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A territorialidade do ciberespaço

Michéle Tancman Candido da Silva

UFF/Fundação Cecierj

Introdução

Ao pensar, neste início de milênio, nas relações que se estabelecem entre a Geografia e o avanço das novas tecnologias informacionais, é possível fazer um estudo das novas bases das relações de socialidade na virtualidade do ciberespaço e os seus reflexos na base material da sociedade. Muitas vezes, a localização de nossos corpos não mais define o circuito de interações: a pessoa que agora passa, logo ali, adiante de nossa casa, encontra-se mais distante que o nosso amigo no Canadá.

Antes de prosseguirmos, faz-se necessário definirmos como entendemos ciberespaço. Para nós, o ciberespaço é visto como uma dimensão da sociedade em rede, onde os fluxos definem novas formas de relações sociais. Embora não esgote, nem represente todo o ciberespaço, encontramos na Internet a principal rede telemática mundial. As relações sociais no ciberespaço, apesar de virtuais, tendem a repercutir ou a se concretizar no mundo real. Marcam, portanto, um novo tipo de sociedade. O indivíduo rompe com alguns princípios tidos como regras sociais, alterando alguns valores e crenças, sem que isso seja uma determinação da sociabilidade existente no mundo.

Vários exemplos poderiam ser narrados aqui. Desde relatos de interações pessoais, de novas formas de empregabilidade e de novas formas de estudar, até atitudes antes inimagináveis, como algumas que tomam as manchetes de jornais. Recentemente, o jornal O Globo publicou uma notícia, cujo o título era: "Terror em nome da natureza - Ecologistas se unem pela Internet, usam vandalismo como estratégia e assustam os EUA". A reportagem conta a trajetória do grupo Elf - Earth Liberation Front (Frente de Libertação da Terra), cujo slogan é Vocês constróem e nós queimamos. E mostra que a única informação das autoridades dos EUA sobre o grupo é do FBI (Polícia Federal), que o classifica como a organização terrorista mais perigosa do País. Nada mais! Onde estaria a sua sede? Ninguém sabe. Quem faz parte dela? Os policiais não têm a menor ideia, não existe líder, não existe estrutura vertical. Esta notícia chama a atenção por várias razões. A primeira, por serem os EUA uma nação com um poderio tecnológico imenso, mas impotente quanto à visibilidade dos integrantes do grupo, do qual nada se conhece a não ser os seus atos; e outra, porque toda ação realizada no mundo real, grafada por pichação, feita com spray vermelho, é fruto da disseminação de ideias que se movem rapidamente pela Internet. Isso mesmo! A esquerda utilizando os meios tecnológicos oriundos do capital. Este fato elucida a importância e a força do discurso no campo das ideias, o poder de falar e de emitir valores, o poder da criatividade, ao mesmo tempo em que influencia e, dependendo de sua lógica, é capaz de criar ações. Dificilmente, se assim podemos afirmar, encontraríamos um campo tão fértil como o ciberespaço para disseminar o discurso. O discurso se transforma em poder residente nos códigos da informação. Para Castells, o poder na Era da Informação é, a um só tempo, identificável e difuso. As ideias virtualizadas e interativas provocam ações no espaço concreto. Eis um dos impactos no mundo real provocados pelo ciberespaço.

Toda essa introdução se fez necessária para que possamos trazer algumas questões que devem servir como análise geográfica. Os geógrafos, acostumados a analisar diferentes escalas e sempre acompanhando transformações, não podem deixar de criar mecanismos para compreender o ritmo das novas mudanças na sociedade, principalmente depois da Globalização, cujos reflexos sempre resultam em novas configurações espaciais.

O geógrafo, mais do que qualquer outro profissional, ao buscar analisar os reflexos que as novas tecnologias informacionais provocam na sociedade e no espaço, estará de maneira valiosa contribuindo para a compreensão desse novo momento em que caminha a sociedade. Abre-se, então, uma discussão do papel do geógrafo neste novo milênio. Antes, porém, é importante registrar a necessidade de compreendermos o ciberespaço como Espaço Geográfico, livre dos constrangimentos clássicos das categorias de estudo da Geografia. Carentes de conceitos da Geografia capazes de explicar o momento que estamos passando, buscaremos utilizar algumas metáforas, objetivando uma maior compreensão dos assuntos aqui tratados.

