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A reabilitação da política no pós-64

Raimundo Santos

Professor do Curso de Pós-graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade CPDA, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)

Relatando certo contexto intelectual do imediato pós-64, Daniel Pécaut equaciona bem os dilemas de orientação que as esquerdas enfrentaram quando postas ante à nova circunstância do regime militar. O autor realça que então se teria formado, nessas áreas da oposição, considerável unanimidade em torno da interpretação segundo a qual a ruptura política de 1964 resultara do esgotamento do modelo de industrialismo via substituição de importações e que, hegemonizado por interesses e grupos atrasados, o novo regime encarnava um espírito conservador que o levaria para à estagnação econômica e a ter vida curta.

Na nova circunstância, o nacional-desenvolvimentismo perderia sua força condicionante da lógica do social e a democratização da sociedade já não mais seria esperada como decorrência natural da modernização econômica. Alijando forças nacional-populares do aparato governativo, o golpe de 1964 cindira a articulação entre teoria e prática política. O evolucionismo, de um lado, e a relação com o Estado, de outro, antes garantiam a consubstancialidade de um em relação à outra.Bibliografia Parecia que a partir daquele momento uma mudança adviria mais em consequência das “contradições internas” do regime ou mesmo de uma “aceleração do processo”, estimulada pela luta armada. Agora, em registro pessismista, era “natural” que despertassem interesse categorias como “esgotamento da substituição das importações”, “contradições explosivas”, “desenvolvimento do subdesenvolvimento” e “dependência”, noções que apareciam nos textos mais publicísticos daquela época como busca de teses definidoras de uma nova lógica do social no pós-64.

A ideologia nacional-desenvolvimentista dos anos 50 – com sua crença de que, ao lhe imprimir racionalidade e homogenização, o planejamento levaria a sociedade subdesenvolvida ao crescimento – cedia lugar a  uma postura que realçava a tensão de um país naquela ocasião interditado em sua autonomização econômica e levado a viver um processo de esgarçamento das distorções histórico-estruturais e do seu tecido social. A sedução desse paradigma estagnacionista impedia que se visse que o regime militar não representava uma “volta ao passado agrário” como seria próprio das contrarrevoluções. Ao mesmo tempo em que dificultava o reconhecimento do sentido “revolucionário”-modernizante de 1964, essa postura embaçava a percepção – necessária para a oposição orientar-se – dos significados da derrota e da natureza que assumia o novo regime a ser combatido.

Nesse ambiente intelectual, também se buscava uma explicação econômica que desqualificava alguns grupos sociais relevantes no pré-64, chegando-se a uma ideia de um “autoritarismo estrutural” que caracterizava a ditadura de 1964 em função da dialética do “novo caráter da dependência”. Perdia-se, para a análise da conjuntura, a história política anterior que levara aos impasses de 1964. Daniel Pécaut insiste em que o político, sobretudo depois do Ato Institucional nº 5 de dezembro de 1968, iria se apagar nessa cena intelectual reduzido ao plano da economia. Uma espécie de “causalidade estrutural” seria realçada para dar conta de questões-chave para o campo da política daqueles outros novos tempos.

Num momento de refluxo, sem iniciativa política, vários setores da oposição (e da intelectualidade) foram levados a ver as coisas de forma refratada. A aventura das ações armadas realizadas pela juventude e outras áreas militantes, além  do influxo que recebia da Revolução Cubana e da  rebeldia do Maio de 1968, em boa medida se explicava pela incapacidade dos comunistas. Como à época disse um dirigente do PCB, o partido não conseguira estabelecer uma interlocução político-intelectual eficaz com aqueles grupos de esquerda para lograr uma consensualização mínima que certamente potenciaria a oposição naquela hora turva e difícil.

Lendo-se o livro de Pécaut, vê-se que algumas teorizações tampouco ajudaram. Pelo contrário, forneceram elementos em reforço à mentalidade catastrofista já existente na tradição marxista-leninista, alimentando ainda mais a ideia da vulnerabilidade econômico-estrutural do regime e o uso da decisão arbitrária e o voluntarismo como métodos de ação que terminaram se impondo naquelas áreas rebeldes com alto custo, como se sabe.

