Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Da linguagem à ilustração, uma nova criação

Salmo Dansa

Mestre em Design pela PUC-Rio

Reflexos assimétricos

Um estranho no espelho

Nossa figura, quando refletida, nos joga num espaço invertido, ambíguo, entre a ilusão e a realidade, que lembra a inversão que o aparelho óptico opera durante o processo de captação da imagem pela retina. Quando nos deparamos com a nossa imagem no espelho, o olhar penetra numa falsa profundidade. Esse aspecto enganador, somado a sua frieza e lisura, faz que o espelho simbolize, mais do que qualquer outro objeto, a superficialidade e a vaidade que nos fazem reféns, num mundo dominado pela imagem.

Mas essa visão tão real, num certo sentido, não é feita para nós mesmos. A relação que temos com nosso aspecto físico não é de ordem estética. Ela só se refere ao efeito que podemos causar, ou seja, nosso julgamento não é feito para nós mesmos, mas para os outros e através dos outros. Diante do espelho, quase sempre posamos, adotando uma expressão que nos parece desejável. Nunca é nossa alma singular e única que se encontra expressa na contemplação. Sempre se introduz um segundo participante, ou seja, o outro fictício, o observador não fundamentado ou não autorizado. Nas palavras de Mikhail Bakhtin, "não estou sozinho quando me olho no espelho, estou sob o domínio de outra alma".

É provável que esse mesmo "domínio" exista como uma presença na mente do artista em relação ao observador da sua obra, pois uma obra só passa a existir de fato no momento da fruição. Antes disso, ela é só uma obra em potencial. Esse mesmo impulso de evolução do artista na direção de seu público continua estimulando a busca por técnicas de excelência na representação do mundo desde a pré-história. 

Uma característica primordial da arte pré-histórica é uma relação especular com mitos ou narrativas que, com o advento da História, logo foram substituídos e ressignificados pela palavra escrita. Na arte ocidental pré-renascentista e renascentista, essa relação foi predominantemente representada pelos textos bíblicos. O espetáculo do barroco brasileiro é um exemplo da sedução, ilusão e incisiva argumentação das imagens tradicionais em favor da religião. O efeito óptico do reflexo da luz no ouro dos altares das igrejas corrobora a analogia entre riqueza espiritual e riqueza material presentes naquele tipo de arte.

Hoje, existe o consenso de que, a partir do século XV, muitos artistas usaram espelhos e lentes para criar projeções do objeto de suas pinturas. Alguns artistas usavam essas imagens projetadas diretamente para produzir seu trabalho. Logo, esse novo modo de ver o mundo disseminou-se dentro do domínio da arte visual. Muitos historiadores da arte sustentam que alguns pintores usavam a câmara escura ou a câmara lúcida em suas obras - ou, pelo menos, foram influenciados pelas tonalidades, sombreados e cores encontrados na projeção óptica -, a fim de aumentar a fidelidade em suas obras. Roberta Lapucci identifica particularidades dessa técnica na obra de Caravaggio pelo tipo de iluminação. Porém, a estudiosa ressalta que "[...] os primeiros nus ´exibem uma luz vinda dos corpos` e parecem captados indiretamente por um espelho, pois o calor da presença imediata está ausente. Os músculos, nervos e estrutura óssea presentes, ao contrário, em obras posteriores, acham-se ausentes".

Por outro lado, Caravaggio, em telas posteriores, abordou a reflexão especular de forma mais conceitual na tela "Narciso", na qual o personagem mítico, na metade superior do quadro, mira a própria imagem refletida na água, que se situa na metade inferior. Esse sentido de reverberação entre material objetivo, material subjetivo e técnica é fascinante pela convivência harmônica entre inteligência visual e poesia conceitual.

Se tomarmos a representação visual realista como ambiente privilegiado do desenvolvimento da arte ocidental, estaremos falando inevitavelmente das suas consequências na arte atual, na sua expressão mais ampla. Na arte do nosso tempo, surge uma distinção fundamental inaugurada pelo filósofo Vilém Flusser, no livro Filosofia da caixa preta. Flusser divide as imagens em duas categorias: imagens tradicionais e imagens técnicas. Nessa distinção, ele atribui, ao seu modo, o predomínio da subjetividade sobre as imagens tradicionais, ao passo que, nas imagens técnicas, essa subjetividade é menos evidente e de uma objetividade ilusória. Flusser também atribui o papel antes ocupado pelo "agente humano" a um complexo "aparelho-operador" (ou seja, a máquina e o sujeito).

