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Filosofia no vestibular
Giovânia Costa
Graduanda de Filosofia da UFRJ
Apresentação
A proposta de incluir a Filosofia no concurso Vestibular significa um reconhecimento do papel da Filosofia? Estamos preparados para o retorno da Filosofia ao Ensino Médio, que virá a reboque de tal decisão? Que formação temos na graduação e que formação poderemos levar para os jovens do Ensino Médio? Superamos a inutilidade da filosofia ou a reduzimos a mais uma matéria de prova?
A verdadeira filosofia consiste em reaprender a ver o mundo.(Merleau-Ponty)
Pensar filosoficamente, buscar ou inventar conceitos como suportes para a compreensão do mundo, é um exercício cotidiano que pode ter o seu "start" na leitura matinal do jornal.
A quantidade de informações distribuídas em textos e imagens não nos deixa esquecer que estamos no século XXI. No Brasil, as mudanças são radicais: um operário é presidente, a política nacional ocupa as páginas em PB e começamos a acreditar que o país gigante que dormia em berço esplêndido pode acordar e ocupar seu lugar. Tantas são as transformações que se nos detivéssemos nelas perderíamos o sentido desse trabalho para iniciar outro. Nesse momento, somente interessa situar que o mundo contemporâneo é de uma agilidade sem precedentes na história da humanidade. Creio que não há nada que possa contestar isto.
As transformações sociais e culturais da sociedade contemporânea nos convidam a repensar o papel das instituições, e de que forma estas são afetadas, contribuem e ampliam tais modificações. Modificações estas que exigem do homem contemporâneo uma qualificação para o exercício da cidadania, o que é muito mais amplo do que o domínio sobre uma técnica ou sobre uma área de conhecimento. Vivemos submersos numa tal complexidade que dificilmente é possível isolar um problema para resolvê-lo. Antes, é necessário contextualizá-lo e se contextualizar a partir dele para uma maior compreensão. A compreensão a que me refiro é singular, precisa buscar se livrar da armadilha de uma avaliação dos fatos por critérios médios que conduzirão a uma redução da realidade do problema.
Filosofia na Educação
A vida contemporânea nos exige mais do que sermos capazes de decorar enormes listas classificatórias, identificar símbolos, reproduzir dados. Estar preparado para o mundo atual, de velozes transformações e difíceis contradições, é saber compreender e agir, é participar socialmente. É ser capaz de elaborar críticas e propostas, é estar sempre atento porque o aprendizado é constante.
Mas como se preparar para isso? Onde? De que forma? A escassez de espaços públicos de lazer e cultura faz recair sobre a escola a enorme responsabilidade de ser talvez a mais forte referência positiva de sociabilidade de inúmeros grupos. A Universidade é também uma "escola" (não sei quando, na história da humanidade, o termo academia - que nos remete a Platão - passou a tratar do contexto universitário, e liceu - Aristóteles - passou a ser utilizado para se referir a outros graus, estabelecendo uma clara, e por vezes preconceituosa, diferença entre o ensino fundamental e o superior).
Quero aqui eliminar essa diferença e me referir à escola como espaço de aprendizagem. Este trabalho se insere num contexto escolar, e passamos o semestre tentando nos sensibilizar para novas posturas frente ao mundo. O mundo não está do outro lado da rua, está aqui nos corredores dessa universidade. Digo corredores porque, por vezes, qualquer cidadão do passado, se convidado a uma viagem ao futuro, se sentiria tranquilo como se nada tivesse mudado, ao cair dentro de uma sala de aula.
A inclusão da Filosofia no processo de seleção pública de uma das maiores universidades do país pode acontecer de várias formas. O "conhecimento" pode caber em quadradinhos onde marcamos X, pode ser reduzido a datas de nascimento e morte dos pensadores, pode ser um convite ao pensar.
