Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Da utilidade da poesia

Elisa Lucinda

Talvez a poesia seja pioneira no setor de "autoajuda", antes de haver editorialmente este termo. Desde adolescentes colecionamos versinhos de diversos autores em agendas e, muitas vezes, dizemos deles: "Esse verso sou eu! Parece que ele me conhece!". Outras vezes um verso salva uma pessoa, noutras, muda uma vida ou várias. Tenho dedicado minha vida a popularizar o gênero. Como sabemos, até hierarquicamente o gênero poesia é desprezado. As premiações para romance e contos, por exemplo, nos mais prestigiados concursos do mundo, são sempre mais avultosas do que os valores para a poesia. Como se pudesse haver hierarquia entre os gêneros. Acabo de publicar o meu primeiro livro de contos e pude me ver diante da insistente pergunta afirmativa de variados jornalistas: "Bem, agora que você está escrevendo contos, pretende também chegar até o romance?". Ora, falam como se houvesse uma evolução. Estamos falando da arte da escrita e cada uma de suas modalidades possui um tecido diferente. Acaso nas artes plásticas um escultor é melhor do que um pintor? Muitas vezes o cara é um grande romancista e não foi capaz de um verso; eu não conheço nenhum poema de Virginia Woolf, e tampouco posso dizer que Fernando Pessoa é menor do que Gabriel Garcia Marquez.

Estou dizendo que a poesia sofre de discriminação, preconceito e de desprestígio por parte de livreiros, editores e, consequentemente, do público a quem não é oferecida essa pérola de forma atraente. Ora, a poesia está na fala das crianças ("A lágrima é mágoa da água"), nos provérbios populares ("Quem não vive para servir não serve para viver / O que a gente leva da vida é a vida que a gente leva"), nas cartas dos apaixonados ("Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure"), nas folhinhas dos calendários ("Fica sempre um pouco de perfume nas mãos que oferecem rosas"), nas letras de música ("Se eu quiser falar com Deus, tenho folgar os nós das gravatas, dos sapatos, dos anseios, tenho que esquecer a data, tenho que perder a conta, tenho que ter mãos vazias, ter a alma e o corpo nus"), nos sermões religiosos ("Não diga a Deus o tamanho dos seus problemas, diga aos seus problemas o tamanho do seu Deus").

Pois bem, se ela está em toda parte, por que não vende? Por que é considerada menor? Arrisco em dizer que a gênese dessa dificuldade de circulação da poesia esteja no ensino básico, em que a criança é apresentada ao poema, e o professor (salvo raras exceções) não sabe lê-lo. Para se ler um poema, há uma tendência universal de impostar a voz e se distanciar do tema para priorizar a sua forma. Carrega-se a mão na tinta ao se elegerem as rimas no exagero sonoro de exaltá-las, criando assim uma "música" previsível e aprisionante que faz parecerem iguais todos os poemas. Esse jeito formal de tratar o verso quando é dito nos saraus de declamação ou na sala de aula prejudica a comunicação e a transmissão da mensagem que aquele verso traz, além de entediar e muitas vezes fazer adormecer seu público-alvo. Na maioria das vezes, a forma gráfica dessa escrita ilude o leitor e o orador, levando-o a respirar a cada fim de verso atropelando o seu sentido, cortando o fluxo de uma oração, separando o verbo do seu complemento, o adjetivo de seu substantivo, criando uma distância violenta e uma montanha de nonsense entre a poesia e seu espectador. Vou dar um exemplo no fragmento do poema de Manuel Bandeira:

Teu corpo de maravilhas
quero possuí-lo no leito
estreito da redondilha.

Infelizmente, algumas vezes pude assistir a esses versos sendo lidos dando uma pausa no "leito", separando bruscamente o adjetivo "estreito" que dá qualidade ao "leito", se falado junto. Porém, quando os separamos, criamos um discurso doido que suspende qualquer entendimento lógico.

Tenho dedicado minha vida à difusão da poesia em todos os meios de comunicação para todos os públicos e idades. Quando tinha apenas 11 anos, minha mãe, percebendo o meu gosto por essa arte já na escola, me levou para estudar declamação. Por sorte a professora era uma mulher especial e foi me dizendo logo que o seu curso era, não de declamação, mas de interpretação teatral da poesia. Eu não entendi logo o que isso significava, mas gostei e essa senhora querida, Maria Filina Sales Sá de Miranda, me ensinou a ler o poema contando a sua história, só dando pausas ditadas pelo sentido e não pela forma. Essa escola, onde permaneci por seis anos consecutivos e dela só saí para ingressar no teatro, deu um vetor diferencial no tratamento poético para mim.

