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Função paterna: a lei na contemporaneidade
Leonardo Soares Quirino da Silva
O que para nossos antepassados era estabelecido como "pode" e "não pode" por intermédio da autoridade incontestável exercida pelo chefe da família - o pai - parece ter desaparecido do cenário atual com repercussões na vida das pessoas e na ordem social.
Essa mudança traz impactos também nas relações entre aluno, professor e escola. Para a psicanalista Tereza Nazar, da Escola Lacaniana - que reúne psicanalistas lacanianos e freudianos -, uma das raízes do problema está na transformação desses três atores em produto.
Para discutir as consequências dessa crise na psicanálise, sociedade, filosofia e direito, a Escola Lacaniana promove o congresso internacional "Função paterna: a lei na contemporaneidade", entre os dias 1 e 3 julho no Colégio Bennett.
Centralidade do dinheiro
Há três anos, Tereza coordena a pesquisa "função paterna" realizada por dois dos cartéis -nesse caso cartel é o termo lacaniano para grupo de estudo, composto por quatro a seis indivíduos, sendo um deles o coordenador - da escola, junto à 1ª Vara da Infância e da Adolescência da cidade do Rio de Janeiro. Esses grupos atuam nos processos de adoção ou com adotados, quando os representantes do poder judiciário percebem a necessidade de atendimento especializado.
Segundo a psicanalista, esse problema decorre de o pai hoje não ser visto como referência: "Até porque muitas famílias estão sendo organizadas de forma diferente, em que a mulher é mais importante", nos fala Tereza. Uma razão apontada é que o dinheiro deslocou o centro do poder dentro da família. "Com ou sem o homem dentro de casa, o fato de a esposa ganhar mais faz com que a palavra do pai seja pouco reconhecida", observa.
Função paterna
Para a teoria psicanalítica, a função paterna - que não necessariamente é desempenhada pelo pai da criança, mas normalmente por ele - consiste em barrar a relação sem limites entre a mãe e o filho.
Ao contrário de outros animais, que funcionam pelo instinto, para a psicanálise o homem funciona por pulsão. Se o instinto já contém todos os passos que o animal poderá dar, a pulsão é uma energia sem limites que move o homem para qualquer lugar e pode ser modificada apenas por meio da palavra. O que permite falar é a lei, presente na fala e na linguagem.
Tereza observa que antes da constituição da própria imagem é preciso que as crianças peguem "imagens acústicas", constituídas por intermédio da linguagem. Isso se faz ao falar diretamente com a criança. Por esse processo o bebê começa a se perceber como indivíduo, pois nos primeiros meses de vida, a pessoa ainda se percebe como parte da mãe. "Isso introduz a separação mesmo que na vivência, no imaginário, a criança se percebe em fusão com a mãe", nota a psicanalista.
À medida que a mãe vai se dedicando a outras tarefas e outros interesses, o neném percebe que ela tem outro desejo que não ele. Existe algo que é terceiro, que a criança ainda não sabe o que é, mas a quem ela também está submetida. Só que a identidade desse terceiro não é clara para o bebê nesse momento.
O mito de Édipo, traduz o que se passa com a criança nesse momento, que serve para explicar o que ela ainda não podia entender. Dessa forma, o mito põe as coisas em seus lugares: "Porque coloca para a criança que ela não é tudo na vida da mãe, para a mãe que a criança não é o objeto dela e coloca que o pai tem uma função na família", afirma Tereza.
A psicanalista observa que a função do pai não é cuidar necessariamente das necessidades da criança, mas cuidar para que ela preserve esse espaço de relações sociais mínimas. É ele que estabelece as normas dos relacionamentos na família. Por isso, a mãe tem que falar sempre no pai e não fazer ameaças como "se você fizer isso te bato". "Assim, ela estará introduzindo a lei simbólica", destaca.
Sociedade e crise da função paterna
Tereza ressalta que de forma semelhante à família, nossa sociedade precisou constituir um código de leis com essa referência a um terceiro que regula as relações. Neste caso, o Estado. Contudo, para ela, hoje o Estado não consegue funcionar como uma instância simbólica por estar corroído.
A psicanalista observa, ainda, que não se pode pensar que alguém pode exercer função anonimamente. "Se o Estado não tem ninguém, as pessoas buscarão outras pessoas como gurus, líderes religiosos etc. Por quê? Porque falta uma figura forte que encarne essa função de lei", nota Tereza.
