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Fantasias no Ibirapuera
Fredric Michael Litto
Professor Titular da Universidade de São Paulo.
O Trabalho Colaborativo e o Futuro da Sociedade Brasileira
Duas ou três vezes por semana, tento achar tempo para andar durante uma hora, preferencialmente bem cedo na parte da manhã, no lindo Parque Ibirapuera, na zona sul de São Paulo. É sempre uma oportunidade para fazer o óbvio benéfico exercício físico, e também para recarregar minhas "pilhas" emocionais e espirituais, vendo as bonitas árvores e arbustos, os cisnes e gansos perto do lago, e pondo a minha imaginação para trabalhar.
Para ajudar o exercício da imaginação, e para manter um passo firme e regular, levo um walkman com fitas ou cd's de marchas militares tocadas por bandas de gaitas escocesas. Agora, é perfeitamente legítimo perguntar por que um "bom menino judeu de Nova Iorque" encontra alimentação emocional e espiritual nesse tipo de música e o significado disso para outras pessoas.
Acho essas músicas muito inspiradoras e quando as escuto, entro num mundo de fantasia que me eleva ao nível da mais agradável sensação possível, esquecendo as coisas mundanas do dia-a-dia, tirando-me do meu isolamento como um indivíduo e colocando-me dentro de um grupo maior, feito de indivíduos como eu, mas que está agindo como um "corpo" único. Na minha fantasia, vejo-me como um soldado escocês, marchando com os meus conterrâneos, acompanhado daquela música tão inspiradora, para defender o nosso país, nosso povo, contra um agressor externo. É uma fantasia meio complicada para mim, porque fundamentalmente sou um pacifista, e não tolero a ideia de matar outros seres humanos, a não ser em absoluta autodefesa. Mas o prazer que vem de me juntar virtualmente a um grupo com o qual compartilho valores e metas, submeter minha individualidade, minhas idiossincrasias e desejos à execução de uma ação feita em conjunto, é indescritível. A adrenalina corre solta, e eu não sinto cansaço.
Para marchar acompanhando outros, é necessário não apenas manter o passo correto (em relação à música), mas manter a distância precisa do sujeito que está na frente, e dos sujeitos que estão nos dois lados, isto feito sem virar a cabeça, que tem que ficar quase imóvel, embora o resto do corpo esteja em pleno movimento. É necessário puxar a barriga para dentro, manter os ombros para baixo e para trás, balançar os braços nem mais e nem menos do que ficou estabelecido no treinamento, e manter sempre o alinhamento da fila e da coluna a que se pertence (tudo isso sem virar a cabeça). A perfeita execução de um grupo de homens ou mulheres marchando em conjunto é uma coisa linda de se ver. Sugere para o espectador que esse grupo de seres humanos individuais sabe agir de forma coordenada, harmoniosa, eficiente... como um relógio, com todas as suas peças contribuindo para o sucesso da função do relógio: marcar o tempo. Ou como os instrumentistas de uma orquestra sinfônica: se cada um entra com o seu som quando bem quiser, é um caos total. É fácil saber, ao ouvir o rádio, se a orquestra que está tocando é de segunda categoria ou é um dos celebrados conjuntos musicais de reputação internacional: as entradas de som de uma dezena de instrumentos de corda ou de madeira são como um só instrumento. Como é que conseguem essa perfeição quando há tantas possibilidades, devido às variáveis implícitas na situação, de caos puro?
Idêntica é a situação dos remadores num esportivo barco a remo com oito indivíduos: se todos os remos não entrarem na água e saírem dela exatamente ao mesmo tempo, o barco começará a mudar de rumo e a perder sua velocidade máxima. O remador, além de fazer o pesado remo entrar e sair precisamente em conjunção com os seus colegas, tem que coordenar os rápidos movimentos para frente e para trás do carrinho no qual está sentado (com os pés amarrados e fixos no chão) de forma a não bater nas costas do remador a sua frente; os corpos dos dois ocupam o mesmo espaço físico em momentos alternados por uma fração de segundo. Oh! E tem também que seguir as instruções gritadas do timoneiro, exatamente como o instrumentista de orquestra tem que tirar os olhos da partitura para seguir as instruções visuais do regente, dadas através de sua batuta e das emoções que expressa no rosto.
Não resta dúvida de que são o talento natural e as horas intermináveis de prática que fazem a diferença entre remadores e instrumentistas excelentes e os amadores, mas tem um outro componente também: a aceitação do "jogo" do trabalho colaborativo, isto é, da submissão da identidade individual em favor daquela de um grupo. Examinando minha própria vida, vejo que sempre procurei atividades em que era possível fazer parte de um grupo, em que grande parte da gratificação de participação vinha do prazer de ser integrante de algo envolvendo várias pessoas, cada uma contribuindo, a seu modo, para atingir uma meta difícil, de valor intrínseco e do grupo.
