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Educação: Quantidade x Qualidade (Educar-se é Aprender a Pensar)

Giovânia Costa

Graduanda em Filosofia pelo IFCS (UFRJ)

Um dia virá em que só se terá um único pensamento: a educação.

Friedrich Nietzsche (In: DIAS, 1993)

Introdução

Educação é um tema mobilizador tanto na realidade brasileira quanto na do mundo. De algum modo todos e tudo se relacionam com processos de aprendizagem. O homem nasce aprendendo (aqui não interessa se o nascimento é o feto ou o bebê, tanto faz.). A educação lida diretamente com a vida. Não seria exagero afirmar que o reconhecimento da educação como área de reflexão e atuação como sendo prioridade é consensual.

Não encontraremos hoje em dia ninguém que não seja um defensor da educação. Em qualquer país, em todas as escalas sociais, nas falas dos políticos, o tema é presente: A necessidade de uma melhor educação. A educação como direito de todos!

Mas de que educação estamos falando? O que é e para que serve?

Esta será a reflexão deste trabalho. Escrevo de dentro e para uma instituição de ensino, e como tal o que penso-escrevo será julgado, avaliado e a este trabalho será conferida uma nota. Estamos chegando ao fim do ano e em todos os estabelecimentos de ensino o ritual se repete. É hora de prova! A partir desse ritual podemos refletir na direção da pergunta: O que é educação e para que serve?

Em todo processo educativo, ou seja, que envolve uma aprendizagem, formas de avaliação são necessárias. Mas será que hoje, ou em qualquer tempo, as escolas dispõem de processos de avaliação que possam resultar em ações educativas? Avaliações são realmente parte do processo? De uma avaliação final o que sobra além da nota?

Na tarefa de avaliador, o professor é onipotente. Esse domínio significa poder sobre os alunos. É a ele atribuída a competência de julgar, ele é o mestre das notas. Elas são dadas de acordo com o seu caráter e a sua consciência. Momento difícil esse!

Entretanto, nos parece claro que na realidade atual a avaliação está a serviço de uma pedagogia em que o autoritarismo é um elemento necessário para a conservação de um determinado modelo.

Nietzsche criticava o modelo educacional vigente na Alemanha em sua época. Suas reflexões, que nos parecem absolutamente atuais, nos apoiarão no caminho de pensar os modelos presentes hoje no Brasil.

O pensamento que buscamos não se alinha a nenhuma política educacional, de transformações legais. Pelo menos, não num primeiro momento. É necessário que pensemos antes o que estamos chamando de educação.

Queremos, com certeza, uma educação de qualidade. Mas mesmo os grandes educadores nos parecem por vezes se afastar da questão da "finalidade de uma educação", o que determinaria de imediato uma mudança na concepção que temos desse conceito (educação de qualidade) e consequentemente uma mudança nas nossas práticas educacionais.

Nessa introdução, usamos a avaliação como elemento detonador para pensar sobre o modelo educacional praticado, se não por todos, pela maioria dos estabelecimentos de ensino, de qualquer nível. O questionamento nos parece levar a dois caminhos distintos, dois sentidos diversos sobre o que é educação e para que serve.

Estamos inseridos num sistema de exames ou num processo de ensino e aprendizagem que levaria a uma autonomia do ser que se educa, em lugar de uma nota que se presta a convenções e manipulações de poder?

Avaliar implica em atitude reflexiva, ética e com alguma finalidade. O que pode ser avaliado? Os conhecimentos adquiridos? A criatividade? A capacidade de memorizar? O aumento da possibilidade de raciocinar e elaborar um pensamento próprio? Formulando mais diretamente: estamos preocupados com a qualidade da educação ou com a quantidade?

Educação para todos!

Educação como direito de todos. Essa parece ser uma grande conquista dos modelos vigentes.

Nietzsche denunciava as correntes defensoras de uma ampliação da educação a qualquer preço, temendo um enfraquecimento da cultura.

Hoje, busca-se a universalização da educação. No Brasil, praticamente todas as crianças frequentam a escola. É um direito delas e um dever dos pais e do Estado.

O pensamento que leva a isso, no entanto, é bastante utilitarista. É a teoria do "capital humano" - melhorando a educação melhora-se a qualidade de vida das pessoas. A educação é um passaporte para a ascensão social.

Ora, isso significa que quem se "educa" é mais capaz de servir ao mercado, ao capital. Educação é um degrau social. Educar-se nesse sentido é aprender, é adestrar-se dentro da sociedade e para a sociedade. Assim, a "educação" serve para a manutenção da ordem, caminha no sentido do progresso. Por isso, aqui a preocupação é quantitativa. Formam-se massas para defender os interesses do Estado.

Com Nietzsche pensamos no absurdo de deixar que a quantidade, o número, seja o critério. Mas isso aponta para a dificuldade de quem, ou quantos, deveriam receber a tal educação.