O Território no contexto do Ciberespaço

No ciberespaço entramos em uma virtualização da realidade, uma migração do mundo real para um mundo de interações virtuais, ou vice-versa, onde existe uma constante produção, (re)produção das relações sociais do espaço. Uma realidade objetiva muitas vezes iniciada no ciberespaço, e que traz consigo um propósito de finalizar-se no mundo real, mais cedo ou mais tarde, direta ou indiretamente, estabelece as trocas identitárias, mesmo não havendo contato físico.

No ciberespaço, o ambiente é marcado por uma não-espacialidade. Não se pode ensinar ao cibernauta o percurso que se faz para chegar a um lugar, de forma igual ao dos mapas, aos trajetos do mundo real, porém, de alguma forma, os grupos, as pessoas, as tribos se encontram num lugar virtual. Reconhecem o território de cada grupo. Um território digital é como se fosse um corredor de movimentação de informações e imagens que demandam organizar zonas de fixação. Para a Geografia, a busca do lugar para explicar as transformações espaciais tende a perder o rumo das orientações de localização no ciberespaço. As noções básicas de localização e desenraizamento ficam confusas. O ciberespaço, mais que um lugar, ou um não-lugar, ou até mesmo um lugar virtual, afirma-se como um espaço imaterial, um meio operativo de como podemos nos mover, trabalhar, construir, criar, investir. Enfim, relações sociais!

O ciberespaço ultrapassa todos os paradigmas da representação do real. O território aqui é apropriado pela subjetividade de seus frequentadores, que simulam o que apreenderam da realidade objetiva do mundo. A ideia de trazer para a rede uma percepção de projeção de um território organizado de representação do que estabelecemos com o real nos faz pensar, então: o que seria o território da rede? Existe alguma forma de poder na delimitação de um território cibernético? Podemos frequentar todos os territórios estabelecidos na rede? Estas indagações podem e devem ser esclarecidas quando partimos do princípio de que a dimensão territorial do ciberespaço está vinculada à simbologia de globalidade dos usuários da rede. Esta ideia de globalidade é a forma como o usuário percebe o mundo e o reapresenta na telinha do computador. Ao digitar a palavra-chave de acesso que o levará ao site, por exemplo, cuja ideia de representação é a cidade de Nova York, Paris, Rio de Janeiro ou Niterói, o usuário viajante terá a sensação de estar no local, mesmo que, na compreensão mais lógica, esteja fisicamente fixo. Esta sensação permite ao usuário estabelecer conexões, mesmo próximas a sua máquina, com um mundo a ser explorado através de um simples click do mouse. É possível percorrer todos os museus de acervo on-line, conhecer outras culturas, pertencer a grupos tribais de identidade, fazer compras, ir ao shopping, estudar em universidades. Ainda que todos estes lugares visitados façam parte de uma máquina. A qualquer momento, a máquina pode ser desligada ou sair do "ar" por "intempéries cibernéticas", ou para que se possa inserir mais dados para atualização (quando uma página é alimentada pelo webmaster interrompe a conexão). O tempo pode ser instantâneo ou não. A sensação de estar em um determinado lugar é tão presente que, ao questionarmos o ciberespaciano sobre o que ele está executando como tarefa em frente ao computador, as respostas nunca serão relacionadas a estar conectado na máquina X vendo imagens de Y. Ele sempre irá responder que está visitando a universidade, o museu, um shopping, participando de um leilão, indo ao bingo ou lendo uma revista (na concepção que conhecemos). Todas as formas percebidas estão de acordo com o modo como ele apreende o real. O usuário não percebe que o mundo online é uma materialidade de máquinas conectadas umas às outras.

