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De anjo a criança e de criança a gene

Eliana Gomes Pereira Pougy

Bacharel em Comunicação Social pela FAAP, mestranda em Psicologia da Educação pela FE/USP e autora da coleção Criança e Arte - descobrindo as artes visuais, da editora Ática.

Ou como os anjos passaram a ter sexo e depois viraram ácido

Já não nos importamos mais com os anjos. Foram-se os dias em que éramos protegidos por suas asas, seus salmos e suas auréolas. Foram-se os dias em acreditávamos que os anjos, soldados do exército de Deus, tocariam as trombetas para avisar a volta de Jesus. Foram-se os dias em que acreditávamos que eles separariam os bons dos maus, no dia do Juízo Final. Eles não nos avisam mais sobre os desígnios de Deus. Eles não nos conduzem mais ao bom caminho e nem nos castigam quando erramos. Eles não nos curam mais, não nos abençoam mais, não intercedem a Deus por nós, nem levam os mortos para o purgatório. Eles não participam mais das liturgias e dos rituais divinos. Nós não nos importamos mais com eles. Nem os anjos caídos nos assustam, como antes. Não mais.

Passamos por momentos estranhos, quando os anjos nos abandonaram. Sim, eles desistiram de nós. Retiraram-se do cenário humano por não se sentirem mais tão úteis. Perceberam que já existiam homens capazes de andar com as próprias pernas e se aposentaram. Partiram para o seu lugar, o Paraíso, e foram viver o seu tempo eterno. Então, emancipados, deixamos o medo de lado e percebemos que era preciso nos ordenar, a nós mesmos. Como sobreviver sem as mensagens divinas que os anjos nos enviavam em nossos sonhos e em nossos devaneios? Somente se acreditássemos cegamente em nossa suficiência. Por isso criamos coragem. E sentimos orgulho de ser homens.

Então, alguns de nós, mais independentes e confiantes, tomaram as rédeas. Esses homens especiais, representantes do povo, pediram liberdade, igualdade e fraternidade. Não havia mais lugar para os representantes de Deus na Terra, os poderosos e déspotas. Todo o poder, nesse momento, era do homem. Do homem em geral. Por isso, o poder dividiu-se. Nasceu a hierarquia, dividida e subdividida em poderes e subpoderes invisíveis e misturados. Nasceu o sub do sub do subpoder. Percebemos que todos poderíamos mandar. Todos poderíamos ser mandados. Éramos livres até para desmandar e aniquilar quem não concordasse com a maioria. Éramos livres para escolher nossos representantes e os representantes do povo podiam fazer o que a maioria pedia. Conforme certas leis e normas. Conforme a nova ordem humana.

Para alcançar essa nova ordem foi preciso criar uma moral rígida. Compreender melhor o que é certo e o que é errado. Foi preciso criar deveres, coagir, proibir. Foi preciso organizar, numerar, nomear, classificar. Foi preciso disciplinar. Foi preciso julgar. Foi preciso homem punir homem. Homem ter medo de homem. Percebemos, também, a necessidade de recompensar os bons atos humanos aqui na Terra, mesmo. Homem recompensar homem. Recompensar por direito e por necessidade. Aprendemos a ver que existem diversas categorias de homens. E aprendemos a separar e excluir os diferentes. Decidimos que os diferentes precisavam ser destruídos. Ou ignorados.

Concluímos que era preciso definir qual era o dever de cada um. Foi preciso organizar o trabalho. Organizar a produção. Distribuir tarefas. Ordenar o espaço. Controlar o tempo. Gerir o espaço-tempo. Desenvolvemos uma surda compulsão por manter relações econômicas e por explorar uns aos outros, em nome do progresso e da ordem. Deixamos de ser cordeiros de Deus e passamos a ser construtores de algo comum. Conquistamos, enfim, a maravilhosa missão de desenvolver o mundo. Precisamos pensar em educação, treinamento, instrução. Precisamos dividir o conhecimento em disciplinas. Em métodos. Redefinir o que era conhecimento. Trazer luz ao pensamento.

