Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Lições de Mumbai

Cândido Grzybowski

Sociólogo, diretor do Ibase

O Fórum Social Mundial (FSM), que este ano se realizou em Mumbai, na Índia, adquiriu uma nova e importante faceta: mostrou ser de dimensões universais. O desafio de deixar Porto Alegre, onde tudo começou em 2001, foi enorme. Como mobilização da emergente e diversa cidadania planetária, o FSM continua crescendo. Foram em torno de 75 mil delegados e delegadas, sendo 20 mil de fora da Índia. Havia também cerca de 10 mil pessoas, da própria cidade de Mumbai, que diariamente se juntavam aos eventos e mobilizações. Ao todo, quase 120 mil participantes mobilizados(as) pela ideia de que, diante da globalização dominante e suas mazelas, "outro mundo é possível".

À primeira vista, uma cacofonia. A Índia em si mesma, com mais de 1 bilhão de seres humanos, é um mundo diverso, falando muitas línguas - mais de 40, sendo quase a metade oficial -, com suas castas, com a exclusão social de dalits (intocáveis ou sem casta) e quase 300 milhões vivendo na indigência. No outro extremo, cerca de 200 milhões integrados ao mercado globalizado. O impacto é atordoante, cultural e politicamente, ainda mais para olhos aguçados de ativistas de um emergente movimento de dimensões planetárias. Inevitavelmente, somos levados a nos perguntar se fazemos o bastante, se nos indignamos suficientemente diante da desumanidade a que muitas mulheres e homens, crianças, adultos e velhos são condenados e se estamos sendo verdadeiramente radicais nas propostas de mudança.

Mais de 20 mil dalits participaram, dando uma dimensão bem popular ao Fórum Social Mundial. Juntou-se aos indianos e indianas uma rica expressão dos povos da Ásia. Mas também europeus, europeias e norte-americanos(as), africanos(as) e latino-americanos(as). A destacar o fato de mais de 480 brasileiras e brasileiros participantes, número maior do que aqueles(as) da Ásia no FSM de 2003, em Porto Alegre. O Nesco Grounds - construções de uma indústria siderúrgica falida, na periferia de Mumbai, adaptadas ao Fórum Social Mundial, com salas improvisadas à base de bambu e divisórias, teto e piso de pano rústico - tornou-se a expressão plena do que está de alguma forma de fora da globalização: gente em carne e osso, comungando de um mesmo ideal de liberdade e dignidade humanas acima do mercado.

O êxito do FSM em Mumbai deve ser medido pela adesão política, de mente e coração, no sonho e com vontade, à sua mensagem. A cacofonia foi, na verdade, uma pujante demonstração da diversidade de sujeitos sociais que aderem à ideia e querem ser artífices de um mundo diferente, onde a referência sejam todos os direitos humanos para todos os seres humanos. Se até 2003 éramos dominantemente latinos, agora somos mais universais, bem implantados na Ásia onde vive metade da humanidade. O Fórum Social Mundial passou a ser assumido como espaço de expressão de identidades e propostas de amplos setores populares. Foi um enorme salto de qualidade na superação do déficit geográfico e social em termos de sujeitos portadores do FSM.

As novas linguagens e a necessidade de tradução, que faça a liga da igualdade na diversidade, é o desafio político e cultural maior que emerge de Mumbai. A força de novas linguagens, exprimindo identidades não reconhecidas e direitos negados - na qual se sobressaíram os movimentos dos dalits -, somando-se à onda ascendente clamando por outro mundo, foi a tônica das múltiplas