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Erros e mentiras
Stephen Jay Gould
Fiorello La Guardia pode estar destinado a entrar para a história basicamente como o padrinho de um aeroporto. Mas foi um grande prefeito de Nova York nos anos duros da Depressão e da Segunda Guerra. (Minha certidão de nascimento traz sua assinatura - pelo menos na forma de carimbo.) Também possuía em abundância a característica que apreciamos muito, mas raras vezes encontramos em pessoas que assumem uma posição de destaque - a disposição de admitir seus erros ocasionais e inevitáveis. Em sua tirada mais famosa, La Guardia disse certa vez: "Quando eu erro, erro bem!”.
Os "desvios de conduta" científicos são um tema de grande atualidade, tanto para os jornalistas quanto para os congressistas americanos. Neste clima um tanto agitado, devemos parar para refletir sobre a distinção essencial entre a fraude e o erro - porque os dois conceitos são diametralmente opostos, embora pessoas que se constituem em vigilantes às vezes cometam o trágico erro de considerá-los graus diferentes de contravenção. A fraude é patológica do ponto de vista social e psicológico, embora a ciência deva aprender a policiar-se. O erro é um subproduto inevitável da ousadia - ou de qualquer esforço concentrado. Querer combatê-lo seria o mesmo que aprovar uma lei proibindo as pessoas de urinar depois de beber cerveja.
Nenhuma das grandes obras da ciência jamais foi isenta de erro, e qualquer obra mais extensa ou revolucionária contém necessariamente alguns dos "erros bons" de La Guardia. O progresso intelectual é uma rede complexa de fintas, maus começos e experiências de tentativa e erro. A Origem das espécies, de Darwin, por exemplo, apresenta inúmeros erros salpicando sua massa oceânica de validade reformadora. Os erros são tão frequentes, e tão variados, que podemos até tentar dividi-los em categorias.
Primeiro, Darwin comete vários erros factuais. Aqui, vou deixar de lado os erros tediosos e cotidianos cometidos no registro de informações, concentrando-me nos erros muito mais interessantes baseados em previsões feitas a partir de premissas teóricas que se revelaram falsas ou exageradas. O apego de Darwin ao gradualismo, por exemplo, levou-o a fazer duas conjeturas portentosas e extraordinariamente erradas: 1) afirmou que já se tinham passado mais de 300 milhões de anos desde o "desnudamento do Weald" (a erosão da região, com cerca de sessenta quilômetros de largura, situada entre Chalk Downs do norte e do sul, no sul da Inglaterra), baseado em sua convicção de que a erosão geológica se dá aos poucos, grão por grão. Mas a alteração não precisa proceder com tanta lentidão e nem de forma tão contínua, e o tempo transcorrido foi de um terço a um quinto da generosa avaliação de Darwin. 2) A vida animal multicelular começa abruptamente, do ponto de vista geológico, na explosão do Cambriano, há cerca de 550 milhões de anos. Darwin, que rejeitava a rapidez biológica com mais energia ainda que a variedade geológica, previu que a "explosão" devia ter sido ilusória, e que a história pré-cambriana da vida animal multicelular devia ter pelo menos mais outros 570 milhões de anos de sucesso. Dispomos hoje de um excelente registro da vida pré-cambriana - e nenhum animal multicelular aparece até pouco antes da explosão do Cambriano. Uma segunda categoria podia ser rotulada de erros de julgamento: trata-se, na verdade, de erros de cálculo político. Darwin, que era muito esperto, cometeu poucos erros desta ordem, mas incorreu ocasionalmente neles ao dar rédeas a especulações insensatas num tratado que devia sua força à âncora de sobriedade que o prendia aos fatos, evitando as conjeturas fantasiosas das obras anteriores sobre a evolução. Numa passagem que mais tarde renegaria, e que rendeu muita ajuda, consolo, vantagem retórica e motivos de gargalhadas para seus inimigos, escreveu:
Na América do Norte, o urso preto já foi visto por Hearne nadando horas a fio com a boca aberta, capturando assim, como as baleias, insetos que flutuavam na água [...] Se o suprimento de insetos fosse constante, e se competidores melhor adaptados já não existissem na área, não vejo dificuldade que se oponha à transformação gradual, pela seleção natural, de uma raça de ursos num animal cada vez mais aquático em sua estrutura e seus hábitos, com bocas cada vez maiores, até resultar numa criatura tão monstruosa como a baleia.
