de departamento (para escolher outro exemplo) que espera controlar seus subordinados deve manter a promessa de apoiar algumas de suas solicitações ou então irá encontrá-los tentando minar sua posição. Um orçamento torna-se uma teia de relações sociais e legais na qual compromissos são assumidos por todos os partidos.

Esta teia de relações que ocorre na alocação dos recursos sugere as inúmeras dificuldades que podem surgir durante o processo orçamentário. Acordos são difíceis porque as pessoas querem coisas diferentes (ou diferentes quantidades da mesma coisa). As pessoas também podem julgar o futuro de forma diferente, em parte porque preferem futuros diferentes, o que irá levá-los a discordar sobre quais limites (e oportunidades) o grupo enfrentará.

Em uma família, diferentes estimativas sobre a renda e o preço da comida para o ano seguinte justificarão a compra ou não de móveis mais caros. No âmbito governamental, diferentes estimativas sobre a receita e a inflação do próximo ano justificarão a compra de navios de guerra mais ou menos dispendiosos. Até mesmo pessoas que concordam no que comprar podem discordar sobre quem pagará a conta. Em um família, as rendas de cada um dos cônjuges pode contribuir equitativamente para o aluguel ou este pode ser dividido proporcionalmente às rendas. Cada pessoa pode tentar pagar menos fazendo com que outras paguem mais. Mas preferências por diferentes estilos de vida - por mais competição, ordem social ou igualdade - também são importantes. Se uma pessoa prefere igualdade de condições ou igualdade de oportunidades - o mais rico subsidiano o mais pobre ou o mais pobre tentando progredir - ou alguma combinação das duas para manter sua estabilidade social - faz uma grande diferença do ponto de vista do que deve ser alvo da esfera pública e, portanto, das políticas orçamentárias.

Orçamentar em qualquer grupo é um processo no qual várias pessoas expressam diferentes desejos e fazem diferentes julgamentos. A fim de promover entendimento sobre uma variedade de temas, membros de um grupo recorrem a debates sobre o que é correto e justo. Esta avaliação, no entanto, não está dada, ela resulta de uma ordem de preferência acerca de como as pessoas deveriam conviver umas com as outras. Quando esses valores não são meramente etéreos (camaradagem, por exemplo) mas levam a ações - mais para uns, menos para outros - percebemos que orçamentar é realmente opôr e reconciliar diferentes estilos de vida. Às vezes, demandas pessoais são ditadas por princípios (por exemplo, cada um deveria pagar de acordo com suas possibilidades; ou aquele que faz a maior contribuição deveria ter maior influência). Não é fácil dizer quando as pessoas são sinceras ao invocar princípios, algumas vezes isto é apenas uma desculpa conveniente para uma demanda que tenha outra motivação.

Em todo caso, ideias são invocados a fim de persuadir os outros; todos nós já fomos envolvidos em discussões onde os "princípios" pareciam causar mais furor do que as ações (quem irá lavar os pratos esta noite?), não os justificando, portanto. Uma coisa é, por exemplo, discutir que os gastos com defesa ou com bem-estar social estão muito altos; outra é argumentar que seria moralmente errado proporcionar tais recursos. É mais fácil entrar em acordo sobre o "mais ou menos" do que sobre o "certo ou errado". Pelo fato de levantar questões sobre como as pessoas deveriam se relacionar entre si, orçamentar pode envolver disputas muito mais amplas do que seus motivos aparentes.

O desejo de não desapontar ou contrariar outras pessoas faz com que seja importante manter as promessas feitas quando do planejamento. Um acordo antecipado sobre gastos (os compromissos expressos no orçamento) tem duas vantagens: evita a contínua negociação sobre cada despesa e permite a cada membro do grupo planejar atividades com a segurança de que os outros irão cooperar. Orçamentar é parte de um processo de ação cooperativa no qual compromissos para contribuir com recursos unem-se aos compromissos para seu uso. Quando as promessas não podem ser mantidas por um anos ou mais o orçamento torna-se ineficiente.

Questões sobre autoridade - quem tem o direito de decidir por quem? - e legitimidade - confiamos em nossas instituições para agir por nós? - sempre aparecem como panos de fundo e perpassam cada escolha. "Papai sabe o que é melhor" é diferente da regra da maioria ou de cada pessoa fazer o melhor acordo. Quanto mais legitimidade é dada às instruções, mais dispostos estão os participantes em aceitar os resultados como oficiais. Quando permissão, assim como processo, desacelera é porque muitas escolhas são contestadas e porque seu significado se ampliou, passando de "quanto" e "para que" para "quem tem o direito de decidir".

