Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Globalização e desigualdades sociais

Cândido Grzybowski

Sociólogo, diretor do Ibase

O que traz de novo o Fórum Social Mundial (FSM) para o debate sobre a globalização? Em termos muito diretos e de forma sintética, diria que é a radicalidade da visão social. O FSM põe em questão a economia como prática, como ciência e, sobretudo, como construção ideológica-política expressa no neoliberalismo. Por isso, ao visar o Fórum Econômico Mundial como o pólo antagônico de um grande movimento de ideias, para o qual o FSM quer ser um dos grandes suportes, estamos na verdade definindo a própria radicalidade da perspectiva que nos anima.

Vale a pena deter-se um instante nesta questão, pois ela atravessa o Fórum como um todo e é um dos elementos difusos que, como cimento, liga as coisas. Tanta gente adere ao FSM porque ele repõe princípios e valores éticos como base da crítica ao processo de globalização econômico-financeira, regulada pela lei selvagem do mais forte em termos de mercado e pela repressão policial-militar, se necessário for, a serviço da estratégia de busca de lucros e acumulação dos grandes conglomerados multinacionais. Tais princípios e valores éticos recolocam visões utópicas como referência na luta social e alimentam a construção efetiva de uma "outra globalização" no momento presente.

Trata-se da consciência de humanidade na diversidade do que somos e da consciência dos limites e possibilidades de nosso maior patrimônio e bem comum, a natureza que nos dá vida. Consciência que se expressa na radicalidade de reconhecer-nos todas e todos como portadores dos mesmos e iguais direitos, nossa comum cidadania no planeta Terra. Diante da diversidade de culturas, religiões e estilos de vida, de situações geográficas, processos e estruturas, diversidade de gênero e etnias, de idade e opções que nos caracterizam, pela primeira vez na história humana temos, em escala planetária, possibilidades reais de nos reconhecermos na qualidade comum de cidadãs e cidadãos, compartindo os mesmos recursos. A força motriz do FSM é a emergência política de tal consciência, atravessando novos e antigos movimentos sociais, organizações e entidades da sociedade civil, redes, alianças, coalizões e campanhas mundiais.

Com tal base comum e dada a conjuntura mundial de crescente insatisfação com o rumo do processo dominante de globalização, o FSM é antes de tudo um convite para que voltemos a sonhar e a construir utopias, acreditando que um outro mundo é possível.

Qual é este outro mundo? Certamente plural e diverso como somos, includente e solidário para dar lugar a todos, de liberdade e participação como condição da afirmação da dignidade humana para todas as pessoas, democrático e multipolar. Enfim, contra a homogeneidade dos mercados e o pensamento único da globalização, buscamos um mundo em permanente construção, fundado na promoção de todos os direitos humanos para todos os seres humanos e no acesso e uso solidário, responsável e sustentável dos recursos naturais de que dispomos.

Uma utopia? Sem dúvida. Mas ela é transformadora e criadora, ao mesmo tempo, de um mundo a dimensão humana, para gente, toda gente. Aí reside o empuxo do FSM. No entanto, ele é apenas um fórum, um espaço de encontro, uma encruzilhada, um esforço no sentido de estabelecer o diálogo possível entre sujeitos coletivos diversos, cada um com suas plataformas de ação e luta. Como fórum, quer ser apenas uma universidade aberta que alimenta um grande movimento de ideias.

A globalização econômico-financeira é, sem dúvida, questionada pelo FSM exatamente no seu calcanhar-de-aquiles: a hegemonia da economia sobre a sociedade. Na verdade, vivemos num mundo invertido. Em vez de a economia servir à sociedade, é a sociedade que se vê subjugada à economia. O divórcio é tão radical que nunca se produziu tanto e com tal produtividade, mas de forma totalmente desconectada das necessidades humanas. A expressão máxima da globalização em curso é o seu lado cassino, jogatina mesmo: acumula-se riqueza sem nada produzir, simplesmente especulando sobre a saúde de setores e até povos inteiros. Nada mais absurdo do que ver as ações de um conglomerado multinacional crescer nas bolsas de valores do mundo pelo simples anúncio de reestruturação dos seus negócios, com demissões em massa de trabalhadores. Isso sem falar no cinturão de paraísos fiscais que cercam os principais centros econômico-financeiros mundiais, onde se lava o dinheiro sujo desta economia do único direito: o direito dos detentores de dinheiro.