(As edições posteriores da Origem das espécies conservaram apenas a primeira frase, baseada nos fatos, e eliminaram todo o resto.) Uma afirmação como esta não precisa ser falsa (e na verdade, já que se trata de uma especulação, não temos como saber); o importante, como teria dito Maquiavel, é evitar dar a impressão de estupidez.
Uma terceira categoria, que talvez seja a mais reveladora, compreende os erros que a maioria de nós não reconhece porque nós próprios também costumamos cometê-los. Vamos chamá-los de erros da convenção impensada. Incluo aqui a repetição passiva de suposições culturais generalizadas feita de modo tão automático, ou tão profunda e silenciosamente incorporada à estrutura de um argumento, que mal conseguimos detectar sua presença. Darwin pode ter promovido a maior revolução intelectual do século XIX, mas cometeu alguns erros notáveis nesta categoria, a maioria deles relacionada com sua ambiguidade em relação ao progresso - um conceito que não cabia na mecânica básica da seleção natural, mas que Darwin, na qualidade de vitoriano eminente, não conseguiu abandonar por completo.
Basta lembrar a forma como Darwin trata a evolução dos pulmões dos vertebrados e a relação entre eles e as bexigas natatórias dos peixes teleósteos - um exemplo que Darwin obviamente considerava importante para sua argumentação mais geral, porque repete a história meia dúzia de vezes na Origem. Darwin começa assinalando, corretamente, que os pulmões e as bexigas natatórias são órgãos homólogos - versões diferentes da mesma estrutura básica, assim como as asas dos morcegos e as patas dianteiras dos cavalos têm uma origem comum, indicada pelo arranjo similar dos ossos em partes do corpo que hoje atuam de maneira tão diferente. Mas Darwin extrai uma falsa inferência da homologia. Afirma, com uma confiança que vai aumentando e acaba se transformando em certeza, que os pulmões se desenvolveram a partir das bexigas natatórias:
Todos os fisiologistas afirmam que a bexiga natatória é homóloga [...], em posição e estrutura, aos pulmões dos animais vertebrados superiores; portanto, não me parece haver muita dificuldade em acreditar que a seleção natural tenha de fato convertido uma bexiga natatória num pulmão, ou órgão usado exclusivamente para a respiração. Na verdade, não duvido que todos os animais vertebrados dotados de verdadeiros pulmões sejam descendentes de um antigo protótipo, do qual nada sabemos, dotado de um aparelho de flutuação ou bexiga natatória.
Muitos leitores ficarão admirados a esta altura, o que sei porque já deixei perplexas várias gerações de estudantes ao apresentar o argumento desta forma. O que há de errado na afirmação de Darwin? Os dois órgãos são homólogos, não são? Certo. Os vertebrados terrestres evoluíram a partir dos peixes, não foi? Certo. Então os pulmões devem ter evoluído a partir da bexiga natatória, não é? Não. Totalmente errado. Na verdade, as bexigas natatórias é que evoluíram a partir dos pulmões.
Adoro este exemplo, de especial valor como instrumento pedagógico, porque uma afirmativa extraordinariamente contrária à intuição - a evolução das bexigas natatórias a partir dos pulmões - se torna a hipótese melhor com uma clareza súbita e atordoante a partir do momento em que abandonamos uma suposição comum que nos impede de pensar corretamente e passamos a examinar a questão à luz de uma visão diferente. O problema está na confusão crônica - favorecida neste caso pelo preconceito cultural - que costuma ocorrer entre sequência estrutural e ordem de ramificação.
