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Dalí: um artista da transgressão

Georgia Amitrano

Filósofa

Ao ser convidada para escrever um texto sobre os cem anos de nascimento de Salvador Dalí, perguntei-me o que um filósofo teria a dizer sobre a arte surreal, o onírico e o amor a Gala, sobre um artista tão sui generis quanto foi Dalí. Diante dessa questão, recordei-me de duas reportagens publicadas no fim da década de 80 sobre o pintor. Numa reportagem, publicada pouco antes de sua morte, falava-se de um Dalí velho, excêntrico, enclausurado em sua casa e que rompia com todas as normas vigentes. Na segunda, por ocasião de seu falecimento, contava-se do esplendor de um artista que morria e que deixava um legado maravilhoso em suas pinturas surrealistas.

Ora, pareceu-me que Dalí perdeu, por ocasião de sua morte, toda a transgressão e todo um olhar onírico e crítico de mundo, passando a ser apenas mais um "gênio da pintura". Diante dessa constatação, descobri o que falar sobre Salvador Dalí. Neste artigo, não me aterei nem à sua vida, nem à sua obra, mas tentarei expor uma visão estética de mundo que, para além do real, buscou no sur algo para fora da norma, da doxa e da mediocrização.

O poeta/pintor e a transgressão estética

Pressupondo-se a que expressão artística seja uma estrutura de linguagem capaz de desempenhar uma determinada função criadora, que envolva não apenas a originalidade da expressão artística, mas também a originalidade das atitudes do homem no mundo, Salvador Dalí surge como aquele capaz de perceber que determinadas obras de arte são passíveis, entre outras coisas, de atuar para além da simples representação e criatividade pura, circunscrevendo, no estilo artístico, uma reflexão, mesmo que aparentemente afastada do real, e uma denúncia da miséria acerca da própria condição humana.

Como afirma Gilles Deleuze, arte é um signo maior que, contrapondo-se aos demais, explicita sua superioridade perante a materialidade dos signos que rodeiam o mundo do pensamento. Para tanto, deve ser compreendida como a "diferença última e absoluta". Em outras palavras, como "diferença interna, diferença qualitativa decorrente da maneira pela qual encaramos o mundo, diferença, que, sem a arte, seria o eterno segredo de cada um de nós [...]". (DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Tradução de Antônio Carlos Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 41 e 42.)

A arte, desse modo, seria o único signo que comunica a verdade, pois sem ela não nos mostraríamos, não nos revelaríamos. Cabe salientar que arte não existe sem o artista, sem o qual ela nada seria. Nesse âmbito, pode-se olhar para uma atitude estética, ou seja, para uma atitude que, ante uma apropriação específica do real, se torna capaz de apresentar - e até mesmo construir - uma nova dimensão para o homem. Inscrevendo-se a partir de uma reflexão trágica acerca do mundo e da existência, busca-se, nessa atitude entendida como artística, direcionar o homem a uma nova forma de olhar e ausculta este mesmo mundo e o real. Isso se faz possível, justamente, por meio da transgressão à qual a obra estética está sujeita.

Nota

Distingue-se, aqui, “ver”, como função do olho, e “olhar”, como objeto da função escópica. Se a luz se propaga em linha reta, ela também se refrata, difunde-se, inunda. Há diversidades essenciais que escapam ao campo da visão, não estando na linha reta, diz Lacan, mas no ponto luminoso, no ponto de irradiação, que também é o ponto de transbordamento da íris, descrita como uma taça. Tal efeito, grosso modo, tira o olhar do campo balizado pelo modelo cartesiano da visão, ou seja, arranca o olhar da consciência. O sujeito perde a noção do que vê. E o que vê se perde na indefinição causada pelo estilhaçamento luminoso, ou seja, se perde na indecibilidade do olhar. Por isso, o que se quer ver nunca está onde se olha. Nesse ponto, a visão é dominada por uma espécie de cegueira luminosa em que o ato de ver perde toda a função, submetendo-se às investidas do desejo liberadas pelo olhar na função escópica.