Ela adverte, porém, que essa pessoa não deve se tomar pela lei. "É fundamental que tenha um juiz que desempenhe o papel simbólico da lei, que a palavra dele seja respeitada, desde que ele saiba que não está ali para arbitrar ao seu bel prazer, e, sim, em nome dessa instância legal do Estado", fala a psicanalista.
Como deveria ser
Para ela, da mesma forma que na sociedade, o pai muito severo ou pai frouxo não transmitem o verdadeiro valor dessa função. O certo é saber pesar entre poder e amor. Ela exemplifica o pai como sendo aquele que participa de atividades com o filho, como fazer os deveres de casa ou jogar futebol, mas, ao mesmo tempo, é capaz de dizer não com firmeza.
Ela defende, ainda, que também não se deve explicar muito, pois "se você explicar muito ela dança". Para Tereza, quanto mais há explicação, mais ela soa insólita.
Dúvida e culpa
Tereza aponta que a mania "psicológica" de se explicar demais para as crianças, de explicar aquilo que os adultos não têm a menor convicção, simplesmente acaba não transmitindo nada.
No entanto, ela pondera que há momentos em que se pode dialogar, como no caso em que a mãe ou pai proíbe a criança de subir em cadeira para que ela não se machuque. Há outros casos, porém, em que é só não e pronto, necessário também na formação das crianças.
Ela observa que, por causa da psicologização das relações familiares, as pessoas não fazem isso por não estarem certas do que tem que fazer. "Uma mãe não sabe mais o que é ser uma mãe; um pai não sabe mais o que é ser um pai", nota.
Além dos efeitos da psicologização, Tereza aponta o ritmo atual como outro fator que está corroendo a distância entre pais e filhos. Ao sair de manhã e só voltar à noite, os pais acabam não convivendo e não conhecendo seus filhos, o que faz com que se sintam culpados. Como forma de compensar a ausência e a culpa que sentem, acabam permitindo demais.
Conviver é preciso
Para Tereza, o que os filhos realmente querem é que os pais se importem com eles. Ela destaca a importância de o pai que não tem tempo ao menos ligar para saber como foi o dia do filho. "Mesmo que cada um tenha feito as refeições em horários diferentes, é preciso que cada um tenha um tempo do seu dia para conversar, nem que seja pelo telefone. É melhor falar pelo telefone do que não falar", diz a psicanalista.
No entanto, nada substitui a convivência saudável com os pais, o que implica que os pais estejam realmente ali e não achando que deveriam estar em outro lugar. Ela salienta, ainda, a importância de se estabelecer rituais para que a família se encontre. São esses "encontros marcados" que constituem a família, na medida em que existe uma palavra que circula ali.
Dinheiro, produto e escola
Perguntada sobre os pais que parecem delegar a função de educar seus filhos para escola, Tereza foi taxativa: "Quem educa é a família, a escola simplesmente traduz para nível mais amplo aquilo que tinha que ter sido instalado pelos pais", conclui.
Entre as coisas que a criança já deveria vir sabendo está a importância de se observar a hierarquia, entendida como o reconhecimento dos lugares. A psicanalista salienta que a hierarquia não deve ser usada como desculpa para comportamento arbitrário, pois "quando usada com bom senso, com ética, com dignidade, ela é muito bem vinda, ela tem sua função".
Com relação à escola, Tereza ainda alerta que os professores parecem estar desistindo de sua função. "Talvez porque eles hoje, também como os pais, têm que cumprir muitas funções em muitos lugares, porque são mal pagos, porque também deixam seus filhos em casa e não podem dar a atenção e, ainda, porque não encontram na escola apoio para exercer sua autoridade", salienta.
Para a psicanalista, o problema é que a educação virou, neste país e no mundo, um comércio, da forma mais selvagem. Com isso, há o desinvestimento na formação e na transmissão de conhecimento e do lugar de autoridade que a escola deveria ocupar.
A instituição de ensino passa, então, a servir simplesmente ao acúmulo de conhecimento "e, pior que isso, a disputa do marketing do nome da escola". O resultado, para Tereza Nazar, é o aluno, o professor e a própria escola passarem a significar apenas um produto, no grande mercado da cultura
Publicado em 20/06/2005
Publicado em 31 de dezembro de 2005
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