Tal contradição só pode existir dentro desse modelo utilitarista. Educar-se para melhor adaptar-se às nefastas condições externas impostas ao ser humano. Esse modelo educacional reforça os mecanismos de poder que criaram tais condições e ilude afirmando que a "educação" é o passaporte para se libertar delas. As escolas com seus sistemas de avaliação que nada dizem, critérios acadêmicos, numéricos, vazios de vida, contribuem para a manutenção desses mecanismos de poder e tentativas de controle sobre a vida.

Nada de certo há na "grande verdade" aprendida nos bancos das escolas: que o bom aluno, que a excelência escolar é garantia de um bom desempenho na vida. A não ser que entendamos viver bem como ganhar mais dinheiro, por exemplo.

Rubem Alves, filósofo-educador, conta em uma de suas crônicas o relato de um professor da Faculdade de Medicina da Unicamp que por ocasião do vestibular falou:

Pena. Muitos dos que vão passar com as maiores notas não conseguirão ser bons médicos. Uma inteligência que foi treinada para descobrir uma resposta certa entre cinco dificilmente consegue lidar com os problemas da clínica médica. A vida não é vestibular.

Concordamos totalmente com essa afirmação.

Essa "educação", classificatória, acumulativa, de conteúdos curriculares que não conseguem estabelecer nenhuma conexão com a vida nem entre eles mesmos, fragmentada em saberes estanques, acaba por destruir, aleijar a verdadeira inteligência humana. A criatividade se vê reprimida pela repetição, a singularidade morre em nome da média. Onde fica a individualidade nesse sistema?

Como a tua vida, que é individual, adquire o mais alto valor, o mais profundo significado?
(Nietzsche)

"Educar-se a si mesmo"

A saída seria a não-adaptação. Uma educação libertadora que possibilitasse ao homem não perder o contato consigo mesmo, não perder seu contorno próprio para cair na vulgarização de ser um bom cidadão.

O encontro com a vida não pode se dar servindo a outrem. A vida é única e viver ganha sentido no encontro com a singularidade.

Nos processos educacionais que em geral se pautam pela média, a singularidade é abafada. Essa "educação" é quantitativa. Não somente porque a preocupação é se todos estão tendo acesso, mas também porque se preocupa com quantos anos passamos na escola, quanto aprendemos, se temos média para passar de estágio. Essa educação, ainda que camuflada por belas palavras e muitas vezes defendida por verdadeiros amantes da cultura, não se deu conta de que a verdadeira questão não é se educamos todos ou só alguns privilegiados. Não existem privilegiados quando a proposta defendida mata a vida.

O chamado para a vida na perspectiva nietzschiana se dá na escuta de si mesmo, ou seja, no desenvolvimento de cada um a partir da singularidade.

Isso não deve ser confundido com o encontro de um "eu" metafísico. Conhecer a si mesmo não é acessar nenhum "eu" essencial, fixo. Também não é "mergulhando para dentro" que o encontro com o "eu" nietzschiano pode se dar. Não existe um "eu" dentro de mim.

Se é verdade que a lebre tem sete peles, o homem pode despojar-se de setenta vezes sete peles e ainda não poderá dizer: eis realmente o que você é, não é mais um invólucro.
(Nietzsche)

A lei essencial que nos dita a vida, o singular-eu é uma construção contínua e permanente que se constitui no diálogo com a própria vida.

Esse diálogo com a vida, que é o próprio viver, é um longo e às vezes doloroso processo de "educar-se a si mesmo".

Mas educar-se a si mesmo seria caminhar sozinho, sem mestres? Não.

Segundo Rosa Dias, o próprio Nietzsche sonhava em encontrar um filósofo que o ajudasse a encontrar sua "força central":

Um verdadeiro filósofo, capaz de elevá-lo acima da deficiência do tempo presente, alguém que o ensinasse a ser simples e honesto no pensamento e na vida. (...) Embora tal filósofo-educador lhe faltasse, ele continuava procurando-o.

Mas o mestre não pode ensinar o seu caminho. Somente despertá-lo para que possa encontrá-lo por si mesmo.

Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar para atravessar o rio da vida, ninguém exceto tu, somente tu. Existem, por certo inúmeras veredas, e pontes, e semideuses que se oferecerão para levar-te do outro lado do rio; mas isso te custaria a tua própria pessoa: tu te hipotecarias e te perderias. Existe no mundo um único caminho, por onde só tu podes passar. Para onde leva? Não perguntes, segue-o.
(Nietzsche)

Educar-se a si mesmo não é prescindir de mestres, de educadores. E, aqui, uso a palavra "educador" diferenciando-a totalmente da palavra "professor". Professor é aquele que professa a verdade dos conhecimentos que adquiriu e que agora repassa. O educador cultiva, cuida para que cada um possa aprender a ser. Apresenta suas formas, seus modelos, mas não precisa impô-los.