O processo orçamentário é ainda mais complicado em razão dos diferentes desdobramentos políticos que surgem no orçamento. Há uma implicação fiscal na qual o total do gasto, seu déficit ou superávit, em relação à receita, estimula ou restringe a economia - para combater o desemprego ou a inflação.

O orçamento é indicativo do papel do governo reflete a balança entre os setores privado e público na economia - isto é, a proporção do Produto Nacional Bruto (PNB), composta de gastos em categorias mais amplas, indica o tipo de governo que queremos: um que enfatize o poderio militar, proteja a classe média, ajude os pobres ou construa para o futuro. As hipóteses da proposta orçamentária, apropriações, emendas ou impostos, também significam que o orçamento é um pacote com milhares de programas específicos: quanto deve ser investido na segurança dos aeroportos? quem deve receber os benefícios de uma alimentação especial? ou quantos F-16 a Força Aérea necessita?

Todas essas políticas são controversas. Algumas - desemprego versus inflação, o tamanho do governo, ênfase no gasto militar ou no social - são as que melhor distiguem Democratas de Republicamos, liberais de conservadores, ainda que a política orçamentaria não se divida necessariamente em apenas estas linhas. Nem todos os Republicanos são conservadores, muitos Democratas não são liberais. Os programas selecionados no orçamento apresentam determinadas combinações que tornam difícil predizer todas as opções de um partido ou de uma ideologia. Um gasto militar maior sem o correspondente corte na área social significa um Estado maior e um déficit mais amplo; ser conservador ou Republicano não significará que um parlamentar irá optar por apoiar o equilíbrio orçamentário ao invés de gastos com defesa.

Linhas político-partidárias também são obscurecidas por demandas aparentemente contraditórias: liberais usualmente defendem programas de defesa para suas localidades; os defensores do equilíbrio orçamentário podem, por sua vez, apoiar subsídios para hipotecas; conservadores podem achar melhor apoiar o seguro social ou o subsídio-alimentação. Apesar disto, conhecer o partido de um político é ainda o melhor meio para saber se ele votará por maiores gastos com bem-estar e menos com defesa (James L. Payne. "Voters are not So Greedy After All". Fortune (August 18. 1996), pp. 91-92).

Por ser composto de inúmeras políticas, o orçamento tem muitos significados que variam de acordo com as diferentes posições institucionais no governo. Para um cidadão comum, orçamentar é ao mesmo tempo misterioso e simples. É difícil entender que sua complexidade possa ser ignorada em favor de um simples teste de eficiência: o governo pode equilibrar suas contas ou não? Ele está conseguindo se controlar? Para um órgão federal - assim como para um estadual, municipal ou semiprivado que são largamente apoiados pelo governo federal - o orçamento é o sistema de irrigação que provê a água sem a qual ele e seus produtos ressecariam e murchariam.

Grupos de interesse podem ver os muitos passos do orçamento como oportunidades ou obstáculos e suas instâncias como aliadas ou inimigas. Algumas partes - um subcomitê de apropriação ou autorização - podem ser "capturadas", mas existem muitos centros de decisão para que todos sejam capturados. Se os grupos de interesse estão simplesmente tentando conseguir mais recursos para seus programas, suas estratégias podem ser francas e abertas, porém, se no processo orçamentário os interesses de vários grupos são conflitantes - mais para um deles pode significar menos para outros - fica mais difícil para cada grupo imaginar o que fazer.

Para os comitês de orçamentação e apropriação, orçamentar é o seu objetivo e fonte de poder e seus membros devem trabalhar para preservar este poder. A partir do momento em que orçamentar ultrapassa os limites dos comitês de autorização, estes podem ver o processo orçamentário como uma ameaça e uma intrusão. Para parlamentares com demandas que tem sido bloqueadas pelos comitês de autorização (comitês cuja ação é recomendar programas e atividades para serem aprovados pelo Congresso), a ação orçamentária pode proporcionar poder. As resoluções orçamentárias, apropriações e ocasionais aumentos do débito são trens que devem correr, podendo não haver tempo para expulsar os passageiros clandestinos. Apropriações tornam-se, especialmente, alvos de oportunidades para "passageiros" - fazer oposição ao aborto e ajuda militar às forças da América Central, por exemplo. Resoluções orçamentárias permitem chances de votação em assuntos que, caso contrário, não seriam discutidos (fundos para trabalhos públicos ou aumentos dos benefícios para veteranos de guerra).

