Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.
A pedagogia do absurdo
Chico Guil
Escritor, artista plástico, publicitário e jornalista
As horas das crianças são moles e eternas como os relógios de Dali
Anos atrás dei aulas de matemática numa escola pública de Prudentópolis/PR. Demorou pouco até perceber que os alunos estavam precisando menos de matemática que de conversa. Bastava tentar descrever a resolução de um exercício algébrico, com exemplos da vida real, e eles começavam a narrar os fatos, corriqueiros a princípios, citando situações comuns, e depois seguindo por caminhos mais tortuosos, onde moravam suas dúvidas mais urgentes, onde a teoria dava espaço aos soluços, ao riso, às decepções, às verdadeiras descobertas, que a disciplina escolar escondia sob um véu negro. Não era nos números que eles estavam pensando. A disciplina que praticavam fora da aula tinha outros métodos, juntava crendices de toda espécie, conceitos que se perpetuavam em tentativas frustradas de resolver problemas que sempre se mostravam insolúveis. A escola deveria apresentar as soluções, mas não sabia absolutamente nada sobre a vivência dos garotos.
Um dia apareceu um padre e rezou uma missa no pátio. Fiquei me arrastando por ali, querendo pedir a palavra e dizer o que ele omitia. Mas era uma missa, era preciso explicar o que era pecado e assustá-los, pois os alunos estavam começando a ficar muito à vontade, muito relaxados. Rezaram com o religioso os textos sagrados, decorados, os mesmos que o Espírito Santo escrevera no tempo em que eu era criança. Como não entendiam nada do que diziam, os garotos ficaram naquele medo, imaginando que um grande mistério os cercava, e que a sabedoria daquele homem era imensa, embora ele não conseguisse se fazer entender. Era uma imagem que ficaria gravada, como ficara em mim nos meus anos verdes, ficaria incomodando, impedindo as crianças de se soltarem na busca de seus sonhos. Acabei fugindo para os fundos da escola, onde me distraí chutando pedras no campo de futebol.
Terminada a missa, recolhi os alunos à sala. Minutos depois apareceu a secretária e perguntou se alguém queria se confessar. Ninguém respondeu. Quando ergui o dedo, a classe riu, sabendo que não era coisa séria. Porém, contrariando as expectativas dos garotos, fui.
Encontrei o padre atrás de uma mesa, uma cruz brilhante no peito, as mãos cruzadas sobre a mesa.
- Sim, meu filho? - disse ele.
- Só vim conversar.
- Pois não.
- Sabe o que é, seu padre, tem umas coisas que você não devia dizer pras crianças. Esse negócio de pecado, por exemplo. Fale de outras coisas, fale de esperança, de coisas alegres. Elas nem sabem o que é pecado. Ninguém sabe. Nem eu, nem você.
- É verdade - disse o clérigo, com os olhos petrificados.
- Não adianta você falar em pecado - continuei - porque quando elas estão lá na sala de aula eu digo que é tudo diferente. Eu digo pra eles que o inferno é ideia de gente infeliz, e que o paraíso mora dentro da gente. Compreende?
O pobre missionário concordou. Eu queria que a discussão pegasse fogo, que ele argumentasse, mas ele apenas concordou. Talvez nunca houvesse sido atacado daquele jeito. Voltei para a sala de aula, decepcionado.
Fritando a jararaca
Marcada a primeira prova bimestral, posto que eu não poderia fugir à regra, cheguei sério à sala da 7ª B naquela manhã. Escrevi as questões no quadro negro, esperei a garotada copiar e comecei a andar pela sala. Os alunos não queriam fazer prova. Queriam dormir. Por que obrigavam as crianças a levantar tão cedo? eu me perguntava. Após alguns minutos alguém pediu uma informação sobre um quesito qualquer. Fiz a besteira de ensinar-lhe todos os passos na resolução da questão, fácil quanto cortar pudim com uma cimitarra. Ouvidos atentos, os colegas também se acharam no direito de perguntar. Em pouco tempo a sala estava um alvoroço. E sequer lembrei que se tratava de uma prova, empolgado que estava com a animação geral. Ao final acabei resolvendo todas as questões. Saí da sala como que empurrado por um bafo de euforia, um sopro de vida como o vento que verga a copa das árvores e acalma todos os espíritos da floresta. Criaturas dóceis e adoráveis, era apenas nisso que eu pensava!
Ao chegar à 8º B, também com prova marcada para aquele dia, fui mais duro. Apliquei o giz no quadro, desenhei as questões e sentei sobre a mesa, de onde fiquei observando os guerreiros do fim do milênio destrincharem a jararaca. Prova bimestral é isso, não é? Uma jararaca. Quem reprova nela, é como se houvesse sido picado, envenenado, e a partir dali começa a morrer. Nunca mais se cura, pois não existe antídoto para a reprovação.
Esperava os movimentos comuns dos coladores. Queria ter esse privilégio, apanhar um deles colando e dar com ele muita risada, mas infelizmente isso não aconteceu. Silêncio. Vinte minutos se passaram. Alguns levantavam a cabeça e me olhavam, como pedindo socorro. Eu, durão, os lábios um risco, os olhos uma sombra impenetrável. Aos trinta minutos o primeiro entregou a prova, confiante. Mas antes que se sentasse, novamente fiz bobagem. Disse-lhe que a primeira questão estava errada e perguntei se não queria fazer nova análise. Topou, e então veio um colega seu e perguntou o que tinha de errado. Duas questões. Tome, arrume, dê um jeito, eu sei que você sabe o que fazer! Três, quatro, cinco deles. Já estavam todos em pé, fazendo uma fila que dobrava na parede dos fundos e voltava ao meio da sala. O pandemônio novamente se formara.
Eu poderia gritar com eles, mas lembrei como eram tristes os gritos que costumavam vir das salas vizinhas. Divirta-se! veio um anjo me dizer, então cortei definitivamente a corda que os amarrava e os garotos fizeram um circo. Todo mundo consertando o que estava errado, ao meu redor uma dúzia deles piando, desesperados, sorridentes, felizes. Estavam com vontade de me abraçar, por isso se apoiavam em meus ombros, tocavam sem querer em minhas pernas, minhas mãos, meu coração e meu cérebro, até que eu virasse uma bola de fogo e saísse dali querendo morrer imediatamente para ter a certeza que minha vida tinha valido alguma coisa.
Na noite daquele dia um amigo ligou e me falou das coisas escondidas, que não ousamos pronunciar, lá nas dobras esquecidas dos nossos espíritos. Lá espreitam, grávidos de luz, intumescidos de néctar delicioso, o louco e o poeta.
(A vida é um fragmento da existência que ainda não se encaixa no resto do universo. Talvez seja por causa disso que o escritor escreve, pensando que explica alguma coisa. Mas não explica nada).
Fonte: Agência Carta Maior, 05/12/2004
http://www.plinc.com.br/recomeco/materias_anteriores/artigo_102_7.htm
Publicado em 31 de dezembro de 2005
Novidades por e-mail
Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing
Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário
Deixe seu comentárioEste artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.