As teorias que apelavam para a mobilização contra a ameaça de estagnação do país passaram a influir tanto à explicação do desfecho de 1964 como na leitura da nova circunstância, sem ajudar na gestação de alternativas realistas à oposição. Não por acaso num princípio as exceções vão se situar longe da intelectualidade – em setores da classe política que, em forma reativa, logo se rearticulariam nos estreitos espaços do processo eleitoral, como o fizeram já em 1965, por exemplo, quando derrotaram o regime nas eleições para governador no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Na clandestinidade, o PCB defendia a tese de que a luta pelas liberdades constituía o eixo apropriado para vertebrar a frente única de resistência à ditadura. No entanto, sem uma clara referência intelectual, os comunistas pagavam tributo à própria ambiguidade: ao mesmo tempo em que propunham o realismo da “tática” de acumulação de forças, intramuros também cultivavam o “tradicionalismo” próprio da sua definição de partido revolucionário-marxista-leninista, filiação que encerrava aquela propensão “estruturalista” de se pensar relações unívocas entre economia e política, exploração e revolução.

Daniel Pécaut é um dos autores que relevam a importância da redescoberta da política que se encontrava submersa na “economização” catastrofista influente naquele ambiente intelectual do imediato pós-64. Contra a corrente, Pécaut quer mostrar os impasses a que levariam as tendências sublinhadoras do econômico. Tendências, aliás, curiosamente derivadas das posturas que atribuíam o golpe de 1964 aos erros “politicistas” dos políticos (burgueses) e também do PCB (pela chamada atitude de colaboração de classe “economicista”). Pécaut procura exibir as aporias de parte da intelectualidade quando então setores seus viram-se colocados na disjuntiva: passividade diante das derrotas sucessivas (Abril de 1964, Ato Institucional nº 2 em 1965 e Ato Institucional nº 5 em 1968) ou engajamento nas ações da juventude guerrilheira já então em curso. Compreende-se como o que se escrevia em certa ensaística daquela época teria, à sentido prático e como o debate que então se travava entre alguns autores relevantes não era nada “acadêmico” e “abstrato”. Pelo contrário, dessa nem sempre visível “batalha das ideias” resultava parâmetros para a ação que certamente eram recolhidos por não poucos atores vinculados à sociabilidade da oposição de esquerda e de centro-esquerda daqueles anos de “luta contra a ditadura”.

Daniel Pécaut valoriza dois acontecimentos intelectuais interligados que muito contribuiriam para descongelar a política do frio revestimento da economia. O primeiro deles foi o aparecimento da teoria da dependência de Cardoso e FallettoBibliografia com o impacto que ela teria ao difundir um entendimento novo sobre uma articulação mais mediada entre economia e política. A “cartilha” de Cardoso e Falletto ainda não acabaria com a propensão de ver a ditadura separada das suas origens políticas (a falta de “bases políticas” para as reformas de base, como à época dissera Caio Prado Jr.; a polarização do governo Jango) nem interromper a tendência a caracterizar o regime militar como expressão direta da dependência imperialista. O segundo é um evento intelectual que também estimulará resultados aos poucos: trata-se da descoberta de que a economia brasileira não estava condenada à estagnação a que chegara nos primeiros anos da década de 60. A rigor, essa questão já havia sido anotada nas últimas linhas do texto de Cardoso e Falletto de 1967. Esse tema será tratado logo depois por Conceição Tavares e José Serra no ensaio “Além da estagnação: uma discussão sobre o estilo do desenvolvimento recente no Brasil” (1970), divulgado entre nós em certas áreas. Não obstante, nesses anos persistirá — e em certo sentido se acentuará — o tipo de interpretação econômica antes mencionado, o qual até mesmo adquiriria, numa ótica rigidamente marxista, uma problematização propensa a ver tudo como engrenagem do processo de acumulação capitalista

A nova teoria da dependência de Cardoso e Falletto tanto combatia a ensaística que se apoiava na sociologia da modernização como as "novas teses equivocadas" do marxismo latino-americano. Em primeiro lugar, aqueles autores se colocavam contra as teorias derivadas de modelo econômico que não conseguiam dar conta das singularidades dos países subdesenvolvidos. Essas sociologias econômicas propunham uma relação unívoca entre crescimento econômico e modernização das sociedades tradicionais, abafando a análise de uma via que reproduzisse atraso e dependência em contexto de modernização. O novo enfoque da "cartilha" deixava para trás a ideia de mudança social  como "agregação de variáveis" e considerava as relações entre grupos sociais e forças sociopolíticas como temas privilegiados. Aqueles autores também rejeitavam a propensão a se derivar o comportamento político da estrutura social e realçavam o tema do tipo de orientação dos protagonistas sociais inscritos na dialética da mudança e conservação do status quo. Cardoso e Falletto procuravam ver os processos econômicos como processos sociais realizando a interseção analítica de três dimensões: o poder econômico, o poder social e o processo político, ou seja, pretendiam um modelo de análise integrada na qual o desenvolvimento aparecia como fruto da interação entre grupos sociais, e não como resultado de “fatores naturais”. Em suma, colocavam a tematização das estruturas de dominação como questão central da chamada sociologia do desenvolvimento.