Essa  transgressão, a que o artista está sujeito, poder-se-ia ser compreendida como um movimento que se abre ao "não-saber", um êxtase e um erotismo, um modo de capturar ou, pelo menos, vislumbrar o impossível (numa alusão a Bataille). Ressalte-se que o mundo exige formas de transgressão, pois onde há lei, enquanto forma de normatização, faz-se necessário transgredir e exacerbar. E não são poucas as formas de transgressão, das várias formas de vazão podemos salientar a embriaguez, o riso, o erotismo, a angústia e o sacrifício. Todavia, parece haver um modo mais espetacular e fantástico para se exacerbar, a saber, a arte. Ela aparece como expressão transgressora da norma justamente por levar o indivíduo a exceder seus limites e vislumbrar para além do possível, caminhando para o âmbito do imaginário e do onírico.

Diante do exposto, certos artistas e determinados movimentos estéticos realizaram com maestria sua função transgressora e tentaram dar ao mundo um sentido que se oculta na normatização mecanicista da vida cotidiana. Apresentando-se como críticos da sociedade ocidental vigente, esses artistas são merecedores de uma análise mais profunda, de modo a se poder ultrapassar a própria análise estética (no sentido de "pura arte".). Entre esses transgressores dos pincéis e das penas, cabe lembrar dos surrealistas e, em especial, de Salvador Dalí.

Com o lema "Mudar a vida e transformar o mundo!", os surrealistas aparecem, insurgindo-se contra a "ordem" estabelecida, negando tudo o que mesquinha e avilta a condição humana. Foram audazes, justamente, por proclamarem a insubmissão a todas as normas estabelecidas, bem como por acatarem e pregarem a onipotência e superioridade do sonho e do inconsciente sobre o real. Do mesmo modo, romperam com as regras dos sentidos, enaltecendo a total falta de regras e, com ela, o próprio desregramento de todos os sentidos. Em outras palavras, proclamaram o poder do humano, daquilo que se presentifica em todas as formas de paixão.

Desse modo, percebe-se a razão pela qual o reconhecido racionalismo, estrito e estreito por definição, não pode apreender o surreal em sua plenitude. Principalmente, sendo o surrealismo considerado como o movimento de maior acusação contra a cisão, historicamente provocada pela modernidade, entre razão e paixão, liberdade e sonho.

Saliente-se que a temática surrealista não ficou pendurada nas galerias de grandes museus ou encadernada em coleções de luxo. Ao contrário, foi capaz de transcender os muros da própria normatização estética e filosófica, sendo abordada pelos principais filósofos da Escola de Frankfurt (como Marcuse, Fromm, Benjamin, Adorno, Horkheimer e Bloch) e por pensadores considerados não muito ortodoxos ou convencionais, como Albert Camus.

Mesmo com diferentes abordagens filosóficas, todos os que trataram da questão acabaram por propor um mesmo caminho para entender a temática surreal: o amor e a busca de uma "reerotização" da razão ou, em outras palavras, a busca por uma razão apaixonada.

Ora, o que se quer dizer é: para ser homem, não é possível deixar-se subjugar pelas normas de um mundo sistematizado e mediocrizante, mas, ao contrário, é preciso ser sabedor da necessidade de se insurgir contra as regras estabelecidas, transgredindo-as e, assim, criando uma nova ordem.

Nesse contexto, Dalí se insere. Suas pinturas não proclamam o irreal ou a falta de senso contra o humano, mas, ao contrário, estão apresentando o quanto a vida normatizada, padronizada e sistemática é irreal, violenta e sem graça. Logo, pode-se pensar que, por mais contraditório que pareça, tanto o surrealismo (ver o Segundo Manifesto Surrealista) como a obra de Dalí são, na verdade, contrários a tudo o que tolhe o humano, ou seja, contra a maior de todas as violências: a falta de sentido da vida.