A literatura da psicologia experimental muitas vezes revela dados comparativos sobre o desempenho em vários testes de aprendizado de, digamos, uma minhoca, um caranguejo, uma carpa, uma tartaruga e um cão. Estes animais são muitas vezes usados como representantes de uma "sequência evolutiva" do progresso mental. Este tipo de afirmativa deixa os biólogos estudiosos da evolução urrando de raiva ou, se estivermos de melhor humor, apenas nos faz rolar de rir. Este elenco heterogêneo de animais não representa qualquer sequência evolutiva: os vertebrados não se originaram dos artrópodes; os mamíferos não se desenvolveram a partir das tartarugas; e as carpas estão mais distantes dos peixes, que de fato deram origem aos descendentes terrestres, do que os aardvarks dos seres humanos. No entanto, embora os psicólogos estejam totalmente enganados na terminologia que empregam ao falar de uma "ordem evolutiva", a sequência pode ter alguma validade como série estrutural - a sequência verme, inseto, peixe, tartaruga e cão pode apresentar o aumento de alguma propriedade do funcionamento neurológico.
Quando examinamos outra sequência comum - peixe, anfíbio, réptil, mamífero, símio, humano - os problemas se avolumam, porque neste caso não se pode falar de sequência estrutural legítima. As rãs vivem em lugares diferentes, mas serão "superiores" aos espadartes ou aos cavalos-marinhos? O quanto você se disporia a apostar numa disputa entre uma preguiça a um Triceratops? Certo, diria você: não existe necessariamente um progresso, mas não há dúvida de que esta respeitável linhagem indica o caminho que foi seguido pela evolução dos vertebrados. E agora estamos chegando ao cerne do erro no que diz respeito aos pulmões e às bexigas natatórias. Se é verdade que esta sequência é o caminho seguido pela evolução dos vertebrados, é obrigatório que as bexigas natatórias se tenham transformado em pulmões, como disse Darwin - porque o peixe canônico, o primeiro membro da série, tinha uma bexiga natatória, enquanto todos nós, que estamos no topo, somos dotados de pulmões.
Mas incorremos numa dupla confusão quando proferimos esta afirmativa "intuitivamente óbvia": primeiro, partimos da premissa falsa de que tenha havido um progresso, o que faria dos pulmões um órgão "superior" a uma bexiga natatória e, assim, inadequado a criaturas situadas na faixa "inferior"; segundo, o que é mais grave, estamos confundindo escadas e arbustos, ou sequências e ordens de ramificação. A trajetória peixe-anfíbio-réptil-mamífero não é o caminho da mudança percorrido pelos vertebrados; só representa um dos caminhos possíveis, entre milhares de outros, no arbusto complexamente ramificado da evolução dos vertebrados [...]. Todos os outros caminhos levam a criaturas que continuamos a chamar de "peixes" na linguagem comum. Em termos da variedade da configuração anatômica, encontramos uma diversidade muito maior entre as criaturas chamadas de peixe do que entre todos os vertebrados terrestres juntos. A linha terrestre é um único ramo, notavelmente bem-sucedido, é certo, mas com uma diversidade limitada na estrutura anatômica subjacente (por maior que possa ser a variedade externa existente entre as aves voadoras, as serpentes rastejantes e as pessoas pensantes). Em contraste, os peixes são extraordinariamente díspares em termos da estrutura básica e abrangem linhagens que se separaram 100 milhões de anos antes do surgimento de qualquer vertebrado terrestre. Basta pensar nas lampreias, desprovidas de mandíbulas; nos tubarões, que não têm ossos (e que também não têm nem pulmões, nem bexigas natatórias) e no estranhíssimo celacanto; não se pode ter uma imagem de peixe limitada à criatura canônica fisgada num anzol na ponta de sua linha de pesca.
