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Com quantos "efes" se escreve "evolução"?

Felipe A. P. L. Costa

Biólogo

Introdução

Um observador da vida selvagem não deve encontrar dificuldades para reunir exemplos de plantas e animais que parecem estar bem ajustados aos lugares onde vivem: árvores que atraem polinizadores específicos para suas flores; lagartas que constroem abrigos nas folhas da planta-hospedeira; abelhas que controlam a temperatura da colmeias; peixes que nadam em águas profundas sem morrer esmagados; morcegos que navegam no escuro sem trombar nos obstáculos etc. [1]

Biólogos evolucionistas procuram demonstrar que esses e muitos outros exemplos não são apenas ilusões, coincidências ou simples historinhas, mas resultados de um processo ativo de ajustamento ou adaptação: a evolução por seleção natural [2]. "Evoluir" significa mudar e "evolução biológica" pode ser entendida como toda e qualquer mudança hereditária que ocorre em populações naturais, geração após geração.

Poucos assuntos científicos rivalizam com a biologia evolutiva em termos do grau de interesse que despertam entre os leitores e o público em geral [3]. Mesmo cientistas que trabalham em outras áreas gostam de especular e apresentar seus palpites, principalmente quando o assunto é a evolução humana - quem somos, de onde viemos, como chegamos até aqui? Infelizmente, porém, muitos artigos costumam carregar no tom, tratando a evolução como assunto essencialmente especulativo, repleto de incertezas e sobre o qual não haveria acordo nem mesmo entre os próprios biólogos [4]. Em outras palavras: uma verdadeira "torre de Babel", na qual muitos falam, mas poucos se entendem.

Quem defende essa opinião, no entanto, em geral está apenas reproduzindo erros ou mal-entendidos grosseiros, alguns dos quais poderiam ser evitados se nós simplesmente não misturássemos o significado dos três "efes" que existem por trás da palavra "evolução": fato, filogenias e forças [5].

Fato

Tratar a evolução ou qualquer outro fenômeno natural de tamanha complexidade e importância como um fato significa tão-somente admitir sua existência, a despeito do que sabemos ou podemos dizer a seu respeito. Ao contrário do que possa parecer, nenhum debate científico recente tem posto seriamente em dúvida o fato ou a realidade objetiva da evolução (presente ou passada), embora haja divergências envolvendo tanto sua reconstituição histórica - "como ocorreu?" - como também os mecanismos causais que a promovem - "por que ocorreu?".

Por mais acirradas ou acaloradas que sejam, no entanto, polêmicas científicas sobre "como" ou "por quê" a evolução ocorreu no passado, e continua a ocorrer no presente, não a suprimem como um fato da vida, do mesmo modo como divergências a respeito da composição química do Sol não interrompem a sucessão dos dias e das noites...

Filogenias

Embora a origem da vida na Terra permaneça um mistério, cada indivíduo recém-nascido representa o elo mais novo em uma cadeia ininterrupta de gerações que retrocede até a aurora dos tempos [6]. Ao longo dessa impressionante jornada, inúmeras espécies surgiram, irradiaram-se em novas linhagens e então desapareceram, naturalmente. A filogenia de uma linhagem é uma reconstituição de sua história evolutiva, isto é, um resumo geral das "relações de parentesco" entre as várias espécies que surgiram ao longo de um determinado intervalo de tempo - a maioria das quais, na maioria dos casos, é bom que se diga, já foi extinta.

Na prática, montar filogenias é um quebra-cabeças difícil e meticuloso, tanto pelas dimensões do empreendimento como pela escassez de restos fósseis, por exemplo, ligando as espécies envolvidas. Não é de estranhar, portanto, que a história evolutiva de tantas linhagens de plantas e animais esteja repleta de "elos perdidos", dando margem a interpretações divergentes [7]. Aliás, foi justamente a ausência de elos no registro fóssil o que motivou o trabalho inicial de S. J. Gould e N. Eldredge [8], autores da hipótese do equilíbrio pontuado, talvez a mais famosa "alternativa" que surgiu dentro da biologia evolutiva nas últimas décadas.

Forças

Não há unanimidade entre os biólogos sobre a identidade e a importância relativa das forças que promovem a evolução, embora a seleção natural ocupe o primeiro lugar na lista de preferências. A seleção natural não foi, contudo, o primeiro mecanismo proposto para explicar a ocorrência da evolução. Em 1809, uma explicação pioneira foi sugerida por Jean-Baptiste de Lamarck (1744-1829), segundo a qual os efeitos do "uso e desuso" seriam herdados pelos descendentes, produzindo assim um gradativo ajustamento das espécies aos seus respectivos ambientes.

Meio século depois, veio a público a teoria da evolução por seleção natural, criada independentemente por Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1913) [9]. Em um sentido bastante fundamental, essa teoria é consequência de certos atributos inerentes aos próprios organismos e de influências que o ambiente exerce na vida deles, a saber:

  1. 1) O potencial reprodutivo dos seres vivos é muito grande, mas quase nunca é realizado, pois a maioria dos indivíduos morre antes de gerar seus próprios descendentes.
  2. 2) Filhos diferem entre si e também dos seus pais, e muitas dessas diferenças são hereditárias.
  3. 3) Indivíduos que conseguem sobreviver e se reproduzir em geral são aqueles que exploram os recursos e/ou evitam os problemas de modo mais eficiente.
  4. 4) Os pais da próxima geração tendem a ser portadores de características hereditárias que dão as maiores chances de sobrevivência e reprodução sob as circunstâncias ecológicas vigentes.