Por sua parte, escrevendo à saída do túnel, no segundo semestre de 1973, Fernando Henrique Cardoso estabelecia a equivalência entre a mais famosa das "novas teses equivocadas" - a tese do "desenvolvimento do subdesenvolvimento" ou "acumulação do atraso", como a chamava - e o seu correlato e equívoco dilema "socialismo ou fascismo". O interesse do autor era chamar a atenção para o fato de que o reconhecimento do novo ciclo econômico evidenciado nos anos de chumbo não resultava apenas da descoberta de que o capitalismo periférico se diversificava e crescia, embora de forma desigual segundo a fórmula do "desenvolvimento associado". Esse reconhecimento exigia ainda que se insistisse no fato de que os caminhos da transformação da sociedade eram políticos e não se desligavam das forças sociais presentes nas arenas da vida nacional realmente existente.Bibliografia Nesse momento já eram evidentes tanto a derrota dos grupos armados como o descrédito dos vieses catastrofistas. A aposta na ação subversiva dos fatores de tipo econômico – a partir da associação desses fatores (estreitamento do mercado interno, incapacidade de absorção de mão-de-obra, apartheid fascista e expansionismo) com a ideia do fim do regime no curto prazo – cedia lugar à percepção de que já era hora de a oposição reconhecer a nova situação e apostar numa quebra do imobilismo societário que o regime havia imposto pela força nos anos de chumbo.

Assim como na Espanha as comissões operárias, oposições liberal-republicanas e dissidências monárquicas bloqueavam o longevo franquismo em dissídio com uma nova sociedade industrial espanhola, no Brasil - "com mais força e de modo mais desordenado" - o próprio ímpeto do crescimento do "milagre" gerava condições sociais que a vida política expressaria como uma contradição com o estilo burocrático-repressivo do regime de 1964. A partir daí se abriria uma alternativa realista, consistente, de um lado, no esforço da oposição em criar um "clima de liberdade" que permitisse reativar a sociedade civil (igrejas, grêmios estudantis, círculos de estudos e debates, movimentos sociais etc.), devendo, de outro lado, o processo também contar com movimentos favoráveis à "distensão política" oriundos do próprio aparelho do Estado. Ou seja, a estratégia divisada por Fernando Henrique Cardoso se sustentava no argumento de que as contradições existentes no sistema de poder acabariam por paralisar a tentativa da cúpula do regime em racionalizar o imobilismo burocrático-repressivo, se a tais contradições se somasse a pressão dos grupos que estavam fora do bloco no poder e insistiam em participar da política, mas não a confundiam com adesão; ao contrário, dispunham-se a manter a integridade de suas visões oposicionistas.Bibliografia

Submerso e passando por uma fragmentação que muito o debilitava nesse período gris, o PCB e a sua postura lúcida constituiriam, por assim dizer,  um "terceiro evento intelectual" favorável à reabilitação da política, sobretudo da política institucional que norteará a hipótese de que uma frente democrática poderia derrotar o autoritarismo. Logo em sua resolução política de maio de 1965, o PCB definira a unidade das forças contrárias ao regime de 1964 como um processo gradual de formação de uma ampla concertação "de resistência, oposição e combate" à ditadura (assim nessa progressão), justamente centrada no objetivo da recuperação das liberdades. Era uma diretriz não apenas reativa à ruptura da ordem constitucional como também resultava de uma reproposição da "nova política" que abrira passagem no PCB após o suicídio de Vargas e a crise do stalinismo. Embora a moldura classista estivesse presente na ideologia marxista-leninista nela sempre verbalizada, os temas do constructo pecebista há muito já eram outros - o reconhecimento da industrialização capitalista no país e sobremaneira o valor que se atribuía à "grande política" expressa na frente nacionalista e democrática que emergira influente no país em meados dos anos 50.