Na tentativa de responder se existe alguma forma de poder na delimitação de um território cibernético, teremos que levar a nossa análise ao racismo, à violência, ao submundo. Estes criam territórios segregados, fazendo com que aqueles que não se identificam ou não participam do grupo, excluídos por inúmeras razões, tornem-se os indesejáveis, impedidos de entrar ou de permanecer sem serem convidados. Uma outra forma de segregação que pertence à arquitetura do ciberespaço é analisada por nós através do que Aurigi e Graham apresentam. Ela é formada por três grupos principais: um grupo de elite, que utiliza pesadamente as tecnologias da informação; um segundo grupo, menos influente, que não pode ser caracterizado como de fortes usuários da informação, mas como um agrupamento daqueles usados pela informação (information used) e um terceiro grupo, formado pelos off-line, os desconectados, que não participam da sociedade da informação de forma direta e autônoma. Estes são os excluídos do ciberespaço. Entendemos, assim, que o território cibernético existe, mas sua delimitação não é a de um território de acesso para todos. Os sujeitos ou objetos fazem das leis da lógica as chaves de entrada/saída (On/Off). Os territórios cibernéticos são, acima de tudo, representações de territórios individuais e/ou privados, quer a nível grupal, quer pessoal.

O Território Cibernético e os Rizomas

O Território Cibernético muito se assemelha a um rizoma. Os rizomas se ramificam e se reticulam, num intenso processo de desterritorialização e reterritorialização das relações sociais (Guattari e Deleuze). O termo rizoma é empregado, metaforicamente, por Guattari e Deleuze para explicar a dinâmica do ciberespaço. Objetivando ampliar a discussão da relação existente entre o que vem a ser um rizoma e o ciberespaço, buscamos aqui compreender melhor a origem da palavra rizoma, e de que forma ela é aplicada na botânica. No Dicionário Universal da Língua Portuguesa, o vocábulo rizoma vem do grego, rhízoma, raiz, s. m., "caule subterrâneo horizontal". No dicionário Michaelis a definição do termo se amplia: ri.zo.ma s.m. Bot. (rizo+oma), "caule subterrâneo, no todo ou em parte, de crescimento horizontal". Em ambas, é possível perceber o princípio de que o rizoma é um caule e está em constante crescimento horizontal, passando por diferentes pontos subterrâneos.  Na Botânica, o termo rizoma foi definido por Damião Filho.

Como podemos verificar, um rizoma apresenta uma complexidade que muito se assemelha ao novo paradigma tecnológico. Deleuze e Guattari, nesse sentido, foram brilhantes ao explorar o termo rizoma. Eles estabeleceram os princípios do funcionamento do rizoma. Mencioná-lo enriquecerá ainda mais a nossa compreensão.

1º e 2º - Princípios de conexão e de heterogeneidade: "Qualquer ponto do rizoma pode ser conectado com qualquer outro e deve sê-lo. Isso não sucede com a árvore nem com a raiz, que sempre se fixam a um ponto, uma ordem. Enquanto a árvore funciona por dicotomias, no rizoma, pelo contrário, cada quebra não remete necessariamente para uma quebra linguística: elos semióticos de qualquer natureza ligam-se nele com formas de codificação muito diversas, elos biológicos, políticos, econômicos etc., pondo em jogo não apenas regimes de signos muito distintos, mas também os estatutos das coisas."

3º - Princípio da multiplicidade: "Só quando o múltiplo é tratado efetivamente como substantivo, multiplicidade, ele deixa de ter relação com o Uno, como sujeito ou como objeto, como realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo. As multiplicidades são rizomáticas e denunciam as pseudomultiplicidades arborescentes. Uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas unicamente determinações, tamanhos, dimensões que não podem aumentar sem que ela mude de natureza - as leis de combinação aumentam, pois, com a multiplicidade."

4º - Princípio da ruptura a-significante: "Aparece por oposição aos cortes excessivamente significantes que separam as estruturas ou as atravessam. Um rizoma pode ser rompido, interrompido em qualquer parte, mas sempre recomeça segundo esta ou aquela das suas linhas, e ainda segundo outras." É por isso que os autores afirmam que é impossível acabar com as formigas, posto que formam um rizoma animal que, mesmo destruído na sua maior parte, não cessa de se reconstituir.

5º e 6º - Princípio da cartografia e da decalcomania: "Um rizoma não responde a nenhum modelo estrutural ou generativo. É alheio a toda ideia de eixo genético, como também de estrutura profunda. Os sistemas em árvore funcionam por decalque da realidade, limitam-se a descrever algo que se dá por feito. De forma distinta, o rizoma funciona como um mapa. Se o mapa se opõe ao decalque é precisamente porque está totalmente orientado para uma experimentação que atua sobre o real. O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre si mesmo, o constrói. O mapa é aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, alterável, susceptível de receber, constantemente, modificações. Pode ser rompido, alterado, adaptar-se a montagens distintas, iniciado por um indivíduo, um grupo, ou uma formação social. Uma das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas."