Seus quadros oníricos condensam todas as esperanças dos surrealistas numa nova era, num mundo transformado, onde o homem não se apresente mais na figura de um animal raivoso e homicida, que apenas se reconhece minimizando seu semelhante ou lutando contra ele. Na civilização surrealista, na sociedade do futuro, o homem, por meio do amor e do sonho, encontraria finalmente a plenitude da harmonia com o mundo, ou seja, sua verdadeira razão de viver.

Poder-se-ia chamar Dalí de um "filósofo de última hora", já que ele tenta buscar uma saída de acesso ao mundo, a qual estaria, justamente, no acesso à magia e no reencantamento desse mesmo mundo. Todavia, parece que essa magia e esse reencantamento são privilégios de poucos, ou melhor, pertencem ao artista, visto ser ele que - por intermédio dos sonhos, do amor louco, do escândalo, da ida ao encontro do acaso objetivo, da disponibilidade para o humano - sempre transgride as normas do mundo, criando e construindo um novo modo de olhar para esse mesmo mundo, dando-lhe, assim, uma nova forma, um outro discurso.

A pintura de Dalí, então, poderia ser compreendida como sendo o fruto de um encontro entre a paixão, o amor louco e a poesia, em que o acaso e o onírico se entrelaçam, dando um contorno e uma cor diferente à realidade humana, que aparece tão medíocre na visão do artista.

Assim, pode-se dizer que, longe do que pensam alguns "críticos", o surrealismo e a pintura de Dalí nada têm de "irrealismo". Ao contrário, são a busca intransigente de uma suprarrealidade. Seu ponto de partida é o próprio cerne do que há de mais elevado e sublime no coração de cada ser humano. Certo ou errado, não podemos nos furtar em dizer que esse poeta/pintor do sonho e da loucura superou tensões e quebrou as máscaras que a sociedade normatizada e sistemática costuma utilizar e tenta impor aos demais. Dalí, tanto na sua vida como na sua obra, busca atingir e expressar a transparência do homem por meio do sonho, da beleza da mulher, da certeza do prazer, ou seja, da "glória de ser homem".

Essa promessa de felicidade é um atentado vivo ao "princípio de desempenho" da sociedade afluente, como bem lembra Herbert Marcuse em Eros e civilização. O amor louco deve ser recíproco e único, e as escolhas infelizes que, por vezes, fazemos devem-se, sobretudo, às condições sociais sórdidas em que nos encontramos, nas quais vemos nossa liberdade brutalmente tolhida e cerceada.

Amar é o mesmo que transformar a vida, e essa transformação é realizada na pintura de Dalí, como se ele escrevesse uma poesia em cores. Seus quadros são poemas apaixonados, que nada têm de piegas ou sentimentalista, ao contrário, existe na poesia/pintura de Dalí uma insurreição surreal contra o real, insurreição que se dá a partir da transformação, exacerbação e transgressão.

Referências Bibliográficas

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

BATAILLE, Georges. Oeuvres complètes. Tomo I. a X. Paris: Gallimard, 1970.

_____ . História do olho. Tradução de Glória Correia Ramos. São Paulo: Escrita, 1981.

CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1996.

DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Tradução de Antônio Carlos Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense, 1987.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 1996.

_____. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1998.

LANGER, Susanne K. Sentimento e forma. Tradução de Ana Maria Goldberger Coelho e J. Ginsburg. São Paulo: Perspectiva, 1980. (Série Estudos).

MARCUSE, Herbert. Art as Form of Reality. New Left Review, n. 74, 1972.

_____. Razão e revolução. Tradução de Marília Barroso. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

PONGE, Robert (Org.). Aspectos do surrealismo. In: Organon 22. Porto Alegre: UFRGS, 1994. (Volume 8).

Leia também: Eu sou o surrealismo.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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