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Gênero e Direitos Humanos

Leila Linhares Barsted

Diretora da organização não-governamental CEPIA, Conselheira do CEDIM, Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros.

Contribuição do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Rio de Janeiro (CEDIM)

A reflexão sobre as transformações estruturais necessárias para a superação das desigualdades de gênero no Brasil não pode subestimar os avanços legislativos produzidos, nacionalmente, a partir do processo de redemocratização, na década de 1980, e internacionalmente pela ação da Organização das Nações Unidas que, através de Convenções, Tratados, Declarações e Planos de Ação, definiu um novo paradigma ao declarar que os direitos das mulheres são direitos humanos. Esse novo direito pode constituir-se em importante instrumento político para fazer avançar conquistas sociais e impedir retrocessos. Por isso, conhecer esse novo direito e saber utilizá-lo tem sido um desafio constante para as mulheres brasileiras.

No Brasil, a luta do movimento de mulheres, por instrumentos legais democráticos, tem se dado em duas direções: voltada para o Estado, para exigir a realização dos direitos conquistados; em direção à sociedade, através de ação pedagógica, visando à mudança de mentalidades com a difusão de uma nova cultura de respeito às diferenças.

Essa luta tem uma longa história marcada por obstáculos, mas, também, por conquistas. Como exemplo dessas últimas, pode-se citar: na década de 1930, o reconhecimento do sufrágio universal para as mulheres e dos direitos trabalhistas; na década de 1960, a conquista do direito à plena capacidade civil; na década de 1970, a legitimação, via jurisprudência, dos direitos da companheira, a lei do divórcio dando iguais direitos a homens e mulheres e a extensão, ainda que restrita, da legislação trabalhista para as trabalhadoras domésticas; na década de 1980, a elaboração do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, as conquistas constitucionais entre as quais o pleno reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres na vida pública e na vida privada, o repúdio legal à violência doméstica, o reconhecimento da união estável como unidade familiar, a garantia de direitos reprodutivos; as leis estaduais e municipais que criaram os Conselhos Nacional e Estaduais dos Direitos da Mulher, as Delegacias de Mulheres e os primeiros abrigos para mulheres vítimas de violência doméstica. Na década de 1990, a expansão desses serviços, a regulamentação dos direitos reprodutivos; a legitimação, via norma técnica do Ministério da Saúde, dos serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência sexual, incluindo a contracepção de emergência, a profilaxia das DSTs/AIDS e a interrupção legal de gravidez resultante de estupro.

Tais conquistas não se deram sem pressões e manifestações políticas. Além disso, e fundamentalmente, só foram possíveis através de um rico processo político de articulação interna e externa promovido pelo movimento de mulheres que, desde meados da década de 1970, tornou-se um ator social fundamental nesse processo. Desde então esse movimento tem lutado pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, defendendo a eliminação de todas as formas de discriminação, tanto nas leis como nas práticas sociais de forma articulada, incluindo a formação de redes. Tal articulação possibilitou aparar os pontos de dissenso entre os diversos setores do movimento e ampliar o campo político com a adesão de novos atores. Destaque deve ser dado à profissionalização das ONGs e movimentos autônomos de mulheres que se autocapacitaram para atuarem como atores sociais.

Não se pode, por outro lado, subestimar a produção intelectual de pesquisadoras feministas que, em diversos países, incluindo o Brasil, passaram a desenvolver estudos visando dar visibilidade à situação das mulheres e analisar as causas do baixo status feminino na sociedade. Esses estudos constituíram-se em um forte instrumento de denúncia das discriminações além de possibilitarem a superação de uma visão homogeneizadora, dando visibilidade à situação das mulheres negras e à relação entre sexismo e racismo. Tornaram-se, também, fundamentos para a demanda por políticas sociais que contribuíssem para a superação dessas discriminações. Um importante alento foi dado ao debate teórico com a introdução dos "estudos de gênero" que procuram dar conta dos significados da masculinidade e da feminilidade para além das diferenças biológicas inscritas nos corpos de homens e mulheres. O conceito de gênero passou a ser utilizado politicamente para refutar a ideia de uma essência feminina, que por si só explicaria a subordinação das mulheres, para compreender os fundamentos e consequências das relações de poder entre os sexos e orientar as estratégias de luta pela equidade entre homens e mulheres. Paralelamente, a produção e a interpretação de dados estatísticos, nacionais e internacionais, desagregados por sexo, deram visibilidade pública à discriminação contra as mulheres, em especial contra as mulheres negras.