Essa mudança da qual a UFRJ é a pioneira (a medida foi aprovada em maio de 2003, e passa a valer no vestibular de 2005) vem ao encontro de toda uma discussão presente na sociedade brasileira e consolidada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação da Educação Nacional (LDB, 1996):
"Artigo 36, § 1º. Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal forma que ao final do ensino médio o educando demonstre: (...) III - domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania."
Essa determinação mereceu o seguinte comentário nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1999) para o Ensino Médio:
A nova legislação educacional brasileira parece reconhecer, afinal, o próprio sentido histórico da atividade filosófica...
Com todas as críticas pertinentes ao processo de implantação da LBD (também tema para outro trabalho), ela vem contribuir para o esforço de melhorar o sistema educacional, expandindo-o para mais pessoas e melhorando a qualidade para fazer frente aos desafios do nosso tempo.
Mas estar presente na lei não implica necessariamente numa mudança efetiva do comportamento das instituições e das pessoas. Se a lei existe para garantir uma educação de qualidade, o problema maior é que as escolas - entendidas aqui como espaço, infraestrutura física e material e profissionais responsáveis pelo ensino - não estão preparadas para a reivindicação social de preparar os alunos para a vida, para o exercício do pensamento. As escolas, de nível fundamental, médio ou superior, continuam em sua maioria despejando conhecimentos para serem acumulados. Ora, vivemos na era das tecnologias e acumular conhecimento passou a ser tarefa mais facilmente realizada pelas máquinas. Ao homem cabe decidir o que fazer com o conhecimento acumulado, e para isso a tradição de compartimentar disciplinas, ementas fixas, atividades padronizadas não referidas a contextos reais, não ajuda muito a saber como lidar com o "tal conhecimento".
As universidades brasileiras se veem diante dessa questão, assim como todo o contigente de alunos que a elas chegam oriundos do Ensino Médio - seja ele da rede pública ou particular, com algumas distinções mas não significativas para esse contexto, pois o ponto central não é somente a qualidade dos conteúdos transmitidos mas a falta de relação entre eles, como se o mundo fosse também compartimentado em disciplinas.
Pretendo lançar sobre a escola um olhar contemporâneo, que nos convida à complexidade e não à redução, nos convida a relacionar e não a separar. Pensar-sentindo ou pensar agindo, e não somente a eterna contemplação (mal lida se considerada como contemplar de fora do que é contemplado). Pensar sobre os novos desafios que o sistema educacional precisa enfrentar e de que forma a Filosofia e a inclusão dessa disciplina no vestibular podem nos ajudar nessa reflexão.
Desconstruindo as "verdades" científicas
Um sistema de avaliação sobre o conhecimento que temos de filosofia nos põe diante de inúmeras questões. Se já é um desafio a compreensão do ensinar-aprender, em filosofia parece-me que o desafio é ainda maior, pelas características que devem ser próprias ao filosofar.
As ciências têm suas metodologias. Os cientistas conseguem estabelecer seus conteúdos específicos e já consolidaram uma progressão de conhecimentos onde partem de conceitos simples que são pré-requisitos para outros mais complexos. E a filosofia? Existe uma filosofia para ser estudada, com há uma física, uma química? O que deve o professor de filosofia ensinar, se o que existe são filosofias, linhas de pensamento? Há pré-requisitos necessários? É indispensável conhecer Platão para se ler Descartes, ler Descartes para entender Deleuze?
Não, não há um começo para se introduzir a filosofia, a não ser o universo de conhecimentos e valores que cada um já traz consigo. Então, como ensinar filosofia para que possa acontecer uma verificação em massa do que foi aprendido?
Nós, alunos de graduação, não tivemos filosofia no antigo 2ª grau (hoje Ensino Médio). Superamos o obstáculo de sermos inúteis para a sociedade e nos atrevemos a cursar filosofia na universidade. Pouco se fala dos porquês de tal conhecimento ter sido retirado dos currículos na ditadura e às vezes é difícil situar até para nós mesmos a importância desse estudo. De perigosa (porque transformadora), a filosofia passou a ser considerada por muitos como inútil para qualquer finalidade que não ela mesma.
