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Democracia em cifras na internet

Leonardo Mello

Sociólogo, coordenador do projeto Democratização do Orçamento Público do Ibase

Desde março, qualquer pessoa pode saber o que a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro está fazendo com o dinheiro público, acessando a página do Ibase na internet. O projeto Cidade Transparente está encurtando o caminho entre contribuintes e o orçamento. São relatórios que indicam quem é responsável pelos gastos e seus fins, como serão realizados e até em que parte da cidade vai acontecer. A ideia é que esse seja um bom exemplo para estimular populações de outros municípios a reivindicar o benefício. A seguir, uma análise detalhada sobre o orçamento carioca, baseada nos dados divulgados pelo projeto.

Existem hoje mais de R$ 6 bilhões à disposição da população carioca para que seus problemas sejam resolvidos. Não se trata de um novo banco popular, voltado à concessão de empréstimos às populações de baixa renda. Esse dinheiro todo, pasmem, estava a nossa disposição, mas por falta de informação, deixamos passar a hora em que era decidido seu destino. Depois do dia 31 de dezembro, esses R$ 6,6 bilhões ganharam nome próprio, lei orçamentária anual, vulgarmente conhecida como orçamento.

Por muitos anos, conseguir a lei orçamentária anual consistiu no cerne do esforço de movimentos sociais, ONGs e atores políticos para sua inserção no debate público. Ainda que seja difícil em alguns municípios encontrar o orçamento, nas grandes capitais esse tempo vai longe. Passamos dessa etapa, mas entender o orçamento ainda não é simples como poderia ser.

Não conhecemos orçamentos simplificados, mas podemos indicar uma alternativa. A cidadania é nosso foco, mais precisamente o aprimoramento da qualidade de vida das populações vulneráveis. O orçamento municipal é o instrumento que permite vislumbrar qual a proposta de diálogo do poder público com a sociedade civil. Por diálogo entendemos a forma pela qual serão retirados recursos da sociedade, e o modo pelo qual tais recursos retornarão.

Vivemos em uma sociedade desigual, injusta e diversa. Reconhecer essa desigualdade é aceitar que certas pessoas merecem atenção preferencial do poder público. Nesse caso, direcionar parcelas iguais do dinheiro público a cada cidadão ou cidadã será uma forma cínica de manter excluídas camadas inteiras da população. É até curioso ver que cada carioca teria direito a R$ 1.195, dos quais R$ 223 seriam gastos com dívida, R$ 198 com saúde e R$ 163 com educação. Imagine se todas as pessoas se beneficiassem igualmente dos benefícios gerados com os gastos públicos e mesmo as excluídas fossem obrigadas a gastar 18% de sua parte em dívida?

Que processo faz com que dos R$ 6,6 bilhões, R$ 15 milhões sejam destinados à assistência à criança e ao adolescente, R$ 13 à Terceira Idade e R$ 8 a pessoas com necessidades especiais? Que decisão técnica será essa que, com escassos recursos, opta por tal distribuição? Quem disse que esses montantes são suficientes?

Quantas pessoas idosas podem deixar de ser assistidas por cada portador(a) de necessidades especiais desassistido(a)? Quanto vale cada uma dessas pessoas para a sociedade? Mais do que a produção industrial? Que o turismo? Que a difusão do conhecimento tecnológico? Essas e outras questões são o motivo de haver tanta disputa no processo decisório, que condiciona as escolhas, e a quantidade de emendas que vereadores(as) fazem no orçamento. A tabela a seguir mostra os órgãos mais beneficiados pela distribuição de recursos no município do Rio de Janeiro.

Árvores e frutos

Os orçamentos municipais, se analisados sob a ótica formal da alocação geral dos recursos, serão todos eles muito bem direcionados para a área social, independentemente do partido político do chefe do Executivo. Isso se explica porque há inúmeras regras que devem ser observadas quando de sua elaboração, várias delas estabelecendo parâmetros para a alocação dos recursos para esse ou aquele fim, normalmente relacionados com as áreas de Educação e Saúde, e com o limite de gastos com pessoal, só para citar os exemplos mais consagrados.