Praticando uma "sociologia da modernização" um tanto às avessas, o PCB associava economia e política valorizando arenas nas quais os atores sociais e políticos não seguiam  lógicas simples. Sem dúvida, tratava-se de um pensamento que já realçava o papel da política e das eleições, dos governos bifrontes (compostos de elementos progressistas e conservadores) e do Parlamento e dos partidos - um terreno largo e movimentado no qual os comunistas eram chamados a se desdobrar em muitas frentes de trabalho, ocupadíssimos ao transitarem por tal sociabilidade plena de diferenciações. É só ver como era apresentado o processo de agregação e representação de interesses em dois textos bem próximos um do outro: a "Declaração sobre a política do PCB", de março de 1958, e as "Teses para discussão do V Congresso do PCB de 1960", particularmente nas suas seções relativas à chamada "tática do partido", nas quais inventários sobre micromovimentos sociais e ações políticas se alternam com a construção pormenorizada de uma sociabilidade que poderia lastrear  a articulação da frente única. Pelos detalhes da vida cotidiana aí descritos, não se trata de uma simples consensualidade com vistas a uma  unidade completa como numa aplicação pura e simples do marxismo-leninismo, mais se parecendo um processo complexo sujeito a vai-e-vens, feito e refeito.Bibliografia

A apenas três anos do golpe, quando o "novo modelo econômico" ainda não se perfilara por completo, a sensibilidade política dos comunistas brasileiros captava as inflexões da vida corrente do pós-64. No Informe de Balanço do Comitê Central ao VI Congresso de 1967, já  se observava que, pelo nível alcançado pela sociedade brasileira, tornava-se difícil deter a marcha do crescimento das forças produtivas nacionais. O que se modificara depois de 1964 era a natureza da estratégia anteriormente definida a partir da polarização entre grupos ultraconservadores internos e externos (como se dizia, interessados na estagnação econômica e no status quo) e as forças que lutavam pela libertação nacional industrialista. Os autores do texto pecebista queriam sugerir que esse projeto autonomista, agora percebido como de realização duvidosa (por via substituição de importações), dava lugar a um ciclo desenvolvimentista novo. Emergia um outro tipo de compreensão, agora mais nítido: “A alternativa atual coloca-se entre os diferentes cursos ou caminhos a se imprimir ao processo de desenvolvimento econômico-social” –  caminho nacional e democrático ou caminho dependente do imperialismo e de acomodação com o latifúndio. O Estado desempenhando papel decisivo nesse “modelo” de crescimento subordinado.

No entanto, essa compreensão se perde muito quando aquele documento formula as chamadas definições estratégicas feitas com base nas "contradições fundamentais" que, segundo dizia o imaginário pecebista, atravessavam a nação. A teoria dos "obstáculos estruturais" voltava a problematizar a questão do desenvolvimento ainda sob a chave do modelo consagrado de revolução burguesa (vale dizer: democrático-burguesa e de libertação nacional). Como na proposição do pré-64, a interdição do "caminho capitalista progressista" se devia aos "obstáculos" representados pelo imperialismo e pelo monopólio da terra. No entanto, procurando suavizar a "economização" da visão, os autores do texto anotavam que o empecilho à solução do problema do desenvolvimento econômico residia na "aliança política entre o imperialismo e a reação interna". No corpo principal do documento, definia-se uma frente única sob molde classista, mas, na parte da "tática", apresentava-se o perfil de uma frente "mais ampla do que era aquela que tínhamos antes do golpe de Abril". Embora se procurasse valorizar o caráter prioritário da defesa das liberdades - seguindo a autodefinição revolucionária do partido - para que as amplas massas, por meio da democracia, interviessem "na vida política e no processo revolucionário", a estratégia ali proposta pelos comunistas revelava bastante realismo. Dizia-se no texto: "O esforço fundamental, para impulsionar o movimento de massas contra a ditadura, deve ser acompanhado de um esforço tenaz para unificar a ação de todas as forças e personalidades políticas que resistem ao regime e a ele se opõem. Da frente antiditatorial participam igualmente correntes e personalidades religiosas". Apesar de verbalizarem o propósito de se lutar por um governo de tipo revolucionário, os comunistas se rendiam à hipótese mais plausível de que a substituição do regime de 1964 ocorreria mediante o surgimento de um “governo formado pelo conjunto das forças antiditatoriais”.