A relação entre o território cibernético, o rizoma e os princípios estabelecidos por Deleuze e Guattari é tão forte que seria possível utilizar a palavra ciberespaço em todos os lugares do texto onde se lê rizoma. Teríamos uma fiel compreensão do que seria o território cibernético. Todos os princípios se aplicam. De fato, no território cibernético não existe um único ponto fixo (no sentido do ponto de conexão) como porta de entrada. Nossas conexões são estabelecidas a partir de qualquer lugar do planeta. Não conhecemos e não reconhecemos por onde passamos, mas sempre chegamos. Caminhamos por este território à procura dos pontos, muitas vezes utilizando a bússola dos provedores de busca, outras por endereços eletrônicos conhecidos. A alguns podemos, inclusive, indicar a localização precisa deste território. Este território é heterogêneo, encontramos múltiplas e crescentes dimensões de relações sociais. As múltiplas dimensões se estabelecem a cada conexão onde se é capaz de mudar a natureza das relações, à medida que as conexões evoluem. As trocas simbólicas permitem diferentes possibilidades.

A ruptura a-significante no território cibernético tem um caráter não significativo, por se tratar de uma ruptura não definitiva das relações sociais. A reconexão pode ser feita a qualquer instante, desde que se tenham os pré-requisitos de acesso. Pode-se conectar, desconectar, estabelecer vínculo com parte do território cibernético, desconectar no sentido de desterritorializar este mesmo território e reconectar, comparado a uma reterritorialização. Todo este processo passa pelo consciente do ciberespaciano do poder retornar. Interessante o fato de não ser definitivo como algum fim, uma morte. Este TDR (Territorializar, Desterritorializar e Reterritorializar) traz uma associação entre o prazer de estar na rede (ON) e a morte (OFF) no ciberespaço. Os envolvimentos no mundo mediático e as próprias velocidades das relações não permitem pensar, a não ser o instante da ação. Vida e Morte no ciberespaço têm a conotação do início e do fim constituído pelo tempo necessário a reencontrar o ponto de partida. A morte no ciberespaço é uma desconexão sem que a integridade física seja afetada. Ainda assim o OFF não estaria desligado totalmente do ciberespaço porque deixou,  através de sua representação, todas as suas relações com ele salvas e perenes.

Lemos (idem) observa em seu texto:

"Muitas são as semelhanças entre as estruturas rizomáticas e o Território Cibernético. Ambos são descentralizados, conectando pontos ordinários, criando territorialização e desterritorialização sucessivas. O ciberespaço não tem um controle centralizado, multiplicando-se de forma anárquica e extensa, sem que se estabeleça uma ordem, a partir de conexões múltiplas e diferenciadas."

Segundo Levy, quando apresenta o Princípio da Mobilidade dos Centros, 

"A rede não tem centro, ou melhor, possui permanentemente diversos centros que são como pontas luminosas perpetuamente móveis, saltando de um nó a outro, trazendo ao redor de si uma ramificação infinita de pequenas raízes, de rizomas, finas linhas brancas esboçando por um instante um mapa qualquer com detalhes delicados, e depois correndo para desenhar mais à frente outras paisagens de sentido."

O ciberespaço permite agregações ordinárias, de pontos a pontos, onde entram em jogo toda a dialógica (Morin) em manter a unidade de noções antagônicas, ou seja, unir o que aparentemente deveria estar separado, o que é indissociável, com o objetivo de criar processos organizadores e, portanto, complexos entre o particular e o geral e a formação de comunidades virtuais. As conexões do ciberespaço, assim como aquelas dos rizomas, modificam as suas estruturas, caracterizando-se como sistemas complexos e auto-organizantes. Como explicam Deleuze e Guattari, a árvore impõe o verbo ser, mas o rizoma tem como tecido a conjunção e...e...e.... Esta é a forte atração do ciberespaço que leva o ciberespaciano a mergulhar nas possibilidades e potencialidades de uma sociedade frente à revolução tecnológica de modo a torná-la um simulacro da sociedade real.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

Como citar este artigo (ABNT)

. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/2/1/a-territorialidade-do-ciberespaco

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