Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Filme Histórico: Uma Luta Estética e Ideológica

A concepção heroica e pomposa da história, os grandes vultos, a história pacífica são, quase sempre, as características encontradas nos filmes históricos brasileiros, independentemente de qualquer pressão governamental. Basta lembrar que todos os temas dos filmes anteriores ao Cinema Novo, voltaram nas últimas décadas. Por exemplo: em 1917 temos um Tiradentes, ou O Mártir da Liberdade, e em 1977 vemos o lançamento de um O Mártir da Independência, Tiradentes de Geraldo Vietri. Diferenças técnicas à parte, é possível dizer que estes filmes trazem o mesmo tratamento em relação ao tema: valorização do herói. Por isso, não podemos dizer que as formulações da estética e da visão ideológica, que embasam a realização de filmes históricos, sejam de responsabilidade dos governos. Na verdade, há um complexo mecanismo através do qual se impõem tanto a visão histórica quanto a visão estética presentes nos filmes.

De um lado, este mecanismo inclui a escola e o livro didático transmitindo uma visão simplificada da História. Com isto, como nos diz Carlos Alberto Vesentini, "perdem-se as discussões, os debates, as divergências, o confronto. (...) No tornar simplificado e unitário o conhecimento, apenas um discurso se reforça e toma o 'ar' de verdade. Temas, em seu momento bastante complexos, são submetidos à simplificação, assumindo esse sentido de unicidade de significado" (A teia do fato, mimeo).

A prática do professor em sala de aula (ênfase na memorização de fatos, trabalho concentrado em questionários de respostas fechadas ou tipo teste de múltipla escolha, entre outros), salvo raras exceções, acaba por reforçar esse mecanismo, porque o conteúdo do livro didático, além de se mostrar como unitário, é apresentado ao aluno como a última palavra sobre o tema tratado. Assim, os estudantes são preparados para aceitar a visão histórica presente em filmes naturalistas. As aulas de História poderiam, aliás, funcionar como pólo de resistência a esta visão, mas como salientamos, dada a prática pedagógica dominante, isto não ocorre. Vários são os motivos que levam a este tipo de prática pedagógica e não é nosso objetivo aqui crucificar quem quer que seja - até porque as atuais condições de trabalho do professor de Primeiro e Segundo Graus dificultam a modificação desta prática - mas é preciso reconhecer o papel pouco criativo e acrítico que as aulas de História têm, muitas vezes, desempenhado. Este reconhecimento pode ser um ponto de partida para a mudança.

De outro lado, encontramos os críticos de cinema que têm um papel importante neste complexo mecanismo de imposição das visões estética e ideológica. Na maioria dos casos, estes críticos, cumprindo papel complementar ao do professor de História e do livro didático, exigem dos filmes históricos uma visão naturalista.

Na realidade, o filme histórico naturalista oferece às pessoas a ilusão de estarem diante dos fatos narrados (o que não se restringe ao filme histórico pois, em geral, toda a produção ficcional de estilo hollywoodiano está sujeita a este mecanismo ilusionista). Há aqui o ocultamento da linguagem, pois esta adquire total transparência. Desta maneira, o espectador não se pergunta em qual linha teórica a história do filme está sendo contada. Ela é mostrada como se fosse a única interpretação do fato, e a linguagem assume um papel fundamental. A esta linguagem estamos dando o nome de naturalista.

A estética naturalista constitui-se mediante uma manipulação muito particular do conjunto dos elementos que compõem a linguagem cinematográfica: comportamento da câmera, noção de continuidade, decupagem clássica, construção do espaço, relações da imagem com o som e, por fim, interpretação dos atores. Vejamos, de maneira simplificada, o tratamento que estes elementos recebem no interior desta visão estética.

A câmera tenta se comportar como se fosse o olho humano diante de um conjunto de objetos ou de pessoas. Nunca as cenas são mostradas mediante a utilização de uma angulação bizarra. Se a câmera não ficar bem comportada, o espectador perderá a sensação de estar em contato direto com os fatos: a ilusão se desfará.

A continuidade de cena para cena (manutenção da mesma intensidade de luz, mesmo figurino, mesmo local, etc.) também faz parte da estética naturalista. Há, portanto nestes filmes, um criterioso tratamento na passagem de uma cena para outra. Por exemplo: imaginemos que num determinado filme ocorra uma briga num bar. O mocinho machuca-se no rosto. A cena seguinte à luta não poderá, em hipótese alguma, em respeito ao naturalismo, mostrar o mocinho em perfeito estado, bonito, bem arrumado e sem a marca no rosto.

A decupagem clássica (segmentação das cenas em planos) oferece muitas possibilidades de intensificação emocional, além de maiores recursos para a narração. Imaginemos que num filme histórico qualquer, haja uma perseguição. As sequências filmadas (de acordo com os procedimentos de câmera anteriormente aludidos) serão cortadas e alinhadas (montadas) de modo a mostrar alternadamente perseguidos e perseguidores. Assim, são criadas maiores possibilidades para o estabelecimento de empatia do público com o filme e menores possibilidades de questionamento crítico da história apresentada.

A construção do espaço será feita de modo a não provocar estranheza no espectador. Portanto, o espaço deverá ser construído tal como ele aparecia para a nossa percepção imediata. Por exemplo: imaginemos uma conversa, numa sala de jantar, da qual todos os presentes participem ativamente. Toda a conversa deve ocorrer sem que tenhamos dúvida do local onde eles estão. Todos os enquadramentos devem tentar passar a ideia de que estão no mesmo lugar, na mesma sala de jantar. O som e a imagem devem estar perfeitamente sincronizados.

Por fim, a interpretação dos atores deve nos fazer acreditar que estamos diante de pessoas verdadeiramente incorporadas ao universo ficcional. As falas terão a fluência e o nível de complexidade encontráveis na realidade. Por exemplo: o autor que interpreta o papel de um médico falaria como um médico normalmente fala, etc. Os gestos não são largos e chamativos, mas discretos, ou o mais próximo possível daquilo que, em cada época, é considerado verossimilhante.

Por questões didáticas, tomamos a liberdade de decompor esta visão estética em seus vários elementos constituintes. Esta decomposição, porém, é arbitrária, pois estes elementos, no momento da projeção do filme, são oferecidos ao espectador de maneira interligada compondo o quadro da história que se quer contar.

Em suma: é possível afirmar que tanto no discurso histórico apresentado aos estudantes pelo professor através do livro didático, quanto no discurso cinematográfico naturalista, exigido pela maior parte da crítica de cinema, existe o mesmo mecanismo: o ocultamento das contradições, das divergências, dos confrontos.

BERNADET, Jean-Claude e RAMOS, Alcides Freire. Cinema e História do Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 1994 (pp.14 a 18).

Publicado em 31 de dezembro de 2005

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.