Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.
Discriminações e Violências
Leila Linhares Barsted
Diretora da organização não-governamental CEPIA, Conselheira do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Rio de Janeiro (CEDIM), Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros.
In: Mulheres e Direitos Humanos/ Cadernos CEPIA nº2
A Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Beijing (1995), em seu diagnóstico sobre o contexto mundial, aponta para a feminilização da pobreza, a contínua violência contra a mulher e sua exclusão generalizada das esferas de poder. Constata, também, os efeitos da recessão econômica sobre o trabalho feminino, levando as mulheres a aceitarem empregos precários, mal remunerados e desvalorizados.
De fato, as políticas e os programas econômicos mundiais e nacionais, caracterizados pelos processos de ajustes estruturais, se acarretam consequências perversas para os homens, têm incidido de forma ainda mais penosa sobre as mulheres.
A Plataforma de Ação de Beijing constata que a vida e as aspirações das mulheres são restringidas por atitudes discriminatórias e estruturas sociais e econômicas injustas. Endossando a perspectiva ampla sobre os direitos humanos, a Plataforma considera que a emancipação da mulher é uma condição básica para a existência de justiça social e, nesse sentido, não deve ser encarada como um problema apenas das mulheres, mas deve envolver toda a sociedade.
No Brasil, como em grande parte dos países em desenvolvimento, os dados estatísticos sobre as condições de homens e mulheres refletem as disparidades sociais, muito distantes da igualdade legal duramente conquistada. Assim, apesar de estarmos entre as dez nações mais ricas do mundo, os indicadores sociais nos mostram um quadro de extrema desigualdade no acesso à riqueza, à saúde, à alimentação, à educação, ao trabalho, ao lazer e à própria justiça.
O Relatório sobre Desenvolvimento Humano no Brasil, elaborado pelo PNUD/IPEA (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2000.), ressalta que o Brasil, em 1998, registrava um dos maiores graus de desigualdade social no mundo. Enquanto para a grande maioria dos países a renda de um indivíduo do grupo dos 20% mais ricos é, em média, até dez vezes maior do que de um indivíduo do grupo dos 20% mais pobres, no Brasil, essa proporção é infinitamente mais injusta - a renda média dos 20% mais ricos é 25,5 vezes maior que a renda média dos 20% mais pobres, ficando atrás de alguns poucos países (Guatemala; Guiné-Bissau; Jamaica; Paraguai; República Centro-africana e Serra Leoa.).
Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), órgão de pesquisa governamental, indicam que o crescimento da economia brasileira não beneficiou igualmente todos os grupos. Segundo o Instituto, no Brasil, em 1999, existiam 37 milhões de pobres, o que representa 22,6% da população (IPEA, 2000). As desigualdades sociais são acrescidas de fatores que interferem sobre o poder de barganha dos indivíduos e que explicam a existência de diferenciação de salários. Entre esses fatores incluem-se gênero e raça. O Relatório indica que esse fenômeno faz com que trabalhadores idênticos, do ponto de vista da produtividade, recebam remunerações diferentes por apresentarem uma dessas características.
A exclusão social se revela não apenas pela desigualdade na distribuição da renda nacional mas, também, pelas discriminações em razão de sexo, raça/etnia, idade, condição social, entre outras. Nesse sentido, apesar de termos uma legislação que proclama o reinado da igualdade perante a lei, convivemos, ainda, com discriminações e exclusões sociais inaceitáveis para um país democrático.
No que diz respeito à situação das mulheres, apesar de avanços constitucionais significativos no reconhecimento de plena igualdade entre os sexos, e avanços sociais importantes como o aumento da participação da mulher na população economicamente ativa, ainda vigoram, com muita força, padrões, valores e atitudes discriminatórias que podem ser identificados pelos dados estatísticos oficiais.
Assim, por exemplo, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1990 as mulheres recebiam, em média, apenas 63% do salário dos homens. Na esfera política, do total dos deputados federais, em 1998, apenas 7,6% eram mulheres, o mesmo ocorrendo no Senado Federal. No conjunto dos mais de cinco mil municípios brasileiros, em 2000, existiam apenas 317 mulheres prefeitas (IBAM, 2000). Apesar das mulheres se destacarem em todas as profissões, não há sequer uma Ministra de Estado, somente uma representante do sexo feminino no Supremo Tribunal Federal, no total de 10 membros, e duas no Superior Tribunal de Justiça, no conjunto de 33 membros.
Outros dados oficiais demonstram que é ainda muito alta a mortalidade materna no Brasil, comparável aos países extremamente pobres do continente africano. Em média, morrem 124 mães para cada 100.000 nascidos vivos, sendo que em estados mais pobres do país esse número chega a 300 óbitos maternos.
