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Biologia molecular da doença de Alzheimer: uma luz no fim do túnel?
ALMEIDA, O.P. Biologia molecular da doença de Alzheimer: uma luz no fim do túnel?. Rev. Assoc. Med. Bras. [online]. Jan./Mar. 1997, vol.43, no.1 [cited 14 November 2002], p.77-81.
Introdução
Em 1988, as Nações Unidas estimaram que a população mundial era de 5,1 bilhões de pessoas. Destas, 1,2 bilhão habitavam em países desenvolvidos (Europa, Estados Unidos, Canadá, Japão, Austrália, Nova Zelândia e antiga União Soviética), enquanto os demais 3,9 bilhões viviam em países em desenvolvimento. Indivíduos acima de 60 anos de idade representavam 9% do total, 16% daqueles vivendo em países desenvolvidos e 7% em nações do 3º mundo. Essa diferença proporcional deveu-se, basicamente, a dois fatores: maior taxa de natalidade de países em desenvolvimento (31/1.000/ano), quando comparada à de países desenvolvidos (15/1.000/ano), e uma expectativa de vida ao nascimento de apenas 60 anos em nações menos desenvolvidas, comparada aos 73 anos de países do 1º mundo. Desde o início da década de 1980, mais de metade dos indivíduos que atingem os 60 anos vivem em países do 3º mundo, e acredita-se que, até o ano 2025, 3/4 da população idosa viverá em nações pobres. Uma decorrência natural desse processo é o aumento na prevalência de doenças associadas ao envelhecimento, como a demência.
Demência aflige, aproximadamente, 5% da população com idade acima de 65 e 20% daqueles acima de 80 anos. Entre 1975-2000, espera-se um aumento no número de casos de demência de 54%, em países desenvolvidos, e de 123%, em despreparados países em desenvolvimento, como o Brasil. A doença de Alzheimer (DA) é a forma mais comum de demência e é a quarta causa mais frequente de morte em países desenvolvidos.
As características básicas da DA foram descritas, no início deste século, por Alois Alzheimer , que relatou o caso de uma senhora de 51 anos de idade que foi trazida à atenção médica devido a um quadro de delírio de ciúmes em relação a seu marido. Nos meses que se seguiram, sua memória deteriorou rapidamente e ela passou a apresentar parafasias, apraxia e desorientação espacial. A paciente faleceu quatro anos e meio após o início dos sintomas. O exame anatomopatológico revelou um cérebro claramente atrofiado e, microscopicamente, a presença de fusos neurofibrilares, placas senis e perda neuronal.
Os achados de Alzheimer serviram como base para a investigação de três grandes áreas: 1) quadro clínico e progressão dos sintomas; 2) anatomopatologia; e 3) correlação entre o quadro clínico e a patologia cerebral. Apesar do evidente avanço de nosso conhecimento nessas áreas , a questão fundamental sobre a doença de Alzheimer ainda permanece sem resposta: Qual é a origem dos fusos neurofibrilares e das placas senis? Essa pergunta começou a ser respondida, de forma mais concreta, nos últimos anos, quando importantes avanços metodológicos e tecnológicos permitiram a abertura de uma nova área de pesquisa da doença: a Biologia Molecular.
A presença de fusos neurofibrilares é considerada fundamental para o desenvolvimento da DA, e sua concentração e distribuição têm sido consistentemente correlacionadas com a gravidade da demência. Sabe-se, hoje, que os fusos neurofibrilares são predominantemente formados por acumulações de pares de filamentos espiralados (PHF), e que a proteína associada a microtúbulos - tau - é um de seus componentes fundamentais. A tau é uma proteína que promove a polimerização de tubulina in vitro e agregação de microtúbulos in vivo. É interessante notar que a tau associada aos PHF é anormalmente fosforilada. Além disso, existem evidências sugerindo que a tau fosforilada é menos capaz de polimerizar tubulina, e, ao invés, agrega-se na forma de PHF, o que a torna altamente insolúvel. Como consequência, ocorre uma ruptura do citoesqueleto celular que leva, inicialmente, a uma disfunção e, posteriormente, à morte neuronal. Durante os últimos anos, identificaram-se várias regiões da tau que podem, potencialmente, sofrer fosforilação anormal. Além disso, algumas das "cinases" envolvidas nesse processo foram descobertas (e.g., MAP e GSK-3 ). Entretanto, o processo que leva à fosforilação anormal da tau permanece desconhecido, apesar de existirem indícios sugerindo que a deposição de ß-amiloide pode ser o evento inicial em pelo menos alguns casos (veja figura), particularmente porque o ß-amiloide parece aumentar a atividade de algumas cinases que promovem a fosforilação anormal da tau (e.g., GSK-3).