Como toda imagem, as imagens técnicas (TV, cinema, foto, etc) são mágicas, pois têm o mesmo poder de estruturação plana que traduz eventos em situações e processos em cenas. A imagem técnica se diferencia pelo caráter conceitual que sucede a consciência histórica. O pensamento imagético conceitual propiciado pelas imagens técnicas surge em um momento em que os textos se tornam cada vez mais imaginativos, ao passo que as imagens tornam-se cada vez mais conceituais. E o filósofo acrescenta: "Atualmente o maior poder conceitual reside em certas imagens, e o maior poder imaginativo, em determinados textos da ciência exata".

O efeito mágico das imagens técnicas, que é viabilizado pelo complexo "aparelho-operador", tem dois ancestrais: na imagem tradicional, o "agente humano" se relaciona com o operador, ao passo que o instrumental pictórico antecede o "aparelho". Esse aparelho - que tem uma objetividade ilusória no presente, pois necessita da subjetividade do operador - tem, na tradição, o reflexo do espelho como um instrumento equivalente em termos simbólicos e práticos.

A apropriação do reflexo como ideia emana de toda expressão artística, como um fundamento que coloca a arte como expressão do espírito. Essa ideia toma vulto pela inspiração na natureza, no sentido de que a especulação sobre a realidade traz algo de reflexivo ou meditativo. Essa metarrealidade inspirada na imagem refletida no espelho e no processo do pensar estético se torna um plano entre literatura e imagem refletida, de acordo com o ponto de vista no papel que a imagem ou a palavra assumem como procedência e propriedade.

Personagens do espelho: Narciso e Alice

Na literatura, música e pintura, são muitos os casos de apropriação do espelho ou da reflexão como objeto, evento, personificação ou cena dentro de uma obra, além de apropriações, citações e transposições para outros meios. Os efeitos ópticos são analogias e efeitos usados como repertório da representação estética existentes dentro de cada linguagem em conformidade com as relações espaciais, temporais e materiais de cada meio.

Na mitologia grega, marcada pela origem na oralidade, muitos são os casos em que o espelho aparece como instrumento simbólico. A Medusa, por exemplo, ao desrespeitar o templo de Atená, teve seus cabelos transformados em serpentes, recebendo assim a maldição de converter em pedra todos aqueles que olhassem para ela. Perseu conseguiu cortar-lhe a cabeça mirando-se no reflexo da sua terrível imagem. Em outra narrativa mítica, cujo foco especulativo maior é a reflexão, Dioniso se vê num espelho fragmentado, e o desmembramento da sua imagem prevê o real desmembramento do seu corpo levado a cabo pelos Titãs. No mito de Narciso, temos o conceito da reflexão levada ao extremo, quando o personagem mítico se destrói ao se ver na plenitude plana do espelho d´água.

Quando nos referimos ao mito de Eco e Narciso e ao limite espaço/tempo nele metaforizado, retomamos a dicotomia existente na relação entre palavra e imagem. Esse mito sugere a ideia de reflexão dentro de uma relação especular e suas consequências nos planos amoroso, linguístico, filosófico e psicológico.

No mito, Eco foi castigada por Hera, esposa de Zeus, e perde o corpo e dom da fala autônoma, tornando-se pura réplica das vozes de quem se aproxima. Narciso, por sua vez, peca por orgulho e recebe também uma praga de amar sem ser capaz de possuir o objeto amado. O encontro de Eco e Narciso representa uma diversidade de sentidos da relação especular que acontece entre a palavra e a imagem, entre o masculino e o feminino, na oposição entre cores e formas complementares e na mimese visual e sonora da representação estética.