Os dados das Secretarias de Segurança Pública de diversos estados da federação confirmam o Suplemento Especial do IBGE/PNAD de 1988 sobre "Justiça e Vitimização", revelando que as mulheres constituem 66% das vítimas das agressões físicas cometidas por parentes, em especial por marido ou companheiro, no espaço do lar.
Apesar do Superior Tribunal de Justiça, em decisão histórica de 1991, ter rejeitado como argumento jurídico a tese da "legítima defesa da honra", classificando-a como a defesa da "autovalia, da jactância e do orgulho do Senhor que vê a mulher como propriedade sua", em muitos estados brasileiros os Tribunais de Júri continuam a absolver homens que assassinaram suas mulheres com esse mesmo argumento.
Grande parte das discriminações e violências cometidas contra as mulheres é estimulada pela complacência ou indiferença social frente a essas atitudes e, apesar de alguns avanços importantes implementados por ação governamental, em muitos casos, o Estado ainda mostra-se omisso diante do desrespeito aos direitos das mulheres e, mesmo, diante da violência contra as mulheres.
Uma avaliação crítica da nossa sociedade e de suas instituições nos permite identificar, medir e analisar o tratamento diferenciado dado a homens e mulheres, brancos e negros, conforme destacado, respectivamente, nos Quadros I, II, III e IV.
Brasil | Fonte/Ano | Homens | Mulheres | Total |
---|---|---|---|---|
1. População | Censo 2000 | 78.470.936 | 81.865.535 | 160.336.471 |
2. Saúde | ||||
Esperança de vida ao nascer | PNAD 1999 | 64,6 anos | 72,3 anos | 68,4 anos |
Taxa de mortalidade infantil | PNAD 1999 | 39,4/mil | 30,0/mil | 34,1/1.000 |
Taxa de mortalidade infantil abaixo de 5 anos(') | PNAD 1996 | 65,5/mil | 56/mil | 60,7/1.000 |
Mortalidade materna | PNAD 1989 | - | 124/ 100 mil | - |
3. Educação | ||||
Média de anos de estudo das pessoas de 10 anos ou mais de idade | PNAD 1999 | 5,6 anos | 5,9 anos | 5,7 anos |
Taxa de escolarização das crianças de 7 a 14 anos | PNAD 1999 | 95,3% | 96,1% | 95,7% |
Média de anos de estudo das pessoas de 10 anos ou mais de idade | PNAD 1999 | 5,6 anos | 5,9 anos | 5,7 anos |
Taxa de escolarização das crianças de 7 a 14 anos | PNAD 1999 | 95,3% | 96,1% | 95,7% |
4. Trabalho | ||||
PEA - População Economicamente Ativa | PNAD 1999 | 46.480.921 | 32.834.366 | 79.315.287 |
População Ocupada | PNAD 1999 | 42.813.014 | 28.863.205 | 71.676.219 |
Taxa de atividade por pessoa de 15 a 65 anos (do total de pessoas economicamente ativas) | PNAD 1999 | 73,8% | 49,0% | 61% |
Chefia familiar | PNAD 1999 | 74% | 27% | - |
Taxa de desocupação | PNAD 1999 | 8,1% | 12,3% | 9,9% |
(*) Não incluiu área rural de Rondônia, Acre, Amapá, Roraima, Pará e Amazonas. | ||||
5. Renda | ||||
Rendimento médio mensal nominal das pessoas de 10 anos ou mais de idade | PNAD 1999 | R$436,00 | R$197,00 | R$313,00 |
Diferencial de renda das mulheres em relação aos homens | PNAD/IPEA 1999 | 63% dos salários masculinos |
Algum Método | Esterilização Feminina | Esterilização Masculina (*) | Pílula | Não usa Métodos | |
---|---|---|---|---|---|
BRASIL | 76,7 | 40,1 | 2,4 | 20,7 | 23,3 |
Região Norte | 72,3 | 51,3 | 0,0 | 11,1 | 27,7 |
Região Nordeste | 68,2 | 43,9 | 0,4 | 12,7 | 31,8 |
Região Centro-leste | 77,8 | 38,8 | 2,6 | 21,8 | 22,2 |
Região Sul | 80,3 | 29,0 | 3,5 | 34,1 | 19,7 |
Região Centro-oeste | 84,5 | 59,5 | 1,8 | 16,1 | 15,5 |
Rio de Janeiro | 83,0 | 46,3 | 1,0 | 22,5 | 17,0 |
São Paulo | 78,8 | 33,6 | 5,3 | 21,4 | 21,2 |
(*) Com base nas respostas das mulheres pesquisadas, isto é, inclui método dos parceiros. Não há dados atualizados para essa pesquisa.