Paramos, então, de pensar na vida depois da morte e passamos a pensar na vida antes da morte. Em como torná-la mais longa, mais forte, mais resistente, mais prazerosa. Foi preciso deixar claro o que era normal e o que era anormal. Prescrever curas, tratamentos. Corrigir hábitos. Orientar comportamentos. Desenvolvemos inúmeras formas de prevenir doenças. Criamos meios de limpar, desinfetar, esterilizar. Controlar o corpo. Tornar a máquina-corpo perfeita. Desenvolvemos peças para substituir partes do corpo com defeito. Máquinas completando o homem. Máquinas substituindo o homem. Homem-máquina. E crescemos em número. Passamos a ocupar espaços cada vez maiores, a viver em cidades caóticas e gigantescas. Precisamos, então, planejar a ocupação do espaço em cima da Terra.

Tornou-se nossa obrigação desvendar a natureza. Controlá-la. Transformá-la. Esquecemos de respeitá-la. Buscamos domá-la e sugá-la e aproveitar ao máximo suas potencialidades. Buscamos entender e organizar a desordem natural das coisas do mundo. Engolimos a natureza e vomitamos objetos úteis e inúteis, apenas para colecioná-los. Até a arte esqueceu da natureza. Deixamos de representá-la em imagens belas e perfeitas e os artistas passaram a falar de si e de sua linguagem. Esqueceram dos mistérios da natureza para dedicarem-se aos mistérios das linguagens humanas. Os homens artistas passaram a criar vida através da linguagem. Pretensamente, tornaram-se imitações do Deus criador. E suas obras, simulacros, e não símbolos da vida.

Percebemos a importância de nos comunicarmos uns com os outros. Massa de gente que passamos a ser, precisávamos falar uns com os outros. Desenvolvemos formas cada vez mais sofisticadas de criar e transmitir mensagens. Mensagens convincentes. Mensagens sedutoras. Mensagens que atingissem o maior número de pessoas ao mesmo tempo. Criamos meios de comunicação para ficar dentro de nossas casas. Totalmente indispensáveis. Desenvolvemos a comunicação útil. Aprendemos a falar em código somente aquilo que fosse adequado e necessário. Passamos a fabricar objetos úteis e belos. Estetizamos o cotidiano, transformamos o banal em símbolo. Aprendemos a colecionar coisas que nos representassem.

Começamos a pensar em quem somos nós. Nós em grupo e nós, indivíduos. Decidimos que seríamos aquilo que temos. Que colecionamos. Que escrevemos. Que lemos. Que interpretamos. Que falamos. Passamos a falar sobre nós, sobre nossa saúde, nossos desejos, nossos sonhos, nosso passado. Percebemos a imprescindível necessidade de fazer com que cada um aprendesse a ter controle sobre seus desejos e emoções. Conquistamos a imensa e indescritível liberdade de escolher entre viver e morrer. (Deus já não escolhia a hora de nossa morte.) Conquistamos a imensa e indescritível liberdade de escolher entre agir certo e agir errado. (Deus já não nos dizia o que fazer.) Aprendemos a acreditar que o destino é feito por nós. Que ele depende de cada um de nós e de nossa vontade individual.

Nossos desejos mais íntimos e naturais transformaram-se em amor conjugal. Em fidelidade, propriedade e tradição. Em papai, mamãe, filhos e cachorro. Em família e casa própria. Em empregados domésticos. Em papai no trabalho, mamãe em casa e filhos na escola. Ao mesmo tempo, fomos perdendo a capacidade de gerir nossa própria casa. Precisávamos de ajuda externa para resolver problemas estritamente familiares. Abrimos mão de nossa privacidade para pedir ajuda a especialistas que nos tornariam normais. Eles tinham a função de ditar o conhecimento e as descobertas das ciências. Eles nos conduziriam para a perfeição.