Sim, é verdade: esta criatura canônica - chamada de teleósteo, ou membro do vasto grupo dos peixes ósseos "superiores" - geralmente é dotada de bexiga natatória. Mas os teleósteos, embora abranjam quase todos os peixes comuns atuais, só apareceram ao cabo de muito tempo no curso da evolução, surgindo no mar bem depois que os primeiros mamíferos surgiram em terra. Sim, é verdade que eles possuem bexigas natatórias e são peixes - mas não são ancestrais de nenhum vertebrado terrestre. São formas tardias e derivadas, o que deixa sem solução o problema de saber quem veio primeiro: as bexigas natatórias ou os pulmões.
Uma reconstituição da ordem em que se deu a ramificação dos vertebrados fornece uma resposta clara a esta pergunta: Darwin estava errado; os vertebrados ancestrais eram dotados de pulmões [...]. Os primeiros vertebrados possuíam um duplo sistema de respiração: brânquias para extrair os gases da água do mar e pulmões para respirar na superfície. Alguns peixes atuais - entre eles o celacanto, o Polypterus africano e mais três gêneros de peixes - ainda conservam pulmões. [...] Alguns peixes conservam a ligação entre a bexiga natatória e o esôfago; são capazes de inflar suas bexigas natatórias engolindo ar na superfície. Os peixes que têm bexigas natatórias isoladas em geral extraem os gases para inflá-la do sangue que flui através de um sistema extremamente rico e fino de vasos que cercam a bexiga e possui um dos mais belos nomes técnicos de toda a biologia - a rete mirabile ou "rede admirável".
Eu não gostaria de fazer elogios declarados a erros, mas o erro de Darwin acerca da bexiga natatória recai na categoria que consideramos particularmente instrutiva, porque a correção exige trocarmos uma reação inicial de incredulidade (“não pode ser!”) a uma total obviedade - a sensação extraordinária de ter os antolhos removidos. O agente da correção, além do mais, não é um fato novo e primordial, mas apenas uma modificação na estrutura conceitual subjacente.
Louvemos, então, o frutífero erro de Darwin por esta razão, mas também por outra, bem mais importante. Darwin pode ter invertido a sequência, mas usou o episódio para ilustrar um princípio vital e em geral mal compreendido da teoria da evolução - e a ilustração continua funcionando, ainda que as bexigas natatórias não se desenvolvam para produzir os pulmões, mas sejam um produto da evolução daqueles. Afinal, por que Darwin se mostrava tão interessado por esta questão?
Um argumento comum usado contra a ideia da evolução afirmava (e continua a ser empregado pela oposição mais renitente) que pequenas mudanças podiam ocorrer no interior de um "tipo básico", produzindo as variedades que vão do chiuaua ao dogue alemão, ou do minúsculo pônei aos alentados cavalos percherons. Mas as transições de um "tipo" a outro são impossíveis, porque a evolução não pode produzir novidades fundamentais. A forma clássica desta argumentação afirma que se as estruturas "novas" quase sempre surgem (como dizem os evolucionistas) a partir de órgãos ancestrais que tinham funções marcadamente diversas, as formas de transição seriam inviáveis porque existiriam num mundo de faz-de-conta da total impraticabilidade, com uma função crucial que já se degenerou a outra nova que ainda não se instalou. [...] Em outras palavras, tanto o "antes" quanto o "depois" fazem sentido como organismos funcionais, mas o "durante", a forma intermediária, não.
Os pulmões e a bexiga natatória representam um exemplo clássico deste dilema, qualquer que tenha sido a sequência. Os órgãos são homólogos, e presumimos que um tenha evoluído a partir do outro. Mas como poderia ter sobrevivido à forma transicional, afundando como um peso morto por lhe faltar flutuação quando a respiração exigia o acesso à superfície, ou então com toda a facilidade para boiar, mas sufocando por não ter como respirar?
