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Educando pela leitura ou a educação literária pede passagem
Cyana Leahy-Dios
No final de 2001 foi assinada lei estadual sacramentando a extinção da literatura como matéria escolar de ensino médio no Rio de Janeiro. Poucos de nós perceberam ou tomaram conhecimento, até porque não haveria caminho de volta - mais ou menos como aconteceu nos anos 1980 com as disciplinas de sociologia e filosofia, no antigo 2º grau, quando também poucos souberam a tempo de fazer qualquer coisa e salvar tais disciplinas. O modelo escolar pragmatista americano anda vencendo algumas batalhas em nosso meio. Entre breves clamores e fogos fátuos, no caso da literatura, houve de fato uma reação de alívio por parte dos alunos, apesar da preocupação dos professores de língua e literatura (nacionais) com a redução de sua carga horária, dos espaços e tempos de trabalho. Essa reação - dos alunos - me parece ter sido bastante autêntica, já que raros eram aqueles satisfeitos com as aulas de literatura na escola, que classificavam de 'mistura inútil de história com português'.
Frequentemente pergunto em palestras, oficinas e debates quem dos presentes se lembra de ter lido o que queria nas aulas de literatura, de ter buscado e encontrado prazer, aprofundamento de conhecimento relevante, genuíno e útil para a vida, para o desenvolvimento de seus talentos e potencialidades. Podem argumentar que isso não ocorria apenas nas aulas de literatura, mas também nas outras matérias, um problema do modelo escolar que temos. Concordo, em parte. Acontece, porém, que a literatura é a mãe de todas as outras áreas de estudos - Roland Barthes já o disse e concordo inteiramente. Por isso, a responsabilidade dos estudos de literatura seria ainda maior do que das outras áreas, já que ela trabalha com a palavra em forma de arte, dentro de espaços de negociação social. Vamos por partes: neste pequeno texto, tentarei falar brevemente sobre esse triângulo multidisciplinar que constitui a literatura e, também, explicar a proposta oficial para substituir a disciplina literatura na escola; tentarei, por fim, propor educar através da literatura, de forma a contribuir para a reflexão sobre a autonomia crítica de leitura.
O que é a literatura? Como já disseram vários teóricos, talvez seja mais fácil definir o que não é literatura. Os pressupostos básicos da definição do literário são três: o meio de expressão deve ser a palavra, utilizada de modo a ser considerada arte ou artefato cultural; para tanto, é necessário que essa palavra-arte seja socialmente veiculada, isto é, alguém a deve produzir para que outro alguém a consuma. Produção e consumo são os pontos extremos desse elo de conexões que socializam a arte literária. Então, para melhor entender a obra de arte literária, seria preciso mergulhar na palavra, com seus significados, seus silêncios, suas múltiplas possibilidades de comunicação e expressão de sentidos, sentimentos, pensamentos. Ao mesmo tempo, seria necessário ampliar nossa concepção do que para nós é a arte: algo inusitado? Uma coisa que evoca em nós emoções, sentimentos, lembranças, sensações?
É importante entender que a arte não pode prescindir da rede de contatos sociais: de nada valeria haver pintores, escultores, músicos e poetas vivendo isolados no alto da montanha, produzindo obras maravilhosas das quais jamais tomaríamos conhecimento. Então, como toda forma artística, também a literatura necessita da produção, do consumo, de divulgação, de visibilidade. Nesse aspecto, a literatura que estudávamos na escola pouco ajudava: na verdade, o modelo pregava a memorização de características de períodos literários, junto com datas, informações histórico-econômicas, nomes de autores considerados clássicos, escolhidos para habitar o cânone nacional e constar dos livros didáticos de literatura. Até então, faltou a valorização da palavra como arte, bem como faltou reconhecerem que nós, consumidores, daqui do outro lado do balcão, também tínhamos algo a dizer.
Dentre as variadas possibilidades teóricas de leitura, podemos dizer que a tradição de ensino e aprendizado de literatura no Brasil privilegiou a abordagem fenomenológica, pela qual se tenta descobrir 'o que cada autor quis dizer em sua obra', na busca da Verdade autoral, além da abordagem hermenêutica, que usa o texto como espaço habitado por um conjunto de informações que conduzirão, como mapa da mina, ao Saber Inconteste, à Verdade Absoluta. Nesses dois modelos, o papel dos leitores é passivo e silencioso, já que o saber/poder seria um binômio somente alcançado através de profundo conhecimento da vida e obra de determinado autor ou autora, ou das ligações profundas entre o texto e as escrituras sagradas, chave fundamental da decifração. Como leitores comuns nunca nos foi dado poder interpretativo, e nossas leituras foram sempre insuficientes, precárias, primárias e rasas demais. Aliás, precisávamos ler nada ou quase nada nas aulas de literatura, pois bastava apenas memorizar as informações apresentadas como fundamentais.