E descobrimos a criança. Sim, a criança. Era nela que estava o germe do homem. O potencial do homem. A criança, desvendada e desnudada, passou a ter desejo. Tornou-se um ser sexuado que não poderia, em hipótese alguma, se masturbar. Passou a ser cuidada. Controlada. Vigiada. Tornou-se um ideal. Um símbolo. Um ser que precisava ser cuidado e desenvolvido. Descobrimos que ela constrói seu conhecimento. Mas, fora de casa, na escola. A criança idealizada e sexualizada tornou-se o arauto de um deus/homem que sabia demais. Era ela, e não mais os anjos, quem tocaria as trombetas no dia da Conquista Final. O dia em que nós, homens, nos tornaríamos aquilo que ainda estávamos construindo, com sangue, suor e lágrimas. Aquilo que ainda não éramos. Não ainda.

Foi então que tudo isso que conquistamos e organizamos e aprendemos e descobrimos e separamos e excluímos e prendemos e transformamos e enquadramos, derreteu. Como bem disse Marx, tudo que é sólido desmancha no ar. O castelo de cartas construído por nós em quase três séculos de autossuficiência e ilusão megalomaníaca ruiu. Entrou em crise depois que a bomba atômica explodiu em Hiroshima e Nagasaki. O poder humano tornou-se tão ou mais destruidor que o poder de Deus e de seu exército de anjos.

Então, alguns homens, assustados com o poder humano, revolucionaram o mundo. E os arautos dessa revolução foram os jovens, ex-crianças. Revoltados com tanta ordem e repressão, com os abusos do poder de homem sobre homem, com tanto patriotismo inexplicável, com tanta discriminação, os jovens exigiram paz e amor. Deram um sonoro não à guerra. E um louco sim ao amor livre. Livre do casamento, da fidelidade, da heterossexualidade. Pediram liberdade de expressão. Liberdade para as mulheres. Liberdade para os negros. Liberdade para os homossexuais. Liberdade para as religiões. Liberdade para as drogas. Liberdade para os estudantes. Liberdade para ser um indivíduo especial dentro da massa. Afinal, já era hora de sermos responsáveis por nós mesmos. Não precisávamos mais ser guiados. We don't need no education. We don't need no thought control. No dark sarcasm in the classroom. Teachers leave these kids alone. Hey, teacher, leave these kids alone. All in all it's just it, another brick in the wall. All in all you're just it, another brick in the wall.

E esses jovens foram sacrificados em praça pública por resistirem ao poder disciplinar e ao biopoder.

E então, depois da bomba, veio a rosa. A rosa de Hiroshima. E o pedido dos jovens revolucionários de 68 transformou-se em realidade. Agora temos, sim, total liberdade. Liberdade que veio depois do dever que veio depois do dogma. Conquistamos nossos direitos, os direitos humanos. Desprendidos, temos todos os direitos possíveis e imagináveis. Pode ser que sim mas também pode ser que não. Tudo tem inúmeros lados. O que não é o que não pode ser o que não é que não pode ser o que não é o que não pode ser que não é. Cabe a cada um de nós resolver qual é o limite para as nossas ações. Quais as oportunidades que podemos selecionar, entre as inúmeras possíveis. Sim, ainda recorremos a especialistas que nos sugerem o que fazer. Mas a decisão é unicamente nossa. Somos ao mesmo tempo vítima, delator, criminoso, juiz e carrasco de nós mesmos. Onde estão os poderosos agora? Em seus jatinhos, em suas mansões escondidas em ilhas particulares, em mundos inacessíveis à grande maioria das pessoas do mundo. Estão em trânsito, de passagem, são cidadãos do mundo. São livres ao extremo. São transparentes de tão livres.

E junto com a liberdade, veio o medo, a insegurança e um leve mal-estar. Uma sensação constante de tristeza e de sentimentos dissonantes. Gostamos de nos entorpecer. Já que a vida é tão difícil, tão desconexa, brindemos. Coquetéis de música, dança, drogas e delírios. E, mesmo assim, nós, seres totalmente perdidos e inseguros, agora temos responsabilidades. Responsabilidade em relação ao meio ambiente, em relação ao nosso corpo, em relação ao que dizemos e divulgamos, em relação à família, em relação aos velhos, em relação às crianças, em relação aos pobres. Temos responsabilidades, mas não temos deveres. E buscamos desesperadamente pela ética. Já que não existem mais sanções rígidas por desobediência a regras, buscamos um norte, um ponto comum onde apoiar nossas responsabilidades. Procuram-se o bem e o mal desesperadamente.

