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Educação, cidadania, exclusão
Giovânia Costa
É preciso plantar a semente da educação para colher os frutos da cidadania.Paulo Freire
O lema da moda é educar para a cidadania. Slogan presente em todos os discursos oficiais e não-oficiais. Seria uma irresponsabilidade nos colocarmos contra esse princípio, que vem sendo defendido, não só no Brasil, mas em todas as nações, como um imperativo para que, pela educação, conquistemos melhoras na condição de vida de milhares de excluídos que vivem à margem da sociedade.
Essa observação inicial é para que fique bem claro que não estamos contra a proposta, muito pelo contrário. É por nos afinarmos com esse discurso que queremos discuti-lo. Para isso, pretendemos fazer uma breve reflexão, articulando três termos: educação, cidadania e exclusão.
Educação é um conceito muito mais amplo que educação escolar. Mas aqui vamos nos restringir ao sentido de educação escolarizada, por entendermos que o momento brasileiro prioriza a articulação entre educação e cidadania nos discursos oficiais das políticas públicas e os sistemas educacionais formais são, muitas vezes, privilegiados nesses discursos. Fazemos, no entanto, um aparte, pois entendemos que outros espaços podem e, por vezes, atuam com maior eficiência na educação para a cidadania.
Mas, se escolhemos a educação formal como cumes dessa reflexão, para fazer eco aos discursos que consideram que é atribuição da educação formar cidadãos, de que cidadania estamos falando?
Cidadania se conjuga com democracia e talvez, uma viagem à Antiguidade Clássica possa nos ajudar a entender melhor o termo. Na Grécia antiga, cidadania se referia ao direito e também ao dever de determinados atores em participar das decisões da polis. O melhor cidadão era aquele que atuava para o bem-comum. O poder social era partilhado por todos, igualmente - deixando de lado o contexto e as considerações de que nem todos eram considerados cidadãos. Na modernidade, segundo o artigo de Lílian do Valle, professora da pós-graduação da UERJ e que fala em acordo com Walter Benjamim, o liberalismo acaba por descartar a igualdade e valorizar a liberdade. Assim, a ideia de liberdade vai se diferenciando da ideia de liberdade da Antiguidade.
Na modernidade, liberdade se identifica com a possibilidade de segurança dos direitos do indivíduo nas questões privadas. Essa diferença, que acentua os direitos e não mais os deveres, se faz necessária para ressaltarmos a ideia de cidadania como um argumento de controle social. E ressaltamos, para deixar claro, que não é o sentido que queremos trazer para essa reflexão.
Ser cidadão não é somente gozar de direitos políticos. É assumir a dimensão política do ser humano e participar da sociedade ativamente. Mas como fazer isso preso ao mundo das necessidades básicas que restringem grande parte da humanidade? Essa restrição tem, aqui, um duplo sentido: quantitativo e qualitativo. No sentido quantitativo porque são muitos os que se encontram presos à mera sobrevivência e qualitativo, porque não atuam politicamente, o que significa ter sua humanidade tolhida.
Passamos, então, a conjugar os termos educação e cidadania, num sentido político da educação, no qual formar o cidadão para a cidadania não é suficiente sem antes instituir o que seja essa cidadania e assumir a impossibilidade de muitos de exercê-la. Chegamos, assim, ao terceiro termo que queremos analisar: a exclusão.
O conceito ganha força a partir da década de 1990, juntamente com a sua antítese, a inclusão. Educação, cidadania e inclusão passam a ser imperativos necessários a qualquer país na era planetária. A localização temporal do uso dos termos é proposital para chamar a atenção para o fato de que, a década anterior foi fortemente marcada pelo discurso de redemocratização, denunciador dos interesses econômicos que se opunham aos interesses sociais. Esse discurso se dava por intermédio de palavras como desigualdade e pobreza, mas com a hegemonia do discurso neoliberal, os termos passam a ser substituídos por novos, como foi denunciado por Roberto Carneiro: "o novo nome da pobreza é a exclusão".
Mas será, simplesmente, uma troca de palavras para falarmos de velhos problemas, ou a linguagem indica mudanças de concepção e de abordagem? A doutora em educação Eneida Shiroma, que atua na Universidade de Santa Catarina, considera que a substituição é um deslocamento do foco de responsabilidade do estado para o indivíduo. Inclusão apela para a solidariedade, caridade, voluntarismo (trabalho não-remunerado). Ela cita Gray. J. que defende que a inclusão nada tem a ver com igualdade ou redistribuição e sim, significa elevar os pobres acima do limite de padrão mínimo.
Na verdade, a sociedade da informação não assistiu à melhoria das condições de vida da humanidade a partir dos avanços tecnológicos, ao contrário, bolsões de pobreza em todo o mundo alimentam e envergonham as nações ricas. Os excluídos são uma ameaça e, por isso, a unanimidade do conceito de inclusão. Mas como viabilizá-la?
A resposta é: pela educação. É isso que se espera na conjugação dos termos educação, cidadania e exclusão. Exclusão é o oposto de cidadania. E o sistema educacional é chamado a participar. A partir daí surge o tema que nos é tão repetido: educar para a cidadania.