O ß-amiloide é parte integrante das placas senis, que são depósitos extracelulares com um núcleo central e uma coroa de células neuronais distróficas associadas à micróglia e astrócitos. O ß-amiloide encontrado nas placas é derivado de uma proteína transmembranal muito maior conhecida como "proteína precursora de amiloide" (PPA) (veja figura). A PPA parece exercer papel importante na facilitação do crescimento neuronal, na sobrevivência da célula e na regulação da atividade da proteína G0, além de sua função reconhecida de adesão entre células e entre o neurônio e matriz cerebral.
O gene responsável pela produção da PPA foi localizado, recentemente, no braço longo do cromossomo 21. Além disso, no final da década de 80, descobriu-se que alguns casos familiares de DA pré-senil (DAF) exibiam um linkage com uma região do braço longo do cromossomo 21. Isso, em associação com o fato de que pacientes portadores da trissomia do cromossomo 21 (síndrome de Down) desenvolvem quadro demencial e patologia cerebral semelhante àquela observada entre pacientes com DA, estimulou as pesquisas na busca de um possível gene para a DA nesse cromossomo. De fato, ao longo dos últimos anos, foram descritas várias associações entre DAF e mutações do gene da PPA, bem como de outras regiões do cromossomo 21. Entretanto, a maioria dos casos de DAF não apresenta nenhum tipo de linkage com o cromossomo 21, indicando que a DAF é uma patologia geneticamente heterogênea.
Esse fato fez com que vários grupos de pesquisadores buscassem identificar a associação de outros cromossomos com DA. Em 1992, verificou-se a existência de uma ligação entre o cromossomo 14 e a DAF. Esse gene foi localizado recentemente, no braço longo do cromossomo 14, entre as regiões D14S289 e D14S53, e parece ser responsável por, aproximadamente, 3/4 do número total de casos de DAF (transmissão autossômica dominante). Entretanto, existem casos de DAF que não apresentam linkage com o cromossomo 14 ou 21, indicando a existência de pelo menos um outro locus ainda não identificado.
Evidentemente, essas descobertas foram extremamente importantes, porém não ofereciam uma explicação plausível para os casos de DA esporádicos e de início tardio (que constituem a grande maioria dos casos). Esse estado de coisas começou a mudar no início da década de 90, com a descoberta de uma associação entre a região do cromossomo 19 que determina a produção de apolipoproteína E (ApoE) e a doença de Alzheimer. A ApoE é uma proteína associada a lipoproteínas plasmáticas que modula o metabolismo e excreção de colesterol e outras lipoproteínas de baixa densidade (LDL). Ela tem papel fundamental no processo de mobilização e redistribuição de colesterol para a regeneração do sistema nervoso central e periférico, e para o metabolismo lipídico normal do cérebro. Além disso, a ApoE já havia sido encontrada nas placas senis e fusos neurofibrilares, o que sugeria seu possível envolvimento com o processo patológico associado à DA. A ApoE é codificada por um gene localizado no braço longo do cromossomo 19, em uma região que foi previamente associada a DA familiar de início tardio. A ApoE apresenta polimorfismo que é determinado pelos alelos e4 (Cys112®Arg), e3 (Cys112), e e2 (Arg148®Cys). É justamente a presença do alelo e4 que tem sido associada a casos de DA esporádica ou de início tardio.
Recentemente, Schachter et al. demonstraram que pessoas que possuem o alelo e2 têm maior probabilidade de se tornarem centenárias que aquelas com o alelo e3, que, por sua vez, parecem ter maior sobrevida que pessoas com o alelo e4 (veja figura). De forma semelhante, a sintomatologia associada à DA se inicia mais precocemente quando o paciente possui dois alelos e4, e alguns anos mais tarde quando apenas um dos alelos é o e4. De fato, tem-se sugerido que a ausência de e4 pode retardar ou mesmo impedir a manifestação das mutações do cromossomo 21 claramente associadas à DA. Além disso, a associação entre e4 e DA é dependente da idade (i.e., a probabilidade de ser e4 é menor em idades avançadas), sendo possível atingir velhice extrema sem demência, apesar da presença desse alelo (veja figura).
