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Futurama

Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia

Um dos maiores construtores de estradas que o século XX conheceu chamava-se Robert Moses. Ele entrou no cenário da engenharia mundial por intermédio do perfeito de Nova York, La Guardia, um sujeito baixo, careca e hiperativo, filho de judeus e italianos. No período mais obscuro da cidade, após o crash da bolsa, foi uma espécie de ícone que ajudou a reerguer a autoestima da cidade e sua capacidade de reação, amortecida pelas filas de desempregados a mendigar um pedaço de pão e um prato de sopa.

La Guardia tinha um projeto: "transformar Nova York num laboratório gigante da construção civil". Conseguiu isso arrancando dinheiro de Roosevelt, que o descrevia como "um sujeito magnético que chegava contando uma história emotiva e que em pouco tempo fazia você chorar. Só aí você entendia que ele havia conseguido arrancar mais uns dois milhões de dólares do orçamento federal para a cidade de Nova York".

Foi Moses que, seguindo a utopia de La Guardia, cortou Nova York ao meio, destruindo bairros centenários e abrindo artérias gigantescas por toda a cidade. Ali foram definidos dois dos mais importantes signos da modernidade: a estrada e o automóvel. Agora era construção das estradas que redimensionava o desenho arquitetônico das cidades. A partir desse momento, a falência ou sucesso de um aglomerado urbano estaria diretamente ligado à falência ou ao sucesso de sua malha rodoviária. De lá para cá, é o movimento que define nossa experiência de vida.

Imagine, amigo leitor, que, na época da revolução agrícola, o homem estabeleceu um contacto muito próximo com a terra. Sua relação com a propriedade era o que o definia enquanto homem. Viver sempre no mesmo lugar. Na terra onde seus ancestrais estavam enterrados. Pode-se até dizer que foi a agricultura que inventou o lugar e a história. A ligação do homem com o solo em que nasceu e para o qual iria voltar quando morresse definia seu pertencimento no mundo. Seu espaço e seu tempo. Vender uma propriedade imóvel na antiguidade não era algo comum, porque a terra não pertencia ao sujeito, mas à sua comunidade, à família, aos seus ancestrais. Você não poderia descartar seu passado sob pena de deixar de ser quem é. De se dissolver no vazio e na indefinição transitória da falta de um lugar.

O automóvel mudou tudo. As estradas de Moses na Nova York de La Guardia introduziram na experiência humana a dissolução da história e o imperativo da desterritorialização. A futurama urbana dos sonhos dos urbanoides do século vinte forçou um contato muito próximo com o tão temido e assustador vazio que fazia com que o homem antigo sacrificasse seus melhores bois na época das festas de Zeus. Agora, o Kaos (assim mesmo, com "K", para diferenciar do nosso conceito neolatino), e não mais o Cosmos, é que denota a experiência da vida urbana. Hoje o futuro é passado. Podemos vê-lo se projetando em branco e preto por meio de nossa janela eletrônica na sala de estar de nossos apartamentos. Esse Kaos (que só subsidiariamente tem a ver com bagunça) é a abertura para o vazio que nos define. O vazio de não ter mais um único lugar nem de pertencermos mais a um único tempo.

Se você me perguntasse o que vai ocorrer com nossa futurama, eu não saberia responder. Intuitivamente, eu acredito que esses modelos vão nos levar a uma encruzilhada a um só tempo instigante e perigosa. Pela janela de nosso mundo em movimento nós corremos pelas artérias da modernidade sem saber mesmo para onde estamos indo, porque o sentido do deslocamento, nos dias de hoje, nesse futuro cristalizado, não parece ser o de chegar a algum lugar, mas o de construir um eterno atravessar. Um infinito cruzar de abismos e fronteiras que nos faz flutuar sobre o espaço do mundo e o tempo de nossa própria imaginação.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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