Certamente, existem muitos outros meios de um indivíduo encontrar-se a si mesmo, escapar ao atordoamento no qual se move habitualmente como se estivesse no interior de uma nuvem escura e de ser ele mesmo, mas não conheço outro melhor que o de se lembrar de seus mestres e educadores.
(Nietzsche)

Mas seguir o mestre não pode ser como na brincadeira infantil - "Fará tudo que o seu mestre mandar? Sim, faremos!".

Os conhecimentos que escutamos dos mestres não são nada em si mesmos, nenhum valor está contido ali, a não ser a capacidade de gerar em cada um que escuta um caminho a seguir com o seu próprio pensamento. Seguir o mestre é ir além dele, é superá-lo. Não no sentido de progresso, mas sim no sentido de diferença.

Essa diferença se conquista não se permitindo ser domesticado. Nietzsche opõe à domesticação as ideias de "adestramento seletivo" e "formação de si". Qualquer adestramento que venha de forças externas se constitui num padrão de poder sobre o ser adestrado. Somente a desconstrução dos modelos educacionais que valorizam os conhecimentos automatizados por uma educação questionadora em si poderia criar um modelo revolucionário de educação. E revolucionário aqui aparece como sinônimo de libertador. É necessário que tenhamos estratégias ativas para uma mudança de valores que possam nos fazer caminhar no sentido de uma outra sociedade. Uma educação que valorize a conquista da autonomia do aluno. Que se liberte dos números quantitativos para dar lugar à qualidade. Qualidade essa que só pode ser pensada de forma integradora, homem-vida. Valorizando a vida no presente. E claro que isso não significa abandonar os conteúdos de história ou desprezar os conhecimentos adquiridos ao longo dos séculos. Mas seria, sim, colocar todos esses conhecimentos a serviço do hoje, do atual.

Educar-se só tem sentido para viver. E estamos vivos agora. A vida quando valorizada no presente derruba valores do vir a ter, do individualismo, do consumismo. Nesse sentido é possível pensar em educação de qualidade.

Os problemas da educação tal como estão sendo largamente discutidos não devem se prender somente nas questões mecânicas do sistema. A didática, a falta de computadores, a falta de dinheiro, as grades curriculares. Ora, conteúdos mudam, computadores são conquista recente para as escolas, a falta de dinheiro se alinha à complexidade das demais variáveis sociais.

O problema central da educação está muito mais na sua capacidade de ensinar o "aprender a pensar". E é isso que ela não vem fazendo, e muitas vezes nem tentando, porque os alunos gastam o seu tempo tentando aprender o que outros já aprenderam antes deles. E ao aprender isso, guardam para descarregar numa prova ao fim do ano e depois esquecem. Sim, porque temos em nós mesmos nossos mecanismos de qualidade (como qualquer animal, somos dotados de sensibilidade e isso nos ajuda a nos livrar daquilo que não nos serve). Enquanto as escolas estiverem "enfiando conteúdos", enchendo os arquivos humanos de conceitos, de sentidos que não encontram lugar no mundo, mas somente nas provas, o ser humano continuará "vomitando" esses conhecimentos para se livrar deles, ficando feliz somente quando as provas acabam e agora já os podem esquecer. O único conhecimento de que nos apropriamos de fato é aquele que construímos e nos serve, nos liberta.

Se a educação caminhar nesse sentido, o de fazer aparecer as necessidades vitais de cada um ao invés de valorizar as necessidades das leis mercadológicas, caminharemos para a construção de uma cultura verdadeira, pois os saberes darão frutos em ações e obras vivas.

Em Nietzsche não encontramos a fórmula para se construir tal educação, mas um caminho que alimenta a "minha esperança" de que o que ele nos traz possa ser "imitado criativamente" pelos educadores e pelos educadores dos educadores. Ou seja, que tentemos frear o "instinto do saber" para que se possa desenvolver, pacientemente, a capacidade de cada um pensar por si mesmo. E, dessa forma, deixar o caminho livre para que cada um possa educar-se a si próprio. Aprender não pode servir de substituto do pensar. Esses dois verbos fazem melhor sentido para a vida quando conjugados juntos. Buscar uma educação de qualidade é buscar uma educação que consiga nos ensinar - aprender a pensar.

Referências Bibliográficas

ALVES, Rubem. "Qualidade em educação". Crônica publicada no Sapere Audare, 8 de setembro de 2002.
DIAS, Rosa Maria. Nietzsche Educador. Série Pensamento e Ação no Magistério. São Paulo: Scipione, 1993.
NIETZSCHE, Friedrich. "Schopenhauer como educador" In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Produzido como trabalho para o curso de Filosofia  do IFCS, em dezembro de 2003.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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