Para os membros dos partidos políticos, particularmente seus líderes, o total destinado aos grandes programas nas resoluções orçamentárias mede a influência dos seus respectivos partidos no curso da ação governamental; em função da atual organização das duas casas (eleição do Presidente da Câmara e indicação dos comitês), nenhuma outra ação é da mesma magnitude para as lideranças partidárias. A batalha do orçamento é o teste de comando. A habilidade dos partidos em permanecerem juntos na etapa final (independentemente no voto para organizar as Casas entre as linhas partidárias) é seu último teste de coesão.

Para aqueles parlamentares identificados com a instituição - o que dependendo da matéria e do desafio, abrange de alguns poucos até todos - orçamentar é um teste para o Congresso. Pode o Congresso escolher, impôr sua vontade? Em resumo, o congresso pode governar? O presidente faz as mesmas perguntas, só que um pouco diferentes: "eu posso governar os órgãos? Posso governar o congresso? Posso governar responsavelmente e manter o apoio da população? Tanto o presidente quanto o Congresso devem perguntar, "nós fazemos política ou a política nos controla?". E ainda, "pode qualquer um de nós controlar os acontecimentos?".

A complexidade do processo orçamentário federal revela que os propósitos dos orçamentos são tão variados quanto os propósitos das pessoas que os fazem. Um orçamento pode ser elaborado para coordenar diversas atividades que se complementam a fim de alcançar objetivos comuns. Outro pode ser elaborado, principalmente, para disciplinar subordinados de um órgão através da redução das verbas destinadas ao pagamento de seus salários e manutenção dos principais projetos. E um terceiro tipo de orçamento pode ser direcionado essencialmente para mobilizar o apoio de grupos que se beneficiam dos serviços que determinada agência provê.

Uma boa discussão sobre a natureza e variedade dos orçamentos pode ser encontrada em Government Budgeting de Jesse Burkhead (New York: Wiley, 1956). Ver também os esclarecedores comentários em Frederick C. Mosher. Program Budgeting: Theory and Practice, with Particular Reference to the U.S. Departament of the Army (Chicago: Public Administration Service, 1954), pp. 1-18.

Não se chega a lugar algum, entretanto, com a insistente discussão de que um orçamento é apenas uma das opções descritas acima, quando deveria ser qualquer uma ou todas ao mesmo tempo, ou então muitas coisas além destas. Pode-se, porém, adotar uma visão particular do orçamento, escolhendo a mais conveniente aos seus propósitos.

Sem a pretensão de ter chegado à única perspectiva correta ou de ter exaurido o assunto, gostaria de apresentar uma concepção que aparece em um ambiente governamental.

Tomado como um todo, o orçamento federal é a representação, em termos monetários, da atividade governamental. Se a política é considerada, em parte, como um conflito entre as quais demandas devem prevalecer na determinação da política nacional, então o orçamento registra os resultados desta luta. Se alguém pergunta, "quem recebe o que o governo tem para dar?" encontra as respostas no orçamento. Se a política é considerada um processo no qual o governo mobiliza recursos para resolver problemas prementes, então o orçamento é o centro destes esforços.

O tamanho e a forma do orçamento é um problema de sérias disputas em nossa vida política. Presidentes, partidos políticos, administradores, parlamentares, grupos de interesse e cidadãos interessados competem uns com os outros para ter suas demandas colocadas no orçamento. As vitórias e as derrotas, os compromissos e as barganhas, os acordos e as esferas de conflitos relacionados ao papel do governo federal na nossa sociedade, tudo aparece no orçamento. Em seu sentido mais amplo, orçamentar - isto é, a tentativa de alocar recursos financeiros escassos através do processo político com o objetivo de alcançar diferentes visões de bem-estar - encontra-se no centro do processo político.

A existência de diferentes entendimentos do que seja bem-estar capacita as pessoas a fazerem acordos umas com as outras através do orçamento. O fato desses entendimentos serem conflitantes significa, porém, que nem todas as promessas serão cumpridas.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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