As principais secretarias cujo trabalho é direcionado à área Social são as de Educação e Saúde. Estas são facilmente mapeáveis no que diz respeito a seu objetivo. Por outro lado, a Secretaria de Obras e o próprio Gabinete do Prefeito somam juntos 12,7% do total, mas seu objetivo não é dado de forma tão clara ou intuitiva.

Os Encargos Gerais do Município (22,2% do total do orçamento) são em sua maioria dívida, interna e externa (84%), pessoal à disposição de outros órgãos (4,04%), iluminação pública (2,67%), e plano de saúde da administração direta e indireta (2,49%), dentre outros itens menores. Apesar da dívida consumir consideráveis recursos (R$ 1.241 milhões) ou quase 19% do orçamento total, pouco se pode fazer, ou dizer, em relação aos mesmos, uma vez que se tratam de valores destinados a obrigações contratuais da prefeitura.

Para além dessa imagem, aos poucos devemos procurar as árvores, pois nelas encontraremos as ações concretas que foram escolhidas ou eleitas para serem implementadas. Não nos esqueçamos que cada uma dessas ações é fruto de intensa negociação, árduo trabalho de convencimento, diálogo e persistência de atores sociais os mais diversos, que podem ser de lideranças comunitárias aos próprios secretários municipais.

As árvores nos permitirão saber o que secretarias despersonalizadas fazem com os recursos. Se olharmos apenas para as mencionadas, de Obras e o Gabinete do Prefeito, descobriremos que 78% dessa última referem-se à empresa municipal de limpeza e à Guarda Municipal, enquanto que urbanismo e saneamento são as principais áreas em que a Secretaria de Obras direcionará seus recursos.

Sintonia fina é o que permitirá dar sentido às árvores que passamos a olhar. Há inúmeras ações para subvenção social. A diferença entre os recursos destinados às organizações pode chegar a 30 vezes. A maioria das pessoas desconhece que existem tais subvenções, muito menos quem se beneficia com elas. Duas questões importantes se impõem: o que fazem as instituições beneficiárias com tais recursos? Será que merecem essa quantia? Imagino que muitas mereçam mais recursos, mas quando a falta de informações prevalece, o joio fica misturado com o trigo.

Por fim merece atenção a distribuição dos investimentos públicos pelas secretarias municipais. A pessoas leigas aplica-se a explicação um tanto genérica de que os investimentos contribuem para a expansão da capacidade do poder público de oferecer novos serviços, em oposição aos gastos com pessoal ou manutenção em geral. Dado que as populações das cidades tendem a crescer, os investimentos deveriam acompanhar a pressão pelo aumento da oferta de serviços no mesmo ritmo

A Secretaria de Obras (Rio de Janeiro) é aquela que possui mais recursos para investir, mesmo sendo apenas a 6ª secretaria em quantidade geral de recursos. Saúde e Educação, juntas, chegam a quase 13% do total dos investimentos, mas a preocupação é saber se tal montante é suficiente ou eficiente para fazer face às necessidades da população.

O que importa saber de qualquer orçamento é:

  • em quanto os serviços públicos serão expandidos para proporcionar a universalização e o acesso das políticas sociais às populações mais vulneráveis; e
  • em que medida há disposição em se aprimorar as políticas sociais na sua qualidade.

Estamos acostumados a falar em democratização do orçamento público, do processo de elaboração dos orçamentos e de decisões sobre as políticas públicas, mas temos pouca participação popular. Não existe participação sem legitimidade e não existe democracia sem participação. O dilema nos leva a discutir o divórcio que se estabeleceu entre representantes formais e a população. Como participar adequadamente se há grande carência de conhecimentos mínimos para que tal participação seja consequente?

É importante compreender que não existe algo pronto e acabado ao qual se possa denominar de democracia perfeita. Existem processos democráticos, ideia essa apoiada pelo reconhecimento da democratização como processo, ao invés de qualidade estática. A qualificação da participação é uma aposta do Ibase, e para tanto lançamos a Campanha Transparência nos Orçamentos Municipais, amparada no Cidade Transparente e no curso de educação à distância em Orçamento Público.

Texto publicado no Boletim Orçamento e Democracia n.20, Maio-Ago 2002.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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