Darwin começa advertindo que devemos duvidar de todas afirmações apriorísticas que falam de uma impossibilidade em princípio, porque a natureza multiforme muitas vezes é quem ri por último desta forma particular da vaidade humana: "Devemos tomar extremo cuidado antes de concluir que um órgão não poderia ter se formado por algum tipo de transição gradativa". A engenhosa solução de Darwin envolve um encadeamento do princípio do dois-em-um com o do um-em-dois - misterioso quando formulado assim, de forma abstrata, mas lindamente simples por ilustração, em que os pulmões e as bexigas natatórias servem de exemplo primário. Em primeiro lugar, diz Darwin, órgãos únicos muitas vezes desempenham mais de uma função - o dois-em-um:
Poderia citar inúmeros exemplos [...] do caso de um mesmo órgão que desempenha a um só tempo funções completamente diversas [...]. Nessas situações, a seleção natural pode ter facilmente determinado uma especialização, caso isto resultasse em alguma vantagem, fazendo com que uma parte ou um órgão que executava duas funções passasse a desincumbir-se de apenas uma delas, modificando assim totalmente sua natureza ao longo de estágios imperceptíveis.
A bexiga natatória primitiva, afirma Darwin (e podemos inverter a argumentação, aplicando-a também aos pulmões), pode também ter funcionado, subsidiariamente, na troca de gases - e este segundo papel pode ter sido intensificado à medida que o emprego original foi decaindo, com a evolução dos pulmões. Mas o princípio do dois-em-um não responde ao problema dos estágios intermediários - como é que o peixe conseguiu continuar respirando depois que os pulmões originais perderam sua função primária?
E é aí que Darwin recorre ao seu segundo princípio associado ao primeiro, o princípio do um-em-dois. Muitas funções vitais são desempenhadas por dois ou mais órgãos, e um deles pode mudar de função se o outro continuar a desempenhar o papel necessário. Somos capazes de respirar tanto pelo nariz quanto pela boca - felizmente, senão qualquer resfriado poderia nos matar:
Às vezes, a mesma função é desempenhada ao mesmo tempo no mesmo indivíduo por dois órgãos distintos [...] Nesses casos, um dos dois órgãos pode ser facilmente modificado e aperfeiçoado de maneira a responder sozinho pela função [...] e assim o outro órgão pode ser modificado para responder a alguma outra finalidade muito diversa.
Podemos entender hoje por que Darwin gostava tanto do exemplo dos pulmões e das bexigas natatórias. Ele fizera uma conjetura razoável acerca do princípio do dois-em-um, afirmando que as bexigas natatórias também eram órgãos respiratórios suplementares, e dispunha de indícios definitivos de que o princípio do um-em-dois funcionava nos casos dos muitos peixes existentes que apresentavam dois sistemas respiratórios - tanto brânquias quanto pulmões. (A classificação taxonômica oficial dos peixes dotados de pulmões, Dipnoi, ou dipnoicos, significa "duas respirações".) Assim, usando os pulmões e as bexigas natatórias como seu exemplo-chave numa defesa central da evolução em larga escala, Darwin concluía:
Por exemplo, a bexiga natatória foi aparentemente convertida num pulmão adaptado à respiração. O mesmo órgão desempenhava simultaneamente duas funções muito diversas e depois se especializou numa delas; e a existência de dois órgãos muito diversos que desempenhassem ao mesmo tempo a mesma função, um deles aperfeiçoado enquanto o outro o coadjuvava, deve ter muitas vezes facilitado bastante a transição.
A essa altura, os leitores poderão estar torcendo o nariz. A argumentação que associa o dois-em-um ao um-em-dois é logicamente inatacável, mas pode parecer um tanto forçada e extremamente improvável. Com que frequência podemos nos deparar com semelhante combinação? As duas situações podem ser incomuns; neste caso, sua conjunção seria quase inconcebível. Raro vezes raro é igual a raro ao quadrado, ou impossível na prática.
Mas é agora que chegamos à qualidade especial da argumentação de Darwin. Acontece que nenhuma dessas duas situações é rara, e os dois fenômenos - o dois-em-um e o um-em-dois - nunca aparecem separados. Na verdade, os dois são manifestações de um princípio mais profundo e extremamente importante - a redundância como ponto de partida para qualquer forma de criatividade. São os dois lados da mesma moeda - e a moeda, embora preciosíssima em matéria de valor intelectual, é tão comum quanto as pratas de dez centavos.
