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Degradação de recursos hídricos e seus efeitos sobre a saúde humana
Danielle Serra de Lima Moraes e Berenice Quinzani Jordão
Rev.Saúde Pública vol.36 no.3 São Paulo Junho 2002
Introdução
Os ambientes aquáticos são utilizados em todo o mundo com distintas finalidades, entre as quais se destacam o abastecimento de água, a geração de energia, a irrigação, a navegação, a aquicultura e a harmonia paisagística.
A água representa, sobretudo, o principal constituinte de todos os organismos vivos.
No entanto, nas últimas décadas, esse precioso recurso vem sendo ameaçado pelas ações indevidas do homem, o que acaba resultando em prejuízo para a própria humanidade.
Até 1920, à exceção das secas do Nordeste, a água no Brasil não representou problemas ou limitações. A cultura da abundância atualmente prevalecente teve origem nesse período. Ao longo da década de 70 e mais acentuadamente na de 80, a sociedade começou a despertar para as ameaças a que estaria sujeita se não mudasse de comportamento quanto ao uso de seus recursos hídricos. Foram instituídas nesses anos várias comissões interministeriais para encontrar meios de aprimorar o sistema de uso múltiplo dos recursos hídricos e minimizar os riscos de comprometimento de sua qualidade, principalmente no que se refere às futuras gerações, pois a vulnerabilidade desse recurso natural já começava a se fazer sentir.
O Brasil ainda possui a vantagem de dispor de abundantes recursos hídricos. Porém, possui também a tendência desvantajosa de desperdiçá-los.
A grande crise da água, prevista para o ano de 2020, tem preocupado cientistas das diversas áreas no mundo inteiro, e o caminho que poderá conduzir ao caos hídrico já é trilhado, representando, dentre outros, sério problema de saúde pública.
Entende-se que as necessidades de saúde da população são muito mais amplas do que as que podem ser satisfeitas com a garantia de cobertura dos serviços de saúde. Sua dimensão pode ser estimada quando se examinam, por exemplo, a precariedade do sistema de água e de esgotos sanitários e industriais; o uso abusivo de defensivos agrícolas; a inadequação das soluções utilizadas para o destino do lixo; a ausência ou insuficiência de medidas de proteção contra enchentes, erosão e desproteção dos mananciais; e os níveis de poluição e contaminação hídrica, atmosférica, do solo, do subsolo e alimentar.
Atividades antropogênicas e degradação ambiental
As atitudes comportamentais do homem, desde que ele se tornou parte dominante dos sistemas, têm uma tendência em sentido contrário à manutenção do equilíbrio ambiental. Ele esbanja energia e desestabiliza as condições de equilíbrio pelo aumento de sua densidade populacional, além da capacidade de tolerância da natureza, e de suas exigências individuais. Não podendo criar as fontes que satisfazem suas necessidades fora do sistema ecológico, o homem impõe uma pressão cada vez maior sobre o ambiente. Os impactos exercidos pelo homem são de dois tipos: primeiro, o consumo de recursos naturais em ritmo mais acelerado do que aquele no qual eles podem ser renovados pelo sistema ecológico; segundo, pela geração de produtos residuais em quantidades maiores do que as que podem ser integradas ao ciclo natural de nutrientes. Além desses dois impactos, o homem chega até a introduzir materiais tóxicos no sistema ecológico que tolhem e destroem as forças naturais.
A maior parte da água que é retirada não é atualmente consumida e retorna a sua fonte sem nenhuma alteração significativa na qualidade. A água é um solvente versátil frequentemente usado para transportar produtos residuais para longe do local de produção e descarga. Infelizmente, os produtos residuais transportados são frequentemente tóxicos, e sua presença pode degradar seriamente o ambiente do rio, lago ou riacho receptor.
Com isso, em todas as partes povoadas da Terra, a qualidade da água doce natural está sendo perturbada. Os problemas são rapidamente agravados em países tropicais, onde os custos do tratamento de águas poluídas têm compartilhado fundos com outras atividades mais urgentes.
Entre essas atividades emergenciais constantes em países tropicais, destacam-se as doenças provocadas pela água não tratada, o que gera um ciclo de causa-efeito de difícil solução.
As primeiras ameaças antropogênicas aos recursos aquáticos foram frequentemente associadas a doenças humanas, especialmente doenças causadas por organismos e resíduos com demanda de oxigênio. Regiões de grande densidade populacional foram as primeiras áreas de risco, mas águas de áreas isoladas também sofrem degradação.
A rápida urbanização concentrou populações de baixo poder aquisitivo em periferias carentes de serviços essenciais de saneamento. Isto contribuiu para gerar poluição concentrada, sérios problemas de drenagem agravados pela inadequada deposição de lixo, assoreamento dos corpos d'água e consequente diminuição das velocidades de escoamento das águas.