A proposta oficial veio através dos documentos intitulados Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), nos quais não havia referência à literatura como disciplina específica de estudos. Surgia agora, porém, uma ênfase até então pouco vista na competência de leituras variadas, inclusive de obras literárias, junto a todos os tipos de textos. Segundo os PCN, estudar gramática na escola deixaria de ser exercício encerrado em si mesmo, passando a 'servir ao texto'; ou seja, as explicações gramaticais serviriam para ajudar a ampliar e aprofundar o contato e a fruição da palavra - objeto de arte, meio de comunicação pragmática, informação, referência, propaganda, mensagem...
A proposta é inegavelmente boa. Infelizmente, mudanças profundas assim não se fazem por decreto, e a grande e concreta transformação ainda está por vir: muitos dos professores que atuam nas escolas foram formados dentro de uma filosofia pragmática positivista e ainda são reticentes quanto ao diálogo e à livre expressão do pensamento, do sentimento, das sensações frente ao texto - a leitura independente e a interpretação ativa dos leitores. O ciclo é vicioso e circular, e para que haja modificações efetivas e profundas é preciso mudar a escola, a universidade, as políticas públicas e privadas, a visão social do papel da escola. Ler é maior e melhor que estudar literatura, pelo menos a literatura dos períodos e suas imutáveis características. Ler o livro, o poema, o outdoor, a bula de remédio, a notícia do jornal, o noticiário da tevê, a revista de fofocas, o tratado de filosofia, o manual de instruções tem tudo a ver com ler o amigo, o vizinho, a família, o parceiro, o colega de trabalho, o amigo da escola. Atos de leitura são atos de busca, de análise, de aprofundamento, de pesquisa.
Nossa leitura do mundo, do outro e do texto se inicia de forma semelhante: através da reação imediata que nossos sentidos enviam ao cérebro. O que vejo pode ou não me agradar, assim como o aroma que sinto, os sons que ouço, a textura e consistência do que toco, o gosto que sinto. Nesse universo de reações instantâneas, o aspecto mais sofisticado está no uso da palavra. Mais que o som da voz, a palavra que ouço de meu interlocutor me remete imediatamente a categorias preestabelecidas de agrado/desagrado, determinação de classe social e escolaridade, identificação, aproximação ou repulsa. Após meus sentidos enviarem ao cérebro uma mensagem positiva ou negativa, imediatamente tem início outro nível de leitura, ligado às emoções, positivas ou negativas. O perfume que evoca uma lembrança boa me traz saudade, nostalgia, vontade de ficar mais um pouco naquele espaço de reencontro com o passado; o contrário também sempre pode acontecer, como bem sabemos. Nossa leitura poderia parar por aí, mas seria apenas uma leitura pela metade. É preciso analisar o sentimento bom ou ruim que determinada pessoa, situação, local ou cena detona em mim, e para isso preciso refletir, pensar, aprofundar o nível de informação que detenho, e que pode ser ainda insuficiente. É preciso alimentar a curiosidade para buscar cada vez melhores interpretações, fazendo a análise necessária à síntese.
É exatamente isso que acontece com a leitura da palavra, com o estudo do texto, que tanto pode ser o outdoor visto do ônibus, o poema concreto ou de cordel, o romance histórico, a carta de amor, a receita de bolo, o convite de casamento, a notícia de jornal. Sempre há o que ler para além do texto, entre as linhas, no colorido do papel, no tamanho das letras, na escolha de vocábulos, esse e não aquele; há muito a ler nas sensações percebidas, nos aromas e sabores evocados, no arrepio da pele, nos sons intuídos, principalmente sobre nós mesmos. Talvez esse seja o mais importante aprendizado da leitura, o objetivo maior da educação literária, a transformação profunda e consciente pela palavra lida, pela palavra ouvida, pela palavra escrita. Estudar análise sintática pode ser imprescindível para que cada leitor entenda melhor aquele texto aparentemente indecifrável, certo poema hermeticamente 'intransponível', mas que se abre ao olhar e à compreensão a partir da análise, cuja chave não é domínio do autor, do hermeneuta, do professor, mas dos leitores. A gramática, em todos os seus aspectos, deve ser uma bela ferramenta de leitura e interpretação literária, textual.
Por esse olhar, a morte da literatura na escola pode ter sido como o trigo, que morre para germinar, ou como 'fruto maduro, que despenca e cai', para que a vida continue, avançando seus segundos. Penso que o principal, para nós, é ampliar a competência de leitura, para além da mera alfabetização, no sentido do pleno letramento, que implica ler e entender, consumir e produzir textos de forma coerente, consistente, plena de sentidos.
Publicado em 31 de dezembro de 2005
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