Ao mesmo tempo, somos mais individualistas do que nunca. Farinha pouca, meu pirão primeiro. Antes da responsabilidade em relação ao outro, vem a responsabilidade em relação a si. Entre o eu e o outro, eu. O indivíduo em primeiro lugar. Somos um bando de indivíduos. Consolamo-nos consumindo responsabilidade em gotas vendida como parte de produtos. Calças jeans costuradas por trabalhadores regulares, e não por escravos brancos. Alimentos naturais, sem agrotóxicos que poluem a natureza. Papéis reciclados ao invés de cortar mais árvores. Participamos de passeatas de protesto contra violência, mas temos arma em casa. Compramos bolachas que apoiam o programa contra a fome da empresa x, mas nem sequer olhamos nos olhos das crianças pedintes dos faróis. E, assim, a responsabilidade distorce-se em consumo, egoísmo e paralisia.

Assustados, ficamos sem saber o que fazer quando temos que colocar nossa opinião para os outros que convivem conosco. Justo agora que temos disponível todo um aparato de instrumentos que facilitam a comunicação interpessoal, não sabemos o que dizer uns aos outros. Ao mesmo tempo, monologamos duas horas por semana com nosso psicoterapeuta para conseguir entender o óbvio. Ao mesmo tempo, adoramos os 15 minutos de fama debaixo dos holofotes de um estúdio de TV para propagar nossas intimidades via satélite. O mundo da mídia. Mundo dentro de mundo. Simulacros de mundo. Mundo virtual. Céu e inferno encaixotados e pretensamente reais. Mundo de diversão e de medo. Mundo volátil para nos ensinar a viver. Ao mesmo tempo, podemos conversar com alguém do outro lado do mundo em uma língua comum e amar essa pessoa pelas palavras que ela diz e escreve, mesmo sem nunca tocá-la, cheirá-la, experimentá-la. Viramos gentes virtuais feitas de linguagem e de monólogos criativos e originais que levam a nada. A nada comum. A palavra comum tornou-se pejorativa. Não temos mais comunidade, Estado, governo. O que nos comanda é o mercado.

De trabalhadores compulsivos nos tornamos seres ociosos e incansavelmente em busca de prazer. Carpe diem, dizemos uns aos outros. A vida é curta e isso é muito bom, dizemos outros para uns. Agora, somos consumidores. Quando trabalhamos, somos todos iguais. Gerentes de nós mesmos, perdemos a noção de hierarquia. Nem dividimos mais o mesmo espaço físico deslocado, para trabalhar. Trabalhamos dentro de nossos casulos/casas ligados em rede com outros casulos/casas. Fazemos uma parte de um trabalho coletivo que não conhecemos a origem nem o objetivo final. Trabalhamos por projetos, para nos sentirmos úteis. É impossível abarcar o conhecimento acumulado pelo homem em sua já duradoura passagem pelo mundo. Mas estudamos mais e mais, sem parar, para ganhar diplomas/senhas que nos possibilitam novas etapas de trabalho remunerado e prazeroso. Ao mesmo tempo, vemos nascer o trabalho informal, prestador de serviços, na garagem de cada casa e no porta-malas de cada carro. Trabalho sem fim, sem carreira, sem planejamento, sem objetivo, a não ser sobreviver. Subsistir na cadeia de produção, na cadeia de consumo. Here and now.