Fonte: Brasil: Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde, 1996. Rio de Janeiro: Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar no Brasil - BENFAM, 1997.
Indicadores | Situação |
---|---|
Cúpula Poder Judiciário (2001) | 1 Ministra no STF (10%) 2 Ministras no STJ (6%) |
Câmara dos Deputados (1998) | 7,6% |
Senado Federal (1998) | 7,41% |
Executivo Municipal (2000) | 317 mulheres prefeitas, em 5.561 municípios (5,7%). |
Fonte: Câmara dos Deputados, 1998; Senado Federal, 1998; IBAM, 2000; STF e STJ.
Indicador | Brancos | Negros/pardos |
---|---|---|
Distribuição da população | 54% | 45,3% |
Mortalidade infantil | 37,3/mil | 62,3/mil |
Mortalidade de menores de 5 anos | 45,7/mil | 76,1/mil |
Média de anos de estudo das pessoas de 10 anos ou mais | 6,6 anos | 4,6 anos |
Domicílios por condições de saneamento segundo a cor do chefe: água tratada | 81% | 64,7% |
Domicílios por condições de saneamento segundo a cor do chefe: esgoto | 73,6% | 49,7% |
Fonte: IBGE/PNAD, 1996 e 1999.
Trata-se de compreendermos como a construção social das diferenças entre homens e mulheres, brancos e negros, pode ter contribuído para uma distribuição desigual do poder, para a geração de discriminações, especialmente as discriminações contra as mulheres, incluindo a violência física, psicológica e sexual.
Constatar a existência dessas discriminações e atuar de forma prepositiva para sua superação tem sido uma árdua tarefa assumida pelo movimento de mulheres no Brasil. As diversas instituições da sociedade civil, em particular as ONGs, os grupos e o movimento autônomo de mulheres têm um compromisso histórico na defesa dos direitos humanos em geral e, em particular, dos direitos humanos das mulheres.
As ações desses setores da sociedade não têm ficado restritas às denúncias contra as descriminações e a violência de gênero. As organizações não-governamentais e o movimento de mulheres têm sido ativos no levantamento de dados que dão visibilidade a esses fenômenos, atuando na formação/informação da opinião pública para romper com a indiferença e a cumplicidade social que propiciam as práticas e os valores discriminatórios.
Retomando a Plataforma da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, sobressaem de seu texto o desafio e o compromisso dos Estados signatários de garantir o seu sucesso, através do firme empenho dos governos e da sociedade na busca de um desenvolvimento social que leve em conta a superação da pobreza e a manutenção do desenvolvimento e da justiça social.
Bibliografia
ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito International Público. 11ª edição. Ed. Saraiva, 1993.
BARSTED, Leila L., BOCAYUVA, Helena e PITANGUY, Jacqueline. Mulher em Dados no Brasil. Santiago: FLACSO/ INSTITUTO DE LA MUJER, 1993.
BARSTED, Leila L. Uma Vida sem Violência é um Direito Nosso. Documento elaborado para as Agências das Nações Unidas no Brasil/ Secretaria Nacional dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça. Brasília, 1998.
CEPAL. Projeto de Programas de AçãoRegional para as Mulheres daAmérica Latina e do Caribe, 1995-2000. Mar Del Plata, Argentina,1994.
CFEMEA. Boletim do Centro Feminista de Estudos e Assessoria. Ano III, n.21, 22, 23 e 24, Brasília, 1994; e Ano IV, n.5, Brasília, 1995.
DIEESE/ INSPIR/ AFL-CIO. Mapa da População Negra no Mercado de Trabalho. São Paulo: INSPIR (Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial), 1999.
HERINGER, Rosana e PITANGUY, Jacqueline. Direitos Humanos noMercosul. Rio de Janeiro, 2001.
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Rio de Janeiro, 1996 e 1999.
MONGELA, Gertrude. Statement by Mrs. Gertrude Mongela, Assistant-Secretary General and Secretary General of the Fourth World Conference on Women to the Regional Preparatory Conference For Latin America and Caribbean. Mar Del Plata, Argentina, 1995.
ONU. World Conference on Human Rights: The Vienna Declarationand Programme of Action. New York: United Nations Department of Public Information, 1993.
____. Women: Challenges to the Year 2000. New York: United Nations, 1991.
____. La Libertad del Individuo ante la ley: Analisis del articulo 29de la Declaracion Universal de Derechos Humanos. Serie Estudios, n. 3. New York: Naciones Unidas, 1990.
Agradeço a Rosana Heringer pelo apoio na atualização dos dados estatísticos
Publicado em 31 de dezembro de 2005
Novidades por e-mail
Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing
Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário
Deixe seu comentárioEste artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.