Generalizando, podemos afirmar que a existência de "autorreplicantes que interagem" - entidades individuais (organismos vivos, por exemplo) capazes de gerar cópias mais ou menos fiéis de si mesmas, mas que para isso precisam obter matérias-primas do mundo exterior - é condição necessária e suficiente para que a seleção natural ocorra; não só aqui, na Terra, mas em qualquer região do Universo.

O contexto ecológico da evolução

Nenhuma outra ciência se compara com a biologia em termos de variedade temática: por si só, o exame das características (morfológicas, fisiológicas, comportamentais) de cada uma das 1,5 milhão de espécies nomeadas e descritas formalmente - para não falar em todas as espécies existentes na Terra, cujas estimativas variam de 5 milhões a 50 milhões de espécies [10] - já se apresenta como um empreendimento aparentemente interminável e absurdamente trabalhoso.

Frente a essa estonteante riqueza de detalhes e espécies, ficou famosa uma frase empregada pelo geneticista Theodosius Dobzhansky (1900-1975): "Nada em biologia faz sentido exceto à luz da evolução" [11]. Quer dizer, frente a tantos detalhes e a tantas espécies, o que em última instância dá coesão e vincula (direta ou indiretamente) cada um a todos os outros estudos biológicos é o fato e a realidade da evolução.

Mas a evolução não ocorre em um "vácuo ecológico"; ao contrário: se nada em biologia faz sentido exceto à luz da evolução, "muito pouca coisa em evolução faz sentido exceto à luz da ecologia" [12]. É a ecologia, portanto, que torna a evolução um processo inevitável, de tal forma e a tal ponto que mesmo se os componentes abióticos do ambiente (variáveis climáticas, por exemplo) fossem congelados do jeito que são atualmente, ainda assim os componentes bióticos (plantas, animais, fungos e microorganismos) continuariam a mudar [13]. Esse processo é alimentado por influências recíprocas entre organismos vivos: mudanças evolutivas em uma determinada população acabam provocando alterações nas pressões seletivas sobre as demais espécies com as quais ela interage. Se um novo tipo de defesa surge em uma população de presas, por exemplo, seus predadores passam a ser pressionados no sentido de evoluir (ao longo das gerações) algum tipo de contra-ataque - sob pena de passar fome e correr o risco de desaparecer. Não existem, contudo, soluções propriamente definitivas para essas "corridas armamentistas" [14], pois a evolução de novos tipos de defesa ou ataque produz repercussões que vão e voltam...

Nesse cenário, populações naturais com pouco ou nenhum potencial para evoluir têm chances reduzidas de persistir a longo prazo, principalmente em um mundo heterogêneo, no qual as condições de vida e a disponibilidade dos recursos estão sempre mudando - tanto em escalas espaciais como também temporais [15]. No fim das contas, a capacidade de evoluir é, portanto, um pré-requisito para a persistência a longo prazo de populações que vivem em ambientes heterogêneos.

Isso não quer dizer que a seleção natural possui capacidades premonitórias, estocando variabilidade genética em populações naturais como um meio de prepará-las para enfrentar as incertezas do futuro. Ao contrário: a seleção natural é cega, pragmática e está sempre operando no presente. A variabilidade genética encontrada em populações naturais é, antes de tudo, resultado de eventos e processos ocorridos no passado - incluindo deriva gênica ou outros acidentes de amostragem e oscilações no valor adaptativo dos diferentes fenótipos em ambientes heterogêneos [16].

Essa, afinal, talvez seja a maneira apropriada de reescrever o primeiro parágrafo deste ensaio: evolução é um processo permanente de mudança (ao longo das gerações), na busca por soluções para o "drama ecológico da vida" - como sobreviver e se reproduzir em um mundo finito, heterogêneo e habitado por tantas outras criaturas vivas que estão, nesse momento mesmo, tentando fazer exatamente a mesma coisa?

Evolução em carne e osso

Variação intrapopulacional e diversidade de espécies são, em certo sentido, lados de uma mesma moeda e representam, desde os tempos de Darwin e Wallace, desafios para a ciência. Explicar a íntima correspondência que há entre organismos vivos e seus respectivos ambientes como também a estonteante profusão de espécies biológicas encontradas na natureza são dois grandes e ambiciosos programas de pesquisa da biologia evolutiva. E, em ambos os casos, não haverá muito progresso em direção a uma explicação consistente sem uma base sólida de conhecimento ecológico.

Nesse sentido, estudar fósseis ou exemplares guardados em museus, como fazem paleontólogos e taxonomistas, ou moscas-de-fruta vivendo em tubos de ensaio, como fazem geneticistas de laboratório, são estratégias necessárias, mas por si só insuficientes. Já sabemos que espécies são capazes de exibir mudanças evolutivas em períodos de tempo acessíveis à observação humana. Precisamos apenas estar lá, no campo, fazendo a coisa certa: estudando a evolução em carne e osso [17].

Este ensaio integra o livro Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003), publicado pelo autor.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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