Num outro documento em que tratavam do tema da natureza do regime, escrito após o Ato Institucional nº 5, os comunistas do antigo estado da Guanabara apresentaram uma reflexão sobre a conjuntura muito diferenciada da sociologia marxista-leninista. É um texto no qual eles correlacionavam o curto termo com o médio prazo na análise do que chamavam de "processo de fascistização" do país, processo em cuja implantação os setores mais reacionários de 1964 se empenhavam naquele momento. Embora, pela essência de classe e suas vinculações antinacionais e pela ideologia conservadora, classificasse o regime como de tipo fascista, em seu argumento principal o texto procurava especificar a modalidade brasileira de fascismo.Bibliografia Sem constituir uma conceituação explícita, essa ideia de “processo de fascistização”, mais do que uma cautela para referir um processo inconcluso, aludia a alguns traços não clássicos que a experiência brasileira assumia – apoio na corporação militar e na tecnocracia, caráter desmobilizador mediante a atomização das massas (observe-se como o PCB insistirá na necessidade de se reverter a passividade instaurada com o clima de terror governamental pós-68) etc.

Avaliando os fatores temporários que condicionavam aquela conjuntura - especialmente o Ato Institucional nº 5, as cassações e a repressão -, os comunistas da Guanabara registravam que tais fatos sinalizavam o avanço do "projeto de fascistização". Porém, aquilatando os fatores de tipo mais permanente - como as dificuldades e as crises que, "sob pressão da resistência democrática", ele teria, mesmo os conflitos com as forças que com ele se chocavam ou dele se desatrelavam -, podia-se prever que era da natureza do regime experimentar um processo de esgotamento das suas potencialidades a médio ou longo prazos. Ou seja, dizia-se, nesse texto de março de 1970, que a consolidação de um Estado autoritário, militarista e tecnocrático - o espectro que rondava a vida política nacional naquele momento - não constituía uma fatalidade ante a qual nada se podia fazer.

Outro ponto desenvolvido naquele texto era o de que, para uma melhor análise de conjuntura, fazia-se necessário superar o "primarismo" que vê (via) "as esperanças do êxito de uma política revolucionária unicamente no caos e na catástrofe da política econômica das classes dominantes". Se esse distanciamento do viés estagnacionista já se impunha diante das evidências dos índices econômicos do “milagre”, devia-se agora deslocar a atenção para uma outra preocupação. “O fato de haver crescimento –  dizia-se –  não significava que a política econômica não contrariava interesses da maioria da Nação...”, sendo oportuno caracterizar o tipo de crescimento (monopolização, confiscos salarial e tributário; desnacionalização do aparato produtivo; reorientação dos investimentos públicos a serviço da “racionalização” dependente da economia nacional etc.).

É preciso observar que os dois pontos anteriores sustentavam o argumento da alternativa que os comunistas da Guanabara ofereciam ao voluntarismo dos grupos de esquerda radicalizados da época. A questão principal era recusar a perspectiva da luta pela derrubada do regime no curto prazo, opção justamente alimentada pelo viés estagnacionista que, em última instância, simplificava a reflexão sobre a circunstância. Em lugar de um ataque frontal ao regime, defendia-se a orientação de resistência prolongada, ou seja, a necessidade de se preparar para um "trabalho em profundidade", como se dizia naquele texto de 1970.

A reabilitação do espaço da política encontraria raízes no solo do próprio cotidiano, sendo possível articular  -  como recomendava a resolução citada -  ações parciais em todos os níveis do movimento de massas e também dos acordos de cúpula a fim de conseguir que "aquele sentimento passivo (pós-68) vá tomando forma, pouco a pouco, até se transformar num grande movimento nacional, em frente única, que englobe os sindicatos, o movimento estudantil, a Igreja Católica, os partidos e os políticos da Oposição...". Por um lado, o documento de 1970 atentava para as marchas e contramarchas da tentativa de montagem do Estado autoritário, militarista e tecnocrático. À proporção que esse projeto avançava, surgiam resistências na direita liberal e em outras forças oriundas de 1964, conflitos que levavam o regime a um crescente isolamento da “classe política”. Por outro, o texto procurava caracterizar o “modelo econômico” brasileiro como uma experiência traumática da qual nasciam várias expressões de descontentamento que aos poucos iam constituindo “linhas de resistência” ao regime –  frente antimonopolista, movimento contra “arrocho salarial” e oposição à política tributária; resistência ao entreguismo e oposição nacionalista, inclusive de setores das Forças Armadas (FFAA); reação dos empresários à desnacionalização; reforma agrária para dinamizar o mercado interno (este, com a recusa das reformas, condenado a um crescimento lento e desequilibrado); etc. Ou seja, a “lógica do social” sugerida estava bem distante da positividade característica do constructo marxista-leninista, mesmo que este sempre fosse reivindicado como ideologia pelo próprio PCB. No entanto, valorizavam-se pequenas iniciativas e ações em articulações mais complexas, trabalhando-se a perspectiva de “multiplicar o aparecimento de focos políticos de resistência, a fim de romper com a passividade das massas e passar da defensiva à ofensiva”. Essa valorização das “miudezas” bem expressa no texto dos comunistas da Guanabara era a tradução prática da ideia de ”partido organizador” que atravessa todo o documento ora comentado.