A noção de que os órgãos foram criados "para" fazer determinadas coisas, sendo idealmente adequados a uma certa função, e apenas a ela, é um vestígio do criacionismo arcaico - a ideia de que todas as criaturas foram produzidas por Deus, já totalmente formadas e aperfeiçoadas em seu funcionamento. Se cada órgão existisse explicitamente para desempenhar um único papel, admito que um órgão capaz de fazer mais de uma coisa seria raro, e que a presença de dois órgãos fazendo a mesma coisa seria mais rara ainda. Mas os órgãos não foram criados com nenhum desígnio; eles evoluíram - e a evolução é um processo confuso, em que a redundância é muito frequente. Um órgão pode ter sido moldado pela seleção natural de modo a apresentar certas vantagens num determinado papel, mas tudo que seja complexo apresenta uma série de outros usos potenciais em virtude de sua estrutura herdada - o que todos podemos descobrir ao usar uma moeda como chave de fenda, [...] ou um cabide de arame para conseguir abrir o carro que trancamos com a chave dentro (e não o de outra pessoa, esperemos, e nem - supliquemos - para pôr fim à gravidez indesejada na era de profundas restrições que vem se anunciando). Qualquer função vital que esteja restrita a apenas um órgão dá à linhagem em que isto ocorre poucas perspectivas de persistência evolutiva a longo prazo; a redundância, por si só já representa uma vantagem enorme. (É deste modo que a redundância resolve, como apresentei sumariamente acima, o problema da evolução dos maxilares dos mamíferos, que de outra forma seria insolúvel. As formas intermediárias, cuja existência foi demonstrada por indícios fósseis diretos e não por meras conjeturas abstratas, desenvolveram uma segunda articulação entre os ossos dentário e esquamosal e atual articulação mandibular dos mamíferos, e então certos elementos da antiga articulação puderam abandonar sua função anterior e transferir-se para o ouvido.)
Na verdade, a bexiga natatória se constitui num excelente exemplo de que as possibilidades múltiplas são a norma. Primariamente, é um órgão de flutuação nos peixes teleósteos. Enchendo a bexiga de gás, o animal, que de outra forma afundaria, adquire uma flutuação neutra e pode permanecer em repouso, sem despender energia, no meio de uma coluna de água. (Numa função correlata, os peixes com flutuação neutra adquirem maior eficiência em seu deslocamento para a frente, porque não precisam empregar energia na criação de uma força ascensional que se contraponha à submersão [...].) Um fato interessante é que alguns tubarões são, por hábito, pelágicos (flutuantes); como é que conseguem manter-se à flor d'água, se toda a sua linhagem perdeu o órgão que se transforma em pulmões ou em bexiga natatória nos outros peixes? Ocorre que esses tubarões são dotados de fígados imensos, constituídos em grande parte de um carboidrato com densidade consideravelmente inferior à da água do mar - outro bom exemplo de que a utilidade múltipla costuma ser a norma.
No entanto, a bexiga natatória cumpre pelo menos mais três funções importantes, embora secundárias, em muitas espécies de peixes teleósteos:
1) O fato mais curioso, talvez, é que a bexiga natatória tornou a adquirir uma função respiratória suplementar em várias linhagens de peixes que vivem em águas pantanosas ou estagnadas, onde a inspiração do ar na superfície pode ser uma alternativa importante para a respiração branquial.