Mas o que existe do mito de Narciso na tela homônima de Caravaggio? Poderíamos ver o Narciso de Caravaggio como a materialização, a tradução "ideal" do personagem mítico que representa a limitação da imagem. No mito, Narciso esbarra na limitação ecoica (de repetidor despersonalizado) da palavra que é metaforizada por Eco. Na tela do pintor italiano, ele é o fruto da transposição, que traduz o clímax, a essência de uma obra predestinada à imagem.

No artigo "O encontro impossível de Eco e Narciso", José Jorge de Carvalho observa: "Eco e Narciso são duas naturezas de uma simetria centrífuga, antirrelacionais. Só pode haver relação duradoura quando não há nem autonomia completa, nem dependência completa, tanto de imagem quanto de palavra". Poderíamos nos referir à "simetria perfeita" dos personagens como uma relação paralela, que tem duas forças iguais em potência e intensidade, mas que não se correspondem e tendem a se extinguir na infertilidade desse paralelismo das linguagens. Por outro lado, poderíamos comparar esse mito com uma história que apresenta uma relação especular de outra natureza e pode ser vista como uma mudança de posição do autor em relação ao objeto de sua narrativa.

Em Alice através do espelho, livro de Lewis Carroll, percebe-se, pelo título e, principalmente, pela relação entre o texto e os desenhos de John Tenniel, a perpendicularidade com a qual o tema é tratado refletindo-se nas trocas descritivas e narrativas entre texto e imagem no desenvolvimento da história. Ao entrar no espelho, Alice se depara com um mundo invertido, e essa fantasia cria vida quando o leitor se depara com as ilustrações. As inúmeras descrições de Carroll do ambiente encontrado por Alice são alimentadas e enriquecidas de detalhes nos desenhos, mas as imagens originais de Tenniel oferecem muitas vezes novas camadas de significado em inversões e relações formais internas que dialogam narrativamente com o texto.

O critico e comentarista Martin Gardner, autor da introdução e das notas da edição comentada do livro de Carroll, aponta alguns "erros" cometidos nas imagens e cita alguns casos como possíveis referências a outras obras ou licenças poéticas dentro da transposição. Como exemplo, Gardner cita uma carta em que Lewis Carroll se queixa de um desenho feito por Tenniel, que seria, em suas palavras, uma "leitura falsa".

De fato, é essa liberdade de leitura que dá ao ilustrador a possibilidade de uma abordagem criativa, na qual o espelhamento é entendido por uma ótica perpendicular, de que vai de encontro, retirando da palavra a semente de uma nova ideia intrinsecamente relacionada com o texto, mas com suas características próprias. Assim, o ilustrador torna-se tão autor quanto o escritor, pois as imagens podem ser significantes tanto anteriores como posteriores ao texto.

Nossa experiência mostra que o processo criativo do desenho tem características subjetivas, que diferenciam a expressão estética por características processuais, desenvolvidas pelo sujeito e características morfológicas encontradas na estrutura de cada desenho. A diferenciação existente entre a expressão verbal e visual se desenvolve desde a infância, na morfogênese da linguagem escrita, quando a criança começa a relacionar o signo sonoro com o signo gráfico da escrita e a diferenciar este signo do desenho.

Mesmo nesse estágio inicial, o desenho e a escrita se desenvolvem como processos predominantemente mentais. O que diferencia esses processos é o sistema de signos utilizados e a cinestesia que tem papel determinante no desenvolvimento do grafismo. Esse sentido de percepção de peso, movimento, resistência e posição do desenhista em relação ao desenho se estabelece como diferenciador entre fruição e criação do desenho. À medida que o sujeito se desenvolve, esse sentido diferenciará também o desenho em relação à criação verbal, que vai lidar de modo cada vez mais "mental" com o processo criativo ao utilizar os mesmos códigos e sentidos para a leitura e a escrita.

No entanto, também nesse estágio inicial, a relação especular entre desenho e palavra se estabelece, mostrando-se, de acordo com o sujeito, de um árido paralelismo como no mito de Eco e Narciso ou de total convergência como no livro Alice através do espelho. A motivação da criança em desenhar possibilita uma produção espontânea que tende a propiciar o desenvolvimento criativo.