A complexidade dessas interações faz com que os mecanismos pelos quais a ApoE4 facilita o desenvolvimento de DA ainda não tenham sido completamente esclarecidos. Sabe-se, porém, que a ApoE4 apresenta alta afinidade por placas senis e forma um complexo estável com o ß-ß-amiloide. Assim, propôs-se que a ApoE4 poderia agir por meio de dois mecanismos patogenéticos distintos:
1) alterando o balanço entre deposição e depuração de ß-amiloide em favor de um aumento na formação de placas senis e amiloide vascular;
2) afetando a taxa de fosforilação da tau em favor de formação de fusos neurofibrilares. Outros especulam que não seria a presença de e4 e, sim, a ausência de e2/e3 que determinaria o início das alterações patológicas associadas à DA. Esse modelo propõe que a presença de e2/e3 facilitaria a ligação da tau com os microtúbulos, ajudando, portanto, na formação e estabilização do citoesqueleto celular. Ou seja, e2/e3 evitariam a fosforilação anormal da tau, enquanto a presença de ß-amiloide facilitaria esse processo (veja figura).
Entretanto, a universalidade desses achados ainda não foi claramente estabelecida, e é ainda incerto se a associação entre o alelo e4 e a DA em populações de países do Hemisfério Sul é semelhante àquela descrita para indivíduos vivendo no Hemisfério Norte. Existem evidências de que populações diferentes apresentam frequências diferentes desse alelo, o que sugeriria que a prevalência e incidência de DA pode variar sensivelmente entre raças (veja figura).
Seja qual for o mecanismo pelo qual a presença de e4 leva ao desenvolvimento da DA, ao menos um ponto já está claramente estabelecido: o genótipo e4 está associado à DA e, portanto, indivíduos portadores desse genótipo apresentam risco aumentado de desenvolvimento da doença (1 ou 2 alelos e4 aumentam o risco para DA em 2,7 e 9,3 vezes, respectivamente ). Além disso, a presença do alelo e4 foi consistentemente associada a declínio cognitivo entre indivíduos idosos. Durante estes últimos anos, aprendemos muito sobre a estrutura, funcionamento e metabolismo da ApoE e, também, a respeito da patogênese da DA, o que, certamente, levará ao surgimento de tratamentos mais específicos e eficazes. Por exemplo, é possível vislumbrar, para o futuro próximo, o desenvolvimento de drogas capazes de evitar a fosforilação anormal da tau, ou de medicamentos que reduzam os efeitos deletérios causados pela presença da apolipoproteína E4. Além disso, a presença do alelo e4 pode ser utilizada como um potencial "marcador" da doença, ainda que este não seja particularmente específico. A descoberta de um "marcador biológico" confiável permitiria o estudo longitudinal de populações de risco, o que seria fundamental para o desenvolvimento de estratégias adequadas de prevenção da doença. Os próximos anos de pesquisa nessa área serão, certamente, excitantes. Que tal acompanharmos essa caminhada?
Cromossomo | Tipo de gene | Idade de início | % de casos familiares | % do total de casos | Proteína associada |
---|---|---|---|---|---|
14 | Autossômico dominante | 30-60 | 70-80 | 5-10 | S182 |
19 | Fator de Risco | 60+ | | 40-50 | ApoE4 |
21 | Autossômico | 45-65 | 2-3 | <1 | APP |
1 | Autossômico Dominante | 40-70 | 20 | 2-3 | STM2 |
ADENDO
Desde a submissão deste artigo para publicação, ocorreram vários avanços na genética da DA. Em junho de 1995, Peter St. George Hyslop et al., da Universidade de Toronto, publicaram um artigo na revista Nature identificando o gene (S182) no cromossomo 14 responsável por 70-80% dos casos familiares de início pré-senil. A patogenicidade das mutações do gene S182 foram confirmadas em famílias de diferentes etnicidades com DA familiar. Em agosto de 1995, um novo gene (STM2) foi identificado no cromossomo 1, e a sequência de aminoácidos prevista para o STM2 é semelhante àquela descrita para o S182. Esses genes parecem determinar a produção de uma proteína transmembranal que cruza a membrana em sete regiões distintas e que pode estar associada a um aumento na deposição de ß-amiloide. A tabela acima resume os genes associados à DA.
Publicado em 31 de dezembro de 2005
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