Escassez de recursos hídricos: uma resposta ao descontrole social
À medida que as populações e as atividades econômicas crescem, muitos países atingem rapidamente condições de escassez de água ou se defrontam com limites para o desenvolvimento econômico. A demanda de água aumenta rapidamente, com 70-80% exigidos para a irrigação, menos de 20% para a indústria, e apenas 6% para consumo doméstico. O manejo holístico da água doce como um recurso finito e vulnerável e a integração de planos e programas hídricos setoriais aos planos econômicos e sociais nacionais foram medidas de importância fundamental para a década de 1990 e o são também para o futuro.
Há poucas regiões no mundo ainda livres dos problemas da perda de fontes potenciais de água doce, da degradação na qualidade da água e da poluição das fontes de superfície e subterrâneas. Os problemas mais graves que afetam a qualidade da água de rios e lagos decorrem, em ordem variável de importância, segundo as diferentes situações, de esgotos domésticos tratados de forma inadequada, de controles inadequados dos efluentes industriais, da perda e destruição das bacias de captação, da localização errônea de unidades industriais, do desmatamento, da agricultura migratória sem controle e de práticas agrícolas deficientes. Os ecossistemas aquáticos são perturbados, e as fontes vivas de água doce estão ameaçadas.
Nos últimos 60 anos, a população mundial duplicou, enquanto o consumo de água multiplicou-se por sete. Considerando que, da água existente no planeta, 97% são salgadas (mares e oceanos), e que 2% formam geleiras inacessíveis, resta apenas 1% de água doce, armazenada em lençóis subterrâneos, rios e lagos, distribuídos desigualmente pela Terra. O Brasil detém 8% de toda essa reserva de água, sendo que 80% da água doce do país encontram-se na região Amazônica, ficando os restantes 20% circunscritos ao abastecimento das áreas do território brasileiro onde se concentram 95% da população.
Estima-se que, no início deste século, mais da metade da população mundial viverá em zonas urbanas. Até o ano 2025, essa proporção chegará aos 60%, compreendendo cerca de 5 bilhões de pessoas. O crescimento rápido da população urbana e da industrialização está submetendo a graves pressões os recursos hídricos e a capacidade de proteção ambiental de muitas cidades. Uma alta proporção de grandes aglomerações urbanas está localizada em torno de estuários e em zonas costeiras. Essa situação leva à poluição pela descarga de resíduos municipais e industriais combinada com a exploração excessiva dos recursos hídricos disponíveis, ameaçando o meio ambiente marinho e o abastecimento de água doce.
Com o aumento da população humana e de sua tecnologia, impactos, como os seguintes, diversificaram-se: a) produção de efluentes domésticos; b) erosão seguida de alteração da paisagem pela agricultura, pela urbanização e pelo reflorestamento; c) alteração de canais de rios e margens de lagos por meio de diques, canalização, drenagem e inundações de áreas alagáveis e dragagem para navegação; d) supercolheita de recursos biológicos; e e) proliferação de agentes químicos tóxicos específicos ou não.
Dentro da ideia genérica de poluição, podem ser incluídos vários processos alterados de qualidade, como contaminações bacteriológica e química, eutrofização e assoreamento. As contaminações são originárias principalmente do lançamento de águas residuais domésticas e industriais em rios e lagos. A poluição de um ambiente aquático envolve, portanto, processos de ordem física, química e biológica.
Todavia, no contexto geral, o conceito de poluição não está ainda definido com exatidão e nem divulgado corretamente na esfera da população. Para uns, poluição é a modificação prejudicial em um ambiente onde se encontra instalada uma forma de vida qualquer; para outros, essa forma de vida tem de ser o homem, e outros também a admitem como uma alteração ecológica nociva direta ou indiretamente ligada à higidez humana.
O déficit de água, produto da modificação ambiental cujo processo encontra-se acelerado, atinge a higidez humana não somente pela sede, principal consequência da escassez de água, mas também por doenças e queda de produção de alimentos, o que gera tensões sociais e políticas que, por sua vez, podem acarretar guerras.
Efeitos da degradação de recursos hídricos sobre a saúde humana
Atualmente, a cada 14 segundos, morre uma criança vítima de doenças hídricas. Estima-se que 80% de todas as moléstias e mais de um terço dos óbitos dos países em desenvolvimento sejam causados pelo consumo de água contaminada, e, em média, até um décimo do tempo produtivo de cada pessoa se perde devido a doenças relacionadas à água. Os esgotos e excrementos humanos são causas importantes dessa deterioração da qualidade da água em países em desenvolvimento. Tais efluentes contêm misturas tóxicas, como pesticidas, metais pesados, produtos industriais e uma variedade de outras substâncias. As consequências dessas emissões podem ser sérias.