Outro importante fator para a legitimidade das denúncias e demandas do movimento de mulheres foi a produção de uma legislação internacional, em especial a elaboração, pela Organização das Nações Unidas, da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, em 1979. Por pressão dos movimentos feministas de diversos países, essa Convenção constituiu-se em marco histórico na definição internacional dos Direitos Humanos das mulheres, concretizando um compromisso assumido na I Conferência Mundial da Mulher, realizada no México em 1975. Abarcando áreas como trabalho, saúde, educação, direitos civis e políticos, estereótipos sexuais, prostituição e família, essa Convenção foi o primeiro instrumento internacional de direitos humanos especificamente voltado para a proteção das mulheres.

Em seu artigo 1º, a Convenção considera que constitui discriminação contra as mulheres:

...toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher (...) dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer campo.

Na Convenção é relembrado que

...a discriminação contra a mulher viola os princípios da igualdade de direitos e do respeito da dignidade humana, dificulta a participação da mulher, nas mesmas condições que o homem, na vida política, social, econômica e cultural do país, constitui um obstáculo ao aumento do bem-estar da sociedade e da família e dificulta o pleno desenvolvimento das potencialidades da mulher para prestar serviço a seu país e a humanidade.
Em 1988, foi eliminado, legalmente, o obstáculo para o Brasil ratificar totalmente a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979. No entanto, essa ratificação só ocorreu em 1994, quando a Convenção passou a ter plena aceitação jurídica em nosso país, com folga de lei interna. É importante assinalar que, em março de 2001, o governo brasileiro assinou o Protocolo Opcional que reforça essa Convenção, conferindo ao Comitê de monitoramento da Convenção poderes para receber denúncias de violações aos direitos humanos das mulheres e contribuindo para a efetivação desse importante instrumento de proteção aos direitos humanos das mulheres. Este Comitê, previsto na Parte V, artigos 17 a 22 da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres é, também, denominado de CEDAW, sigla em inglês da Convenção.

O Brasil assinou essa Convenção em 1981, colocando, no entanto, reservas (ao assinar um Tratado ou Convenção internacional, um país pode colocar reservas a determinadas partes desses Documentos, isto é, não endossá-los integralmente) relativas ao Capítulo 16, tendo em vista que nosso Código Civil ainda não reconhecia a igualdade entre o marido e a mulher, atribuindo ao homem a chefia da sociedade conjugal. Em 1988, a nova Constituição Federal brasileira consagrou a igualdade entre homens e mulheres e, explicitamente, no artigo 226, §5°, declarou a igualdade entre os cônjuges nas relações familiares, incorporando integralmente, portanto, em nossa legislação os compromissos internacionalmente assumidos.

É importante assinalar ainda que, na década de 80, antes da realização da III Conferência Mundial da Mulher, em Nairobi, as Nações Unidas enviaram aos Estados Membros um questionário sobre o cumprimento da Convenção de 1979, visando avaliar seu impacto na vida das mulheres, os avanços e obstáculos à sua realização (a Convenção prevê em seu texto a apresentação pelos Estados Membros de relatórios periódicos sobre o cumprimento da Convenção. O Estado brasileiro ainda não apresentou nenhum relatório). Apesar de poucos Estados Membros terem respondido a esse questionário, diversas organizações de mulheres, em todo o mundo, apresentaram suas avaliações, que, em muitos casos, contrariavam as otimistas avaliações oficiais dos Estados Membros. Tais avaliações permitiram que se apresentasse, em Nairobi, um diagnóstico preocupante que revelava ao mundo a grave situação das mulheres em todos os países; o lento avanço da incorporação de suas reivindicações e dos compromissos internacionais e a persistência das discriminações expressas de diversas formas, das mais sutis às mais cruéis. Face a tal constatação, a Conferência de Nairobi traçou metas para o futuro, consubstanciadas em ações concretas que deveriam ser implementadas para superar as discriminações e as desigualdades de gênero e proporcionar o desenvolvimento das mulheres.

Nesse sentido, ao afirmar que os direitos das mulheres são direitos humanos, a Declaração e o Programa de Ação da Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993, pela Organização das Nações Unidas, deram alento à introdução da perspectiva de gênero em todas as demais Conferências da ONU da década de 1990. Em Viena, as Nações Unidas reconheceram que a promoção e a proteção dos direitos humanos das mulheres devem ser questões prioritárias para a comunidade internacional. Consolidou-se, dessa forma, um longo caminho iniciado em 1948 quando da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Na conformação desse caminho, no âmbito das Nações Unidas, foi fundamental a atuação da Comissão sobre a Condição da Mulher e do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres. Além disso, outras instâncias, como o Fundo das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM) e inúmeras comissões sobre as mulheres em órgãos como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), por exemplo, passaram a atuar no apoio a programas voltados para o desenvolvimento das mulheres.

Assim, a especificidade da condição social da mulher passou a ter uma visibilidade maior dentro da Organização das Nações Unidas, esperando-se, como consequência, a mudança do deplorável quadro sobre a situação das mulheres apresentado quando da III Conferência Mundial da Mulher, em 1980.