Além da narrativa

Na dissertação O começo é o fim pelo avesso, analisamos a transposição da narrativa oral de pessoas da terceira idade para os desenhos infantis por um processo empírico que consistiu da produção de 453 desenhos de crianças entre 6 e 9 anos, estudantes do ensino fundamental de escolas municipais do Rio de Janeiro. Configurados a partir de histórias da infância dos idosos, esses desenhos foram objeto de estudo em relação à criatividade, à narratividade e à memória, que possibilitaram a representação dos elementos dessas histórias. A ideia era averiguar a influência do tempo entre a escuta e o desenho, a interferência do processo de ensino e aprendizagem no espaço escolar e a relação do sujeito com os materiais desta transposição, levando em conta a cultura, o contexto e o nível de expertise dos colaboradores.

O ponto de partida da transposição foi a narrativa oral da idosa Emília Stibler. Em resumo, sua história de infância relatava o aparecimento de uma cadela no portão da casa onde ela morava com sua família no interior. Emília e seus irmãos gostaram da cadela, mas a mãe não queria que seus filhos brincassem com ela. No dia seguinte, a cadela continuava no portão de casa e, aos poucos, todos da família foram se afeiçoando a ela, que, então, foi adotada, nomeada de Aparecida e passou a viver no quintal. Como a cadela era agressiva com pessoas estranhas, os pais de Emília acharam melhor dá-la para alguém que a levou para um sítio bem distante. Para a surpresa de todos, Aparecida retornou sozinha no dia seguinte. Mas não houve jeito: tiveram de se desfazer dela.

No desenho infantil feito a partir do relato, percebe-se que o simbolismo está presente pelo caráter icônico da sua configuração. Por essa natureza simplificada, o desenho tende a estreitar o percurso entre o significado e o significante. Mas essa significação pode ter dimensões inesperadas, já que o sentido do desenho da criança se completa na fala do sujeito. Assim, a falta ou o excesso de elementos pode ter igual representatividade.

Cerca de um quarto do total de desenhos produzidos pelas crianças foi analisado qualitativamente. Essas imagens, que foram configuradas por um processo de transposição, a partir da leitura da narrativa de Emília, têm grande diversidade. Na seleção analisada, pudemos perceber nuanças que tornam alguns desenhos diferenciados dentro do grupo.

O desenho de Gabriel, 8 anos, aluno da Escola Municipal Araújo Porto Alegre, representa a volta da cadela Aparecida pela estrada. Esse desenho peculiar traz a protagonista da narrativa oral demarcada em preto sobre um fundo preto. A área escura que serve de fundo para a cachorra representa a estrada, e, ao mesmo tempo, o escuro da noite reforçado pela imagem da lua, que estabelece assim a temporalidade da cena. A diferenciação desse desenho em relação ao grupo analisado acontece pela ausência dos elementos mais desenhados, como a casa, a árvore ou a criança. Notamos, assim, uma diferença da recepção da narrativa, o que denota uma identificação maior do pensamento com esses significantes, do que a necessidade de identificação do sujeito com o grupo.

Por entender que esse desenho representava uma exceção dentro do grupo e que essa exceção se dá pela dramaticidade da imagem, buscamos identificar, comparativamente, o modo por que essa diferenciação acontece.

O primeiro diferencial se dá pela escolha da cena à qual ele se refere. Entre todos os desenhos feitos pelos alunos a partir da história de Emília, encontramos apenas três que retratam a cena de Aparecida voltando pela estrada. Mas o desenho de Gabriel apresenta um diferencial, já que ilustra uma cena também imaginada por Emília. Talvez essa cena da história narrada seja a única que Emília não presenciou, ou seja, a cena seria uma dedução da narradora que foi incorporada aos fatos presenciados, completando a narrativa e dando sentido ao ressurgimento de Aparecida no fim, depois de ser levada embora.

A segunda diferença do desenho de Gabriel em relação aos outros está no modo de retratar uma cena enfaticamente noturna, sobretudo na utilização das cores e dos elementos compositivos que a diferenciam em sua dramaticidade, em comparação aos outros dois desenhos dessa cena. No que se refere à memória dos elementos e personagens, a ênfase para a cadela é total. Os elementos - estrada, lua e nuvem - têm função clara de situar a cena no tempo e espaço; o uso de lápis grafite na configuração dos elementos lua, nuvem e cadela mostra um grande interesse em ser bem entendido.