Tal análise de previsão histórica, afirmada em um modelo que não obedecia rigidamente a uma filosofia histórica nem se subsumia à ação demiúrgica de “classes universais”, aparece evidente quando aqueles comunistas procuraram simular no texto de 1970 os cenários do fim do regime como hipóteses para orientar “estrategicamente” o PCB e a oposição: a) A ditadura poderia ser derrotada no contexto de um movimento irresistível de opinião pública que galvanizasse parte das FFAA para a causa da redemocratização e organizasse um levantamento nacional (com maior ou menor emprego da violência); b) ela poderia ocorrer também após um longo processo de desagregação interna do poder sob pressão das massas e após sucessivas crises, forçando uma parte do governo a facilitar uma abertura democrática; e c) ou ainda pela predominância e vitória nas FFAA de uma corrente nacionalista que existia naquela época – hipótese qualificada com a anotação de que tal corrente, se hegemônica, podia cancelar o entreguismo do regime mas tentaria manter o poder militar autoritário, circunstância que exigiria novos esforços para então desmontar os restos do regime e democratizar a vida política nacional.

Além disso, a valorização das eleições, em plena época dos anos de chumbo, não deixa dúvidas quanto à importância que era atribuida à política. As eleições (as de 1970, majoritárias, indiretas; proporcionais, diretas; e em condições de muita apatia e temor) são vistas por eles como uma oportunidade para se "aproveitar tudo" e não ficar à margem (acatando o desejo do regime, como se dizia). Chegava-se a afirmar que, com as eleições, "abrem-se respiradouros, por menores que sejam, para a manifestação da vontade das massas e ampliam-se as possibilidades de criação de novos focos de resistência à ditadura". Esse equacionamento das eleições indica que os comunistas já percebiam em suas discussões o tema da autonomia da política como ponto demarcativo das principais orientações no campo de esquerda e centro-esquerda ao qual eles procuravam se alinhar.

Voltando ao registro de Daniel Pécaut sobre aquele clima intelectual do pós-64, convém observar que as duas “publicísticas” anteriormente resumidas trabalhavam à contracorrente. Em seus textos de 1973 (já adiantado o tema no opúsculo de 1967), Fernando Henrique Cardoso aludiu a ensaístas de significativa gravitação entre nós, interpelando o viés catastrofista neles presentes e cujo limite ficou bem representado no lema “socialismo ou fascismo” e no voluntarismo a que levava a ideia de um esgotamento econômico do regime de 1964 a curto prazo. O PCB, um pouco antes, não conseguira interpelar com sucesso os grupos radicais do seu campo de esquerda. De modo limitado, os comunistas procuraram conferir um quadro de referência à sua práxis gradualista, continuando uma tradição que, com altos e baixos, vinham trilhando desde há muito e que marcara a conduta política com a qual eles haviam conquistado confiabilidade e gravitação no campo democrático de esquerda e centro-esquerda. Mesmo que a tradição de frente democrática naquele tempo ainda não se afirme com consequências mais estratégicas na elaboração pecebista – como se ensaiaria durante o “debate eurocomunista” no PCB ocorrido entre o fim da década de 70 e o início da década de 80 –, ela já constituía nos anos de chumbo um elemento inestimável para a gestação da cultura política da resistência democrática que se acrisolaria, depois, à volta do MDB.

Texto de dezembro de 1996, fruto de uma pesquisa sobre a relação MDB—PCB no CPDA/UFRRJ

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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