Tais iniciativas foram decisivas para a proclamação, em 1993, na Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, de que os direitos da mulher e da menina são parte inalienável, integrante e indivisível dos direitos humanos universais. Em 1994, a Organização dos Estados Americanos (OEA) elaborou a Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), suprindo a lacuna da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, que não tratou do tema da violência contra as mulheres.

Na década de 90, as Conferências de População e Desenvolvimento, no Cairo (1994) e a IV Conferência Mundial da Mulher, em Beijing (1995), entre outras, contribuíram decisivamente para firmar conceitos fundamentais para um novo direito internacional dos direitos humanos que contemple as mulheres, tendo em vista a universalidade, a indivisibilidade e a inalienabilidade desses direitos, incluindo o reconhecimento do direito à saúde, com destaque para a saúde e para os direitos reprodutivos.

É importante destacar que os tratados, convenções e pactos que foram assinados pelo Brasil em fóruns internacionais e ratificados pelo Congresso Nacional brasileiro tem status constitucional. Por outro lado, se as Declarações internacionais e planos de ação das Conferência Internacionais, assinados pelo Estado brasileiro, não têm força de lei, tais instrumentos devem ser considerados e utilizados como princípios gerais do direito e, como tal, devem orientar a produção legislativa e a interpretação da lei quando de sua aplicação. O conteúdo dessas Declarações e dos Planos de Ação do Ciclo de Conferências das Nações Unidas sobre Direitos Humanos deve ser absorvido pela doutrina jurídica como uma das fontes do direito nacional. Deve influenciar a formação das novas leis e de uma jurisprudência calcada nos valores dos direitos humanos.

No entanto, muito ainda precisa ser feito no plano legislativo tanto para eliminar normas discriminatórias quanto para impedir o retrocesso através da consolidação social dos direitos conquistados. Assim, sem subestimar os notáveis avanços legislativos e as efetivas mudanças ocorridas, em menor ou maior escala, na vida das mulheres, em vários Estados Membros das Nações Unidas, incluindo o Brasil, estas ainda sofrem discriminações de diversas ordens, flagradas pelas estatísticas sociais que revelam a feminilização da pobreza, a baixa representatividade nos espaços de poder do Estado e da sociedade, e apontam, portanto, para uma enorme distância entre os instrumentos legais nacionais e internacionais de proteção aos direitos humanos e as práticas sociais. De fato, as políticas e os programas econômicos mundiais e nacionais, caracterizados pelos processos de ajustes estruturais, se acarretam consequências perversas para os homens, têm incidido de forma ainda mais penosa sobre as mulheres, em especial sobre as mulheres negras.

A Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial da Mulher, de 1995, constata que a vida e as aspirações das mulheres são restringidas por atitudes discriminatórias e estruturas sociais e econômicas injustas. Considera que a emancipação das mulheres é uma condição básica para a existência de justiça social e, nesse sentido, não deve ser encarada como um problema apenas das mulheres, mas deve envolver toda a sociedade.

O grande desafio que se coloca, a partir do quadro legislativo favorável, nacional e internacionalmente, é como atuar para que o reconhecimento dos direitos humanos das mulheres seja capaz e eficaz na geração de políticas públicas e ações que concretamente contribuam para o "empoderamento" das mulheres e a mudança dos graves indicadores sociais, potencializados quando se articulam as variáveis sexo/raça/etnia [a esse respeito, ver Barsted, Leila Linhares; Hermann, Jacqueline; e Vieira de Mello, Maria Elvira (organizadoras). As Mulheres e a Legislação contra o Racismo. Rio de Janeiro: CEPIA, 2001.].

Em muitos casos, as decisões tomadas em fóruns internacionais, mesmo quando aprovadas por unanimidade, tornam-se mera retórica nos territórios nacionais. Isso porque, além dos obstáculos culturais, esbarram na dificuldade de compatibilizar ações na área dos direitos humanos com modelos de desenvolvimento econômico e político excludentes e, portanto, incompatíveis com esses mesmos direitos. No entanto, historicamente, pode-se dizer que os tratados e convenções internacionais e as declarações oriundas das Conferências das Nações Unidas têm gerado uma espécie de "cultura" jurídica que fortalece os movimentos sociais nacionais organizados em torno da luta pela equidade na lei e na vida. Com essa perspectiva, o papel dos operadores do direito que atuam junto aos movimentos sociais é estratégico para impactar às instituições da justiça, em especial o Poder Judiciário.

Assim, é importante que os movimentos sociais conheçam, debatam e deem amplo conhecimento a esses instrumentos e mecanismos nacionais e internacionais de proteção aos direitos humanos. E necessário também que atuem e se articulem politicamente para pressionar o Estado na adoção de posições mais avançadas e que possam impactar toda a sociedade, educando-a para o respeito aos direitos humanos e ao desenvolvimento econômico e social baseado em critérios de equidade.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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