O perigo que a moda carrega é utilizar a ideia de cidadania no seu sentido de moldagem do indivíduo para a reprodução de um desempenho social absolutamente nefasto. Precisamos estar sempre atentos para o papel da educação formal que age, enquanto processo de ensino-aprendizagem e aquisição de cultura, muitas vezes (e por que não dizer, na maioria das vezes), como um grande sistema de reprodução cultural. Educar para a cidadania pode ser: educar um sujeito "participativo", no sentido de colaborador do sistema, que ensina a passividade, ou educar para ser um sujeito crítico. Essa é a educação para uma nova cidadania.
A comissão Internacional para a Educação no séc. XXI, no relatório organizado por Delors, indica quatro pilares para a educação do futuro: aprender a conhecer, a fazer, a ser e a viver juntos.
Nessa nova missão da escola, a ideia de cidadania necessita renascer, não como um conceito que é aprendido. Cidadania não é uma lição a ser ensinada. È uma postura que precisa ser estimulada. Postura essa que possa fazer nascer em cada um, o sentimento do que é viver em prol do bem-comum. O conceito se refere sim a direitos e deveres civis e políticos, mas não podemos nos esquecer de que é necessário que esses direitos sejam pensados por meio de valores éticos. É necessário conjugar cidadania com diversidade, justiça, dignidade.
Não é uma opção ser cidadão. É uma possibilidade que dependerá de acessos econômicos, culturais e sociais. É ter acesso à saúde, lazer, educação de qualidade.
Cidadania é um espaço de construção compartilhado. E, aí, precisamos sair dos muros da escola, ainda que a escola ocupe um local, potencialmente, privilegiado na construção de uma postura crítica para essa construção. Mas precisamos estar atentos, a todo o momento, para o papel seletivo da educação, pois as oportunidades educacionais não são as mesmas para todos. Se a educação pode estar a serviço de um desenvolvimento humano que favoreça a inclusão, também pode estar reforçando a exclusão pela heterogeneidade de possibilidades que sabemos que acontecem na sociedade.
A educação para a nova cidadania acontece por intermédio dos currículos oficiais e, para isso, é necessário que os currículos sejam revistos. Acontece também em todos os demais espaços escolares e tudo necessita de um olhar novo para que saiamos do quadro de fracasso da instituição escolar no qual, sabemos, o país está imerso.
É necessário ensinar às nossas crianças e jovens não apenas a ler e a escrever, mas a olhar o mundo a partir de novas perspectivas. Ensinar a ouvir, falar e escutar, a desenvolver atitudes de solidariedade, a aprender dizer não ao consumismo imposto pela mídia, a dizer não ao individualismo e sim à paz.
Educar para a cidadania é adotar uma postura, é fazer escolhas. É despertar para as consciências dos direitos e deveres, é lutar pela justiça e não servir a interesses seculares. É uma urgência que grita e que deveria ecoar nos corações humanos e não nos alarmes das propriedades que tentam proteger a vergonha do que a civilização humana construiu. È ter no horizonte a consciência de que incluir, educar para a cidadania é muito mais do que transformar todos em consumidores eficazes. Essa é a armadilha neoliberal presente não somente no mundo da economia. A escola não pode ser a "fábrica" a esse serviço. Como alerta Jurgo Torres Santomé: "a escola se tornou um dos principais espaços por meio do qual os neoliberais e neoconservadores tratam de construir as novas subjetividades econômicas, individualistas e conservadoras que ajudarão a transformar cidadãos em consumidores".
Acredito que educar para a nova cidadania é a utopia dos que tem na educação a sua trincheira, mas talvez isso só seja possível quando a utopia for assumida por todos e, assim, possamos fazer um projeto de escola que valorize a pessoa humana, a dignidade necessária para todos.
Para alcançarmos isso, não podemos ficar somente no ensinar para a cidadania. É preciso construir o espaço de se educar na cidadania. E nesse sentido, não é somente a preposição que muda. Muda a postura do professor que de cidadão que somente exige seus direitos passa a lembrar também dos seus deveres. Que não se contenta com "fingem que me pagam e eu finjo que trabalho". Que se posiciona na luta. Que recupera a figura importante - que é - na formação de uma sociedade mais justa. Que saiba que ser cidadão é alcançar a dimensão política do homem, ser cidadão é condição fundamental para exercermos nossa humanidade. E isso não se alcança sem um posicionamento claro e atuante. Posicionamento que deve ser exposto tanto na sala de aula, como reflexo de um planejamento sério e comprometido, mas também nas conversas com os colegas durante os intervalos. Nas reuniões das entidades que decidem por nós e decidem com quoruns baixíssimos. É conjugar nossos direitos e fazer com que aconteçam, com que se ampliem, e que isso possa ser pensado não a partir dos benefícios individuais, mas também no bem-comum de toda a comunidade.
A educação para a cidadania constitui um conjunto complexo que abraça, ao mesmo tempo, a adesão a valores, a aquisição de conhecimentos e a aprendizagem de práticas na vida pública. Não pode, pois ser considerada como neutra do ponto de vista ideológico".Delor
Referências Bibliográficas:
- VALLE, Lílian. Modelos de cidadania e discursos sobre a educação. TEIAS: Revista da faculdade de educação/UERJ- n- 3( jun.2001)
- SHIROMA, Otto Eneida. A outra face da Inclusão.TEIAS: Revista da faculdade de educação/UERJ - n.3 (jun. 2001).
- GRAY, J. After social democracy. In: A outra face da inclusão.
- SANTOMÉ, Torres Jurgo. A instituição escolar em tempos de intolerância.TEIAS: Revista da faculdade de educação/UERJ- n.3 (jun. 2001).
Publicado em 31 de dezembro de 2005
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