Quando impropriamente manuseados e depositados, os despejos industriais atingem a saúde humana e a ambiental. Exposição humana (ocupacional ou não ocupacional) a despejos industriais tem conduzido a efeitos na saúde que compreendem desde dores de cabeça, náuseas, irritações na pele e pulmões, a sérias reduções das funções neurológicas e hepáticas. Evidências dos efeitos genotóxicos à saúde, como câncer, defeitos congênitos e anomalias reprodutivas, também têm sido mencionadas. Aumento de incidência de carcinomas gastrointestinais, de bexiga, anomalias reprodutivas e malformações congênitas tem sido encontrado em populações que vivem próximas a perigosos depósitos de despejo.
Os despejos urbanos são, evidentemente, muito variados. Estima-se que as águas residuais urbanas contenham quantidades consideráveis de matéria em suspensão, metais pesados e, em determinadas épocas, cloro procedente da dispersão de sais nas ruas. A qualidade das águas residuais é, consequentemente, muito variável, tendo em certas ocasiões registros de altos índices de demanda biológica de oxigênio. Porém, propriedades físico-químicas, identidade e origens de genotoxinas em águas de despejo doméstico e águas de superfície permanecem desconhecidas.
Sabe-se que os metais são naturalmente incorporados aos sistemas aquáticos por meio de processos geoquímicos. No entanto, nas últimas décadas, têm sido verificadas inúmeras alterações ambientais provenientes, sobretudo, dos processos de urbanização e industrialização.
Certos metais pesados causam forte impacto na estabilidade de ecossistemas e provocam efeitos adversos nos seres humanos. Alguns desses metais são capazes de provocar efeitos tóxicos agudos e câncer em mamíferos devido a danos que causam no DNA. Até mesmo os elementos químicos essenciais à manutenção e ao equilíbrio da saúde, quando em excesso, tornam-se nocivos, podendo comprometer gravemente o bem-estar dos organismos.
Inúmeras pesquisas têm detectado frequência anormalmente alta de neoplasias em peixes em regiões industrializadas. Estudos em plantas e animais selvagens de ambientes impactados por despejos perigosos ou efluentes industriais proporcionam evidência adicional dos efeitos genotóxicos. Aumento estatisticamente significativo de mutações cromossômicas foi verificado em plantas coletadas ao longo de um rio contaminado, quando comparadas a plantas crescendo em região não contaminada. Outros estudos realizados com peixes de águas doce e salgada têm mostrado alta incidência de neoplasias em espécies coletadas em correntes poluídas por despejos industriais.
Foram encontradas, também, elevadas frequências de células aberrantes em sistema-teste vegetal (Allium cepa) tratado com águas de efluente municipal que desemboca às margens do rio Paraguai, no pantanal sul-matogrossense, comprovando a genotoxicidade dessas águas. O referido local de despejo encontra-se muito próximo a um aglomerado humano que, certamente, desconhece o potencial deletério dessas águas.
Tais resultados despertam preocupação do ponto de vista ambiental e em relação ao organismo humano, pois resultados provenientes de bioensaios genéticos são relevantes à saúde humana porque o alvo toxicológico é o DNA, o qual existe em todas as formas celulares vivas. Portanto, pode ser extrapolado que compostos que se mostram reativos com DNA em uma espécie têm o potencial de produzir efeitos similares em outras espécies. Em geral, perturbações do material genético são deletérias para o organismo e podem conduzir a consequências severas e irreversíveis à saúde.
A toxicidade aguda representa o primeiro nível de impacto no ecossistema aquático. Todavia, atualmente está muito bem estabelecido que diversas descargas industriais contêm muitas substâncias que podem não ter efeito agudo, mas que são capazes de reduzir, em longo prazo, a sobrevida de um organismo via danos do genoma de células somáticas e germinativas. Tais danos genéticos têm sido relacionados a desordens genéticas hereditárias e ao câncer.
Muitos indicadores da saúde dos sistemas biológicos têm sido testados nos últimos anos. Cada um tem sensibilidade a diferentes níveis de degradação e a diferentes tipos de estresse antropogênico. Portanto, a complexidade dos sistemas biológicos e a diversidade dos fatores responsáveis pela sua degradação tornam pouco provável que alguma medida tenha sensibilidade suficiente para ser usada sob todas as circunstâncias.
O impacto dos efluentes genotóxicos no ambiente e o significado para a saúde humana são, de fato, difíceis de predizer, porque eles são misturas complexas de substâncias químicas. A interpretação completa de seus efeitos frequentemente requer, de forma complementar, análises químicas dos constituintes. Tais análises podem indicar os componentes dos efluentes que podem persistir e acumular na biota exposta e, então, representar potencialmente um perigo à saúde humana.
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Publicado em 31 de dezembro de 2005
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