Mas, desde Platão, é intuída a vocação do filósofo como homem atuante no seu tempo e seria necessário fechar os olhos para não ver isso. Aquele que superou o conhecimento ilusório das sombras retorna à caverna e tem um compromisso com a paideia. "A educação é, portanto, a arte que se propõe a este fim, a conversão da alma..." (República, de Platão).
Mas Platão buscava a "verdade", e se ela existia há 25 séculos atrás, morreu de velha! "Verdade é uma palavra oca" (André Martins), não faz falta a nenhum sentido. É uma crença justificada, um ato de fé.
Os tempos mudaram e o professor saiu do papel de conhecedor da "verdade". Cabe a ele dar condições para que o aluno construa um conhecimento crítico e se oriente na autonomia da ação.
Dessa forma poderemos superar o absurdo da inutilidade da filosofia, ou do filosofar, para situar o filósofo como criador de conceitos originais que possam servir de suporte para entender o mundo atual e agir sobre ele. O retorno da disciplina Filosofia ao ensino regular de nível médio pode apenas somar-se às muitas disciplinas com que os alunos têm que lidar, mas também pode ser a possibilidade (merecida e necessária) de examinar de forma crítica as certezas recebidas das outras disciplinas, colocando o aluno na posição de descobrir os preconceitos velados que se escondem atrás das verdades estabelecidas pelas ciências. A verdadeira reflexão auxilia a lançar um novo olhar sobre o mundo. Não de fora dele, mas buscando uma compreensão transformadora das experiências vividas.
Mas, se pensamos aqui a possibilidade transformadora do retorno da filosofia para a escola de nível médio, ampliando, ainda que de maneira incompleta, seu valor social, devemos nos ater para a formação do professor-filósofo que poderá estar à frente da condução desse processo.
A mesma crítica se aplica à universidade que forma tal professor. A especialização "fordiana" há muito já atingiu as faculdades de filosofia e é urgente ampliar o debate sobre isso. Não podemos ignorar a complexidade da vida, a forma caótica como o pensamento se apresenta. Digo caótica para se opor a linear, a controlada. Devemos aprender a investir no impensado presente no pensamento, e reconduzir a questão para o pensar do próprio pensar.
Para que a conquista política da valorização social da filosofia com sua inclusão no vestibular da UFRJ não se esvazie, é necessário que voltemos o olhar para a formação que estamos experimentando e de que forma estamos nos preparamos para introduzir no mundo, ou em novas mentes, a estranheza, o questionamento próprio do filosofar. Isso é estar "antenado" com o seu tempo, é ser contemporâneo.
...desde que há Estado - da cidade grega às burocracias contemporâneas - a ideia de verdade sempre se voltou, finalmente, para o lado dos poderes (ou foi recuperada por eles como testemunha, por exemplo, a evolução do pensamento francês do séc. XVIII ao XIX ). Por conseguinte, a contribuição específica da filosofia que se coloca ao serviço da liberdade, de todas as liberdades, é a de minar, pelas análises que ela opera e pelas ações que desencadeia, as instituições repressivas e simplificadoras: quer se trate da ciência, do ensino, da tradução, da pesquisa, da medicina, da família, da política, do fato carcerário, dos sistemas burocráticos, o que importa é fazer aparecer a máscara, deslocá-la, arrancá-la...François Châtelet
Bibliografia
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino médio. MEC: Brasília, 2002.
_______. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. MEC: Brasília, 1996.
_______. Programa Brasileiro de Apoio ao Educador do Ensino Médio (Probeem). MEC: Brasília, 2003.
CHÂTELET, F. (org.).História da Filosofia. Vol.8. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
PLATÃO. República. 8ª ed. Lisboa: Fundação C. Gulbenkian, 1996.
Texto produzido para o curso "Filosofia Contemporânea I", ministrado pelo professor André Martins, da UFRJ.
Publicado em 31 de dezembro de 2005
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