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Fígados e garrafas vazias
Pablo Capistrano
Escritor, professor de filosofia
Um dos elementos mais curiosos na vida de um professor é essa história de conteúdo. Muitas vezes a gente ouve um colega dizer: "Como posso dar todo esse conteúdo com uma carga horária de quatro aulas semanais?". Imediatamente, a gente se pergunta: "O que significa 'dar o conteúdo'?".
Podem-se fazer muitas piadas politicamente incorretas sobre esse tipo de pergunta. Um colega professor pode chegar para outro e jocosamente perguntar: "E aí? Já deu seu conteúdo esse mês?". Sempre que ouço alguém falar em "dar o conteúdo", lembro logo da representação do signo zodiacal de Aquário (que é o meu signo solar, diga-se de passagem). Chamado também de O Aguadeiro, a representação clássica do signo é de um homem (ou, às vezes, uma mulher) sentado nas nuvens, carregando um pote por cima do ombro e despejando um líquido em direção à terra. As raízes mitológicas desse signo remontam à figura de Prometeu, que, misturando o barro do chão às suas próprias lágrimas, criou o homem à imagem e à semelhança dos deuses. Para completar sua criação, Prometeu deu aos homens o fogo, a faísca do espírito roubada de Zeus e entregue à raça humana como técnica. Por esse crime, Prometeu é punido, condenado a ficar amarrado a um rochedo e sofrer eternamente o ataque de uma águia que lhe arranca o fígado.
Quando ouço alguém dizer que vai "dar o conteúdo", lembro logo de Prometeu e penso: "Meu Deus, lá se vai mais um fígado!".
A mitologia do conteúdo na educação produziu alguns graves deslizes. Primeiro, a ideia de que educar é apenas despejar um discurso qualquer ou um conjunto especifico de representações simbólicas na cabeça dos alunos. Segundo, a noção de que ou o professor ou o livro didático (na maioria das vezes) detêm a totalidade do conhecimento. Terceiro, a noção de que um aluno nada mais é do que um recipiente vazio e fechado, no qual deve ser depositado um determinado conteúdo, com o agravante de que ninguém sabe qual é o modo certo de destampar a rolha. Aí, inicia-se um rosário de angústias, lamentações, inquietudes, culpas e sofrimento. Sofre o professor porque não sabe onde está esse tal de conteúdo. Sofre o aluno porque já vem para a sala de aula lotado, e o conteúdo do professor não entra nele, e também porque, na maioria das vezes, não está muito a fim de destampar a própria rolha para o líquido alheio entrar. Sofre o sistema educacional que acaba por abrir mão de produzir seres autônomos e passa a gerar, em escala industrial, tanques furados que nem retêm o líquido alheio nem produzem o seu próprio.
Se, ao invés de nos preocuparmos com o conteúdo, começássemos a olhar para os recipientes que temos, talvez a educação pudesse ser o que ela realmente deveria ser, uma técnica antropoplástica de produzir aquilo que alguém, algum dia, chamou de gente. Como poderia dizer Kant, sujeitos, e não meros indivíduos.
Publicado em 31 de dezembro de 2005
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