Quando adolescente fiz parte do corpo de balé do Museu de Brooklyn, em Nova Iorque; na escola secundária, toquei violoncelo na orquestra, e quando aluno na Universidade da California, Los Angeles, tocava instrumentos de percussão na orquestra e remava na equipe de remo da instituição; no Brasil, tive a honra e o prazer de fazer parte da bateria da escola de samba Camisa Verde e Branco durante sete carnavais, tocando o meu chocalho-de-três-andares no meio dos outros instrumentistas que não queriam saber de onde eu vinha, qual o meu Q.I. (nos dois sentidos!) ou minha profissão, e me aceitaram como apenas mais um que queria colaborar no ato prazeroso de fazer música em conjunto e talvez trazer honraria à nossa escola.
É uma pena não poder dizer que no meu trabalho profissional no Brasil encontrei condições de me integrar a um grupo onde tive o prazer de trabalhar colaborativamente. Em 28 anos como professor titular (isto é, com direito de participar de muitos colegiados onde decisões significativas são tomadas) da maior universidade brasileira, ainda não encontrei um ambiente propício para o trabalho harmonioso e gratificante que sempre resulta quando uma equipe bem articulada funciona, seguindo princípios de respeito mútuo e de colaboração profissional. Em doze anos como consultor do CNPq, CAPES e MEC tive a oportunidade de verificar que este fenômeno de não-colaboração é endêmico no país, em todos os setores acadêmicos e, quando por acidente ocorre o contrário, é por pouco tempo, tão instável é o espírito colaborativo entre nós.
Esse fenômeno faz parte das profundas raízes culturais brasileiras, não tenho dúvida; é só observar que apenas as camadas menos favorecidas economicamente mantêm a prática de mutirões (para a construção de suas residências e a limpeza de suas ruas, feitas por absoluta necessidade de sobrevivência), a soberba organização das grandes escolas de samba e a bela integração dos times de futebol. Já as camadas superiores demonstram (propositalmente? Cf. Thorsten Veblen, Teoria da Classes de Laser) ignorância sobre a sensatez do trabalho cooperativo, preferindo seguir a "Lei do Gerson" e o seu conceito de oportunismo.
Por que o trabalho em colaboração é tão importante hoje e no futuro? Por causa do aumento da complexidade em todos os assuntos humanos. Nunca houve tantas pessoas na face da terra, opções onde morar, indivíduos com quem casar, carreiras a seguir, lugares para estudar, religiões a praticar e comidas diferentes a comprar e comer.
Até para passar duas horas de divertimento temos que escolher entre uma dezena de formatos diferentes, para falar apenas daqueles que dependem de tecnologia. Os melhores exemplos da relação entre complexidade e necessidade de colaboração são os fatos de que desde meados do Século XX, as guerras eram vencidas não por um general ou comandante mas por uma equipe de generais. E os ganhadores do Prêmio Nobel não eram mais cientistas individuais trabalhando em condições de isolamento e penúria, mas sim equipes de pesquisa, bem equipadas, às vezes espalhadas em vários continentes, e sempre somando esforços diferenciados para alcançar com êxito o alvo de sua investigação.
A complexidade no mundo só tende a aumentar; não diminuirá de forma alguma. E as culturas que na sua educação básica, formal e informal, não inculcarem bons hábitos de trabalho colaborativo nos seus jovens, certamente sofrerão as consequências terríveis de não-compatibilidade com aquelas culturas na qual a colaboração permita maior competitividade e orgulho de fazer parte de um time que está ganhando exatamente porque funciona como time. Duvido que seja possível para uma cultura ter êxito quando muitos dos seus membros aprendem e acreditam em conceitos como "Nunca ensinar o último pulo do gato", "Vamos esconder o leite", ou "O ótimo é inimigo do bom". Está claro para todos que se preocupam com o futuro que uma boa parte da força de trabalho, daqui em diante, será organizada por grupos ad hoc de especialistas em assuntos ou campos de conhecimento diferentes, convocados por períodos longos ou curtos para solucionar determinados problemas. Difícilmente esses grupos serão sempre compostos pelas mesmas pessoas, havendo um fluxo grande e constante de pessoas entrando e saindo de grupos, provocando a formação de grupos novos e a extinção de outros. Quem não tiver um comportamento profissional apropriado simplesmente acabará sendo excluído dos grupos de maior reputação, independentemente da sua competência técnica pessoal.
Em que consiste a preparação adequada para participar com êxito de um time que está fazendo um trabalho de natureza colaborativa? Em primeiro lugar, uma sincera e madura capacidade de aceitar crítica sobre a contribuição feita. Na cultura brasileira, essa capacidade é difícilmente encontrada na população em geral, provavelmente por interferir com a exigência de cordialidade que faz parte importante do tecido dessa cultura. Quem critica o trabalho de outro não está sendo cordial com ele ou ela. Mesmo quando a crítica é feita de forma construtiva, não é bem recebida e normalmente provoca desentendimentos pessoais. Para poder colaborar verdadeiramente, é necessário ter um bom senso de autocrítica e de honestidade, admitindo os êrros cometidos, aceitando sem rancor a demonstração cabal de que o trabalho revela viés, ou uma enunciação estúpida, ou a apresentação insuficiente de evidência para as conclusões. Humildade, transparência, autenticidade e honestidade total são os componentes comportamentais individuais fundamentais para gerar a confiança necessária para um trabalho de grupo bem sucedido. Quem não compartilha a informação, quem não é cândido, quem não cumpre promessas feitas (entregar um trabalho em data combinada, realizar um trabalho ou levantamento realmente exaustivo), perde a confiança do grupo, e merece ser excluído dele.