É um desenho bastante narrativo por remeter ao relato oral e propor uma ideia de continuidade no sangramento da estrada que corta a imagem de um lado ao outro, induzindo uma leitura horizontal da esquerda para a direita. A presença de um elemento escuro representando um carro reforça a identidade do espaço "estrada". A cor preta utilizada nos dois elementos sobre a estrada faz um tipo de "tom sobre tom" que reforça a ideia de escuridão, ao passo que a borda inferior da estrada limitando uma área azul na base do desenho acaba por criar uma sensação de espelhamento, tanto pela simetria dos lados da estrada como por repetir o azul existente na borda superior do desenho. 

Mas as diferentes possibilidades de escolhas não retiram o caráter reflexivo da transposição. Nesse ponto, a reflexão que o desenho representa pode ser mais metafórica, tomando um sentido perpendicular e interpretativo ou, então, uma reflexão analógica, relacionando-se de forma paralela com o texto. A escolha de elementos como casa, árvore, sol, nuvem, pássaro ou outro agrupamento de ícones mais comuns torna o desenho aparentemente menos imaginativo. A vitalidade da imagem tende a ser maior à medida que a caligrafia da criança se impõe sobre a praticidade genérica do signo icônico.

Nesse ponto, identificamos a terceira diferença na resposta de Gabriel ao exercício da transposição. Ela nos remete à questão do erro ou da assimetria entre imagem e reflexo. A imagem, que não é descrita no texto por não ter sido vista pela autora, é privilegiada no desenho do menino não como um reflexo, mas como uma vivência imaginativa. Gabriel traz magia para a imagem - penetra no evento e o transforma em situação; embarca no processo e o transforma em cena. O desenho, configurado dentro de um padrão icônico regular, estabelece a necessária especulação sobre aquilo que não está na superfície do espelho, mas dentro dele.

Essa assimetria percebida no desenho de Gabriel, tanto em relação ao texto como em relação ao grupo de desenhos, nos remete de volta ao diálogo entre Eco e Narciso. José Jorge de Carvalho observa que ocorre uma assimetria do diálogo entre simétricos, no momento em que o amor se instala entre eles. Mas é nas diferenças que encontramos a fértil complementaridade especular entre palavra e imagem.

Quando Narciso se apaixona pela própria voz repetida por Eco, Narciso descobre a narratividade, qualidade do tempo e, por isso, tipicamente verbal presente na imagem. Nesse momento, a imagem de Narciso se fecha numa relação autorreferente que está condenada à falência.

A narratividade tem na imagem o "tempo de magia", quando o olhar circula pela superfície descobrindo elementos preferenciais. No entanto, essa narratividade das imagens é sempre parcial em relação ao texto, e o potencial narrativo consiste da união entre diversos trechos retratados e a diversidade que esses trechos representam por refletirem a subjetividade do autor. Assim, cada observador estabelece o sentido e o tempo da narrativa. Não obstante, é possível identificar relações entre a quantidade de elementos em determinada linearidade e a qualidade de identificação, como possibilidade de atrair e manter o observador percorrendo a imagem.

O problema do espelhamento perfeito e fatal vivido por Narciso ganha sentido nas palavras de Flusser, que aponta uma inversão (característica tipicamente especular) da função da imagem:

O homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função das imagens. Não mais decifra as cenas da imagem como significados do mundo, mas o próprio mundo vai sendo vivenciado como conjunto de cenas. Tal inversão da função das imagens é idolatria. Para o idólatra - o homem que vive magicamente -, a realidade reflete imagens.

A expressão visual e a oralidade são partes complementares de um mesmo ciclo: o eterno retorno. No desenho, a imaginação constrói, quando o olhar vagueia pela superfície da imagem, uma possível narração. Na oralidade, a memória ordena as imagens mentais do passado, que serão decodificadas em imagens pela escuta. Por isso, acreditamos que a relação entre imaginação e memória seja complementar, ao mesmo tempo antagônica e indissociável como a imagem e seu reflexo.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.