A experiência nos palcos do Brasil e de alguns outros países me levou a criar a Escola Lucinda de Poesia Viva, cujo lema é "falando poesia sem ser chato". Esse lema nasceu porque, quando iniciei meus espetáculos monólogos poéticos no Rio de Janeiro, descobrimos que, se colocássemos a palavra poesia nos cartazes de divulgação, afastávamos o publico que certamente pensava o que inúmeras vezes verbalizou: "Ah, não, monólogo e poesia ainda por cima... Não vou suportar!". Foi preciso, então, que muita gente testemunhasse que era possível outra forma de experienciar a poesia e ver que meus recitais, ao contrário dos outros, não deixava ninguém dormir na poltrona, para que eu pudesse, como hoje, estampar a palavra poesia nas peças publicitárias desses espetáculos, sem medo de espantar ninguém.

A experiência diversificada durante estes anos falando para auditórios de duas mil, cinco mil e até quarenta mil pessoas me fez concluir que o segredo dessa comunicação está em trazer para a poesia a musicalidade das conversas, digo, das conversações cotidianas. Se o poema nasce do cotidiano, ele deve ter o seu acento, sua "imperfeição" humaníssima, seus muxoxos, seus naturais gestos que jamais devem ser ensaiados antes. Pois, da mesma maneira que, quando falamos o texto da nossa vida real, utilizamos nossas mãos e todo nosso corpo como agente de expressão espontânea, assim devemos fazê-lo com os versos, gesticulando sem pensar nisso. Se devolvemos à poesia seu sotaque original, seu desejo de ser compreendida, sua musicalidade informal de conversa, de "charla", seu dom de comunicação se cumpre e encontra seu alvo. Muita gente me diz que era virgem de poesia antes de conhecer esse modo de dizer, que antes se sentia menor, excluído e incapaz de compreender um poema. A experiência me diz que a culpa raramente é do poema e sim de seus declamadores. Na Escola Lucinda de Poesia Viva, costumo dizer aos meus alunos que eles passarão por uma "clínica de desintoxicação" para que se libertem do "vício" de aprisionar o poema numa "música" formal e limitada como se fosse um chato discurso político, que nos acompanha desde criança.

Caí dentro desse assunto tratando este "produto" com iniciativas de multimídia. Explico: ao publicar um livro, também o lanço em forma de espetáculo, de CD e agora de DVD, além de utilizar a televisão e o rádio para dizer poemas em cada entrevista. Essa atitude traz maior circulação e consumo do gênero. Coleciono uma série de exemplos que comprovam não só a utilidade, mas também a necessidade da poesia no mundo - eu me lembro do ano passado durante o Fórum de Cultura em Barcelona quando uma senhora me disse que tinha trocado suas pílulas antidepressivas por uma dose diária do meu espetáculo poético "Parem de falar mal da rotina". De outra vez, uma senhora aluna minha de oitenta anos, Dona Elza, me disse que havia perdido um neto e nem tinha tido espaço pra sofrer por se sentir na obrigação de consolar a filha no seu desespero atroz. Certo dia, Elza, ao entrar na livraria, abriu, por curiosidade, um livro de Carlos Drummond de Andrade e se deparou com um poema que ressignificava o conceito da palavra ausência, dizendo que ausência é não uma falta, mas um excesso de presença do objeto amado. De alguma maneira, esse pensamento aliviou o coração da avó e curou a depressão da mãe. De outra vez, um jornalista de uma grande revista brasileira me ouviu dizer um poema meu que se chama "Libação", cujos versos finais mudaram sua vida:

A vida não tem ensaio
mas tem novas chances
Viva a burilação eterna, a possibilidade
o esmeril dos dissabores!
Abaixo o estéril arrependimento
a duração inútil dos rancores
Um brinde ao que está sempre nas nossas mãos:
a vida inédita pela frente
e a virgindade dos dias que virão!

Pois, ao ouvir essas palavras, Leôncio refletiu sobre sua carreira e admitiu que se considerava um embuste como jornalista e que poderia viver sendo mais honesto com os seus sonhos. A partir daí e na mesma semana, mesmo indo contra seus familiares, pedira demissão dos seus vinte anos de revista Veja e, com o dinheiro recebido, abriu uma livraria chamada Esquina da Palavra, que era o seu sonho desde menino e da qual sou madrinha a seu convite; o batizado, eu nem preciso dizer, foi um recital.

Há um poema ("Choro à capela") de Adélia Prado que também produz milagres:

O poder que eu quisera é dominar meu medo.
Por esse grande dom troco meu verso, meu dedo,
meus anéis e colar.
Só meu colo não ponho no machado,
porque a vida não é minha.
Com um braço só, uma só perna,
ou sem os dois de cada um, vivo e canto.
Mas com todos e medo, choro tanto
que temo dar escândalo a meus irmãos.
[...]
Tristeza é o nome do castigo de Deus
e virar santo é reter a alegria.
Isso eu quero.