Nosso tempo é agora, dividido em partes desiguais e infinitas. Milésimos de microssegundos. Tempus fugit. Daqui a pouco é longe, é muito tempo. Vivemos tudo ao mesmo tempo agora. Velocidade, hiper-realidade, realidade virtual. A realidade física nos enoja. Assusta-nos. Faz-nos sentir mal. Gostamos de fazer dela um espetáculo. Que se repete de diferentes formas de tempos em tempos, curtos e fragmentados, veiculados pela mídia. O grande espetáculo da vida que fica no ar 24 horas por dia, criando paradoxos e revelando verdades e mentiras, que nos confundem e nos seduzem. Violência, sexo, paródia, consumo e medo disponíveis em infinitas imagens e incríveis sons, substituindo a vida, nos distraindo, criando e destruindo cultura, criando e destruindo verdades. E, afinal, quem somos nós? Somos daqui, dali, de longe, de perto, de dentro. Somos parte e todo, nada e tudo, aqui e nenhum lugar. O mundo tornou-se aldeia, tornou-se global, tornou-se centesimal e infinito. E nós, homens, também. Seres do mundo, seres regionais, seres divididos e bipartidos. Somos seres sociais?

A família mudou. Ainda existe papai, mamãe e filhinhos. Mas também existe papai, papai e filhinhos. Mamãe, mamãe e filhinhos. Marido e mulher. Marido e marido. Mulher e mulher. Papai, mamãe, filhinhos dele e filhinhos dela. Papai. Mamãe. Filhinhos. Todos separados. Mesmo vivendo debaixo do mesmo teto. Cada qual em seu cantinho. Cada qual em seu mundinho. Família enquadrada em cubículos, em carros, em TVs particulares, em computadores pessoais. Ou, então, escolhemos colecionar companheiros temporários. Colecionar sensações. Ou, então, vemos o sexo como arma de destruição da família, transformando-o em estupro, em desejo não correspondido. Ao mesmo tempo, famílias sem dinheiro, espalhadas em grande número por aí, são comandadas por mulheres que veem seus filhos indo embora, na rua, pra nunca mais. Mulheres guerreiras e desesperadas, homens solitários e entregues ao deus-dará. Homens sem honra, sem dever, sem responsabilidade, sequer. Homens perdidos. Mulheres cansadas. Crianças abandonadas.

A escola, antes reduto do futuro, do lugar da criação do homem ideal, agora é um grande circo. Professores-clowns que ensinam alunos desinteressados e violentos. Lugar de fazer nada, de se divertir, de despertar o interesse, de projetos sociais. Onde deveria haver ensino de códigos, existe busca da cidadania. Onde deveria haver crítica social, discussão infundada e desrespeito mútuo. O conhecimento mínimo, base para a continuidade do pensamento humano, jogado às traças. Ao mesmo tempo, temos escolas produtos que são vendidas conforme o público pagante. Filhos da classe média institucionalizados em locais especialmente desenvolvidos ao gosto do freguês, formando os futuros indivíduos medrosos e egoístas.

Todos queremos ser crianças, desejamos como crianças, mas não gostamos de cuidar delas. As crianças nos metem medo. Elas aparecem na mídia como diabos revestidos em anjos, como lobos em pele de cordeiro. Elas podem nos matar a qualquer hora. Elas podem se vingar de nossa indiferença. Elas podem se vingar de nossa violência. Elas são tão atraentes sexualmente. Elas são tão sedutoras. Mas elas não nos comovem mais. Elas deixaram de ser o germe do homem, pois elas nascem de nossas incapacidades. Algumas até podem ser especiais, mas essas não contam. Elas aparecem apenas quando são como pequenos seres perfeitos, pequenos ideais de gente. Em geral, as crianças crescem e jogam na nossa cara a nossa incompetência. Elas devem ser ignoradas.

O que conta, agora, é o ácido. Descobrimos que somos seres com DNA. A biogenética nos faz crer que podemos criar vida de vida, sem sexo, gravidez, parto, dor ou sangue. Sem casamento ou ligações perigosas. Sem crianças dúbias que possam desenvolver defeitos durante seu desenvolvimento. Podemos criar cópias de seres humanos perfeitos para todo o sempre. Agora, as crianças deixaram de ser o potencial do homem perfeito. O ácido desoxirribonucleico é o novo arauto vingador do homem. É no ácido que está o potencial do homem, do futuro brilhante que sempre estivemos buscando desde o desaparecimento dos anjos. Sim, do pó viemos. Mas não voltaremos mais a ele. Agora seremos para sempre ácido.

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Bibliografia

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Publicado em 31 de dezembro de 2005

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