O FSM questiona a supremacia do direito do dinheiro, do comércio, das bolsas, dos mercados, sobre todos os outros direitos. Desmontar, reduzir, flexibilizar direitos humanos, que a humanidade levou tempo para estabelecer como seus princípios e regras sociais, parece ser a única real política deste sistema, deste modo de pensar e fazer o mundo próprio da globalização econômico-financeira. Usa-se o Estado para, ora vejam, destruir a capacidade do próprio Estado em regular. Atinge-se de morte a democracia como ideal, como instituição e como processo de vida em coletividade. A globalização que aí está é essencialmente um problema de poder, de um fazer econômico que não é outra coisa que puro poder unilateral dos detentores do dinheiro.

O FSM tem uma tarefa gigantesca pela frente, que não poderá executar sozinho. Temos que ver tudo como um processo coletivo, como onda a ser alimentada por todos e todas que acreditam que a sua ação cidadã pode e faz uma enorme diferença no curso da história. Estamos diante de uma encruzilhada de civilização e não só de um problema econômico. Pela primeira vez, não é a escassez o nosso problema, mas o modo de produção e a distribuição da abundância. Ou seja, a desigualdade social, expressa como desigualdade econômica no acesso e uso dos recursos naturais e dos bens e serviços produzidos, é na verdade um problema de poder. Não faltam recursos. Pelo contrário, está em questão o modo de gestão.

Por isso, é a desigualdade, e não mais a pobreza em si, o grande e central problema. O maior engodo é acreditar, como nos querem fazer crer os defensores da globalização em curso, que precisamos crescer para enfrentar os nossos problemas. A pobreza que temos não é fruto da escassez, da falta de crescimento econômico, mas da injustiça social. Portanto, nosso problema político central é combater a desigualdade. Ou seja, temos uma questão de poder desigual nas diferentes relações, relações que geram e explicam a desigualdade em termos econômicos e culturais. Um problema de múltiplas e articuladas desigualdades sociais.

As últimas décadas foram particularmente elucidativas do problema. Segundo dados do Le Monde diplomatique (nov. 1998, 14), os 20% da população mundial, que vive nos países mais ricos, viu sua renda crescer entre 1960 e 1995 de forma fantástica, aprofundando o fosso da desigualdade no mundo. Ela passou de 30 a 82 vezes superior à renda dos 20% da população mundial dos países mais pobres. Os 20% mais pobres do planeta têm que dividir entre si 1,4% da renda mundial (Pnud, 1997). Sobram alimentos no mundo, no entanto 800 milhões de seres humanos passam fome, dos quais 500 milhões sofrem de subnutrição crônica (Pnud, 1966).

O importante é visualizar as várias formas em que se manifesta a desigualdade. As caras das desigualdades são o nosso problema central. A globalização só fez tornar mais evidente tal nó, ao mesmo tempo em que nos mostrou o seu caráter profundamente social, de produto humano.

Temos a tarefa de mudar esse quadro e de reconstruir o mundo em múltiplas formas igualmente legítimas, libertárias e igualitárias, de solidariedade e participação, buscando o máximo desenvolvimento humano democrático e sustentável possível. Essa é uma espécie de missão do FSM. Na verdade, outro mundo é possível, outra globalização é possível, um mundo mais igualitário é possível, se a gente quiser.

Esta uma versão resumida do texto publicado, com o mesmo título, na revista Proposta (Rio de Janeiro, ano 30, n. 93/94, jun./nov. 2002).

Publicado em 31 de dezembro de 2005

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.