Em segundo lugar, a liderança de qualquer grupo que quer ter êxito na sua missão exige que qualquer tipo de intimidação ou coerção seja eliminado dos procedimentos. Um verdadeiro líder não precisa impor suas ideias ao grupo. Ele está lá para coordenar as ideias criativas dos outros, apenas de vez em quando lançando mão de uma contribuição sua. Em terceiro lugar, a busca permanente pela excelência no trabalho do grupo é essencial: apenas isso garante a renovação e atualização constante do grupo.
Acredito ser possível agora enumerar as atitudes e comportamentos negativos e positivos que têm um efeito direto no trabalho hoje.
Atitudes Negativas
- ter uma "agenda oculta" pessoal,
- ser ambiciosa pessoalmente,
- ter falta de confiança no grupo ou em certos membros do grupo e silenciar sobre isso,
- ser motivado apenas pela remuneração que resultará do trabalho, e não pelo prazer e orgulho que vem da realização de um trabalho bem feito e que tem valor intrínseco além do pecuniário,
- ser contra a adoção de critérios, modelos ou sistemas provindos de outras regiões ou países simplesmente por considerações nacionalistas,
- não querer passar para os colegas do grupo os seus conhecimentos sobre qualquer fenômeno, seus pontos fortes e fracos,
- não aceitar críticas construtivas ao seu trabalho.
Atitudes Positivas
- ter uma forte capacidade associativa,
- estar disposto a aprender coisas novas e ter experiências novas,
- apreciar a heterogeneidade do grupo e respeitar a diversidade,
- estar aberto ao dissenso; respeitar honestamente a opinião e a experiência dos outros,
- comprometer-se sinceramente e totalmente com os objetivos e metas do grupo,
- aceitar participar do planejamento de algo a curtíssimo prazo,
- dar ao grupo o máximo da sua capacidade criativa e crítica.
Comportamentos Negativos
- realizar uma luta de poder dentro do grupo,
- exibir comportamento antissocial, como paternalismo, arrogância, autoritarismo,
- megalomania, ganância e narcisismo (incapacidade de ter empatia com alguém além de si mesmo),
- deixar atritos e fricções levarem a confrontações e tensão,
- ter medo de pedir ajuda ou de dá-la; ou ter timidez ao propor uma nova ideia; ter medo de correr riscos, de inovar,
- ser preguiçoso, sem iniciativa (fazer apenas aquilo que lhe é solicitado formalmente),
- ter um comissionamento individual exclusivo, remunerado ou não, com empresa ou entidade, sem o conhecimento do grupo,
- ser pirata das ideias, planos e problemas do grupo, passando-os para terceiros,
- ser antiético, como cobrar de alguém algo que não foi combinado, ou que foi explicitamente descartado, ou elogiar falsamente ou de forma insincera, ou de procurar achar um "bode expiatório".
Comportamentos Positivos
- manter uma ideia clara da missão e das tarefas do grupo,
- escutar os outros (prestar atenção, não interromper),
- exibir humildade, generosidade e honestidade,
- faltar a reuniões do grupo, ou atrasar (exceto em circunstâncias excepcionais),
- ter "assertividade", isto é, não ficar "em cima do muro", mas sempre tomar uma posição; ser cândido; ser agressivo não como indivíduo mas como alguém promovendo o sucesso do grupo,
- saber o que está sendo realizado por todos os membros do grupo,
- saber gerenciar, sem lamúrias, contingências inesperadas, recursos escassos.
Os grupos que não conseguem eliminar as atitudes e comportamentos negativos, enfatizando os positivos, certamente serão "intoxicados", disfuncionais, desperdiçando seus recursos e gastando suas energias em tudo menos na sua missão. Tanto é importante a questão da colaboração hoje que um novo termo está surgindo: coopetição, para descrever a situação quando duas empresas normalmente concorrentes na mesma praça ou mercado resolvem colaborar entre si, ou para reduzir custos ou para compartilhar conhecimentos tecnológicos ou mercadológicos, de forma que ambas se beneficiem. Coopetição será uma alternativa de trabalho tanto para entidades quanto para indivíduos trabalhando como free-lancers. Está na hora de preparar a próxima geração de brasileiros para o trabalho colaborativo. Quem não tiver fitas ou cd's de marchas de gaitas escocesas poderá ir além disso: existe em São Paulo um grupo de jovens que amam essas mesmas marchas, The Scottish Link Pipe Band, liderado pelo Cristiano Roberto Bicudo (telefone: [11] 210-6614). O grupo ensina aos interessados como tocar esses instrumentos e sua música. A cada participante está franqueado o direito de criar a fantasia que mais lhe satisfaz.
Publicado em 31 de dezembro de 2005
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