2) Muitos teleósteos empregam sua bexiga natatória como órgão sensorial. Uma vez que o gás responde tão sensivelmente às mudanças de pressão, alguns peixes são capazes de avaliar a profundidade em que se encontram na água por meio de receptores implantados nas paredes de suas bexigas natatórias. Muitos outros peixes usam a bexiga natatória como órgão acessório da audição. Os gases são mais compressíveis do que a água, e os gases das bexigas natatórias podem captar as vibrações sonoras com maior sensibilidade do que qualquer outra parte do corpo do peixe, e esta audição suplementar apresenta pelo menos duas formas de evolução notavelmente diferentes. Alguns peixes desenvolveram delgadas extensões anteriores da bexiga natatória; estas extensões passam por aberturas do crânio e entram em contato direto com o ouvido. Em outro grande grupo, os Ostariophysi (que abrangem a maior parte dos peixes de água doce de todo o mundo), as vibrações da bexiga natatória são transmitidas ao ouvido através de uma cadeia de quatro ossos localizados dos dois lados da coluna vertebral a chamados de ossículos weberianos em homenagem ao cientista alemão que identificou seu funcionamento em 1820. (Este exemplo de função múltipla foi utilizado por Darwin na Origem das espécies.)
3) A produção de sons: várias linhagens de peixes utilizam a bexiga natatória como agente direto para a produção de sons, ou para amplificar os sons que produzem com outras partes do corpo. (Alguns peixes são essencialmente mudos, mas muitos produzem sons, em especial durante a corte que antecede o acasalamento ou como forma de demonstrar agressividade.) O cangulo, do gênero Balistes (outro lindo nome), produz um som estrídulo esfregando dois ossos - mas este som, de volume baixo, é imensamente amplificado pela ressonância da bexiga natatória, próxima a eles. Outro grupo de peixes range os dentes faríngeos e também transforma este rugido baixo num poderoso ronco graças à ressonância da bexiga natatória. Em outros peixes, é a bexiga natatória que produz diretamente os sons, por meio da expulsão de bolhas de gás. T. H. Huxley escreveu um artigo especial para a revista Nature (em 1881), tratado que só posso descrever como os peidos dos arenques. Estes peixes expulsam gás da bexiga natatória por um orifício adjacente ao ânus. No estilo tão digno e respeitável adequado a um texto científico, um artigo inglês de 1953 descreve a proposição de Huxley: "Os guinchos semelhantes aos dos camundongos produzidos pelos arenques quando são capturados podem ser originados do escapamento de gás através da abertura posterior".
Se me permitem passar, em minha conclusão, desses traques de interesse menor a uma nova incursão em terreno mais elevado, não sei se podemos encontrar em toda a Origem das espécies argumento mais geral ou mais importante do que o reconhecimento de que é a redundância generalizada que torna possível a evolução.
[...]
Como é triste, diante disso, o fato de vivermos numa cultura praticamente dedicada a aniquilar o gosto pela ambiguidade e a alegria criativa da redundância. Hoje, mesmo os conceitos mais complexos acabam sendo reduzidos a instantâneos fotográficos e a curtas informações sonoras, e as eleições são decididas por quinze segundos de imagens mostrando homens rodeados de bandeiras e suspeitos de crimes sendo conduzidos através de simbólicas portas giratórias. Podemos estar criando uma geração de carneiros - e embora esses simpáticos mamíferos suplantem os neozelandeses em número numa proporção de quase 25 para um, tendo a suspeitar que o Homo sapiens, devidamente enriquecido pela redundância e a ambiguidade, continuará a prevalecer.
A redundância e sua contrapartida, a ambiguidade, são a nossa maneira de ser, nossa maneira mais preciosa, mais humana de ser. Nós tendemos a nos exasperar com os computadores porque, a despeito de todo seu incrível poder, são incapazes de perceber nossas ambiguidades essenciais. Não conseguem fazer traduções adequadas de uma língua humana para outra, e somos forçados a falar com eles de um modo que é totalmente antinatural para nós - ou seja, sem ambiguidade (e daí toda uma indústria dedicada exclusivamente a combater os bugs). Diante dos erros de La Guardia ou de Darwin, eles emperram, mas nós não: nós nos ajustamos, nós nos esquivamos, nós vencemos, nós transcendemos. Pode vir a ser uma parceria infernal, contanto que nós conservemos o controle. Quanto a mim, prefiro apostar nos pastores da Nova Zelândia a esperar que a analogia se sustente.
Publicado em 31 de dezembro de 2005
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