O primeiro milagre (que eu saiba) que esse poema operou foi com uma aluna que o estudou durante um workshop para professores em Recife. Depois que Marina, essa professora simples da escola pública da zona rural pernambucana, disse esse poema de cor, nervosa e emocionada, mas muito bem dito, para um plateia de mil pessoas que a aplaudiu de pé, recebi uma carta sua que dizia mais ou menos assim:

Elisa, foi uma experiência maravilhosa esse curso para mim, depois daqueles três dias mágicos estudando um poema mágico e conhecendo outros, passei a ver poesia em tudo: no pão quentinho nas mãozinhas dos meus filhos pela manhã, na alegria dos meus alunos, no vento da tarde e tirei da minha vida tudo que não é poesia. O primeiro a sair foi meu marido. Obrigada por tudo.

Depois, em outro workshop no interior do Rio de Janeiro, veio falar comigo uma aluna, Ivone, que nos seus trinta e cinco anos exibia dedos das mãos e dos pés entortados por um processo de artrose cavalar. Pois na hora da escolha de poemas ela se aproximou de mim particularmente e disse que havia me visto dizer um poema na TV e que deu vontade de saber um poema de cor para experimentar da mesma sensação que ela experimentara ao me ver, só que no papel de dizedora. Ivone, no entanto, revelou não saber que poema escolher, uma vez que seu dilema era a triste doença que aleijava sua juventude a passos largos. Ela então me perguntou o que eu faria se estivesse em seu lugar. Respondi que a achava muito corajosa e que, se eu tivesse os dedos tortos, a princípio tentaria escondê-los por vergonha. Mas que ela, ao contrário, trazia as unhas muito bem feitas, pintadas de vermelho e os tortos dedos cheios de anéis, e que, além disso, maior defeito físico era o medo, que paralisava pessoas não portadoras de nenhum defeito físico e que, no entanto, não estavam ali, bravamente como ela. Sugeri o "Choro à Capela" e Ivone o abraçou com unhas e dentes e, no segundo dia do curso, voluntariamente, foi a primeira a apresentá-lo, memorizado, emocionando a todos, toda linda de dentro dum vestido colante de oncinha. Ivone casou logo depois com um dos que a viram dizer esse poema nesse dia.

Há dois anos fui convidada a jantar com meu grande amigo ator, autor de telenovelas e diretor de teatro, Miguel Falabella. Na ocasião, ele me falava que havia perdido o pai que tanto amava e, por isso, obviamente estava muito triste. Lembrei-me então de um outro poema de Adélia chamado "Leitura":

Era um quintal ensombrado, murado alto de pedras.
As macieiras tinham maçãs temporãs, a casca vermelha
de escuríssimo vinho, o gosto caprichado das coisas
fora do seu tempo desejadas.
Ao longo do muro eram talhas de barro.
Eu comia maçãs, bebia a melhor água, sabendo
que lá fora o mundo havia parado de calor.
Depois encontrei meu pai, que me fez festa
e não estava doente e nem tinha morrido, por isso ria,
os lábios de novo e a cara circulados de sangue,
caçava o que fazer pra gastar sua alegria:
onde está meu formão, minha vara de pescar,
cadê minha binga, meu vidro de café?
Eu sempre sonho que uma coisa gera,
nunca nada está morto.
O que não parece vivo, aduba.
O que parece estático, espera.

E assim seguiu o nosso jantar "poético", porque, ao final de cada tema de nossas vidas e de nossos assuntos, eu tirava da manga um poema oportuno. Foi quando ele me disse que aquilo exercia nele uma maravilha curativa sem medida e que eu deveria criar postos de "Emergência Poética" pela cidade do Rio de Janeiro, onde moramos, para que as pessoas pudessem apresentar seus problemas e ter a solução prescrita em versos.

Meus amigos, a poesia é uma joia como gênero e não está abaixo e nem acima de nenhum outro. Tem o poder de ser ambulante, de poder andar no bolso, no coração, na sala de aula, entre amantes, no meio de uma sedução, no meio de uma tese, no meio de uma palestra, num julgamento, num programa de TV, num passeio, num churrasco, numa canção, num teatro, numa festa, e merece atenção e tapetes vermelhos por parte dos profissionais de literatura. Me despeço com um fragmento do "Credo", o meu poema mais caçula.

[...]
Porque sou humano e creio no divino da palavra,
pra mim é um oráculo a poesia!
É meu tarô, meu baralho, meu tricô, minha reflexão, minha bruxa, meu caldeirão,
meu I ching, meu dicionário, meu cristal clarividente, meu búzio, meu copo com água, meu conselho, meu colo de avô,
a explicação ambulante  de tudo o que pulsa e arde..
A poesia é síntese filosófica, fonte de sabedoria e bíblia dos que, como eu, creem na eternidade do verbo, na ressurreição da tarde e na vida bela, amém!

Se eu fosse um padre

Mario Quintana

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
- muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,
não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,
Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!
Porque a poesia purifica a alma
...e um belo poema - ainda que de Deus se aparte -
um belo poema sempre leva a Deus!

Fonte: Este texto foi a palestra proferida na 14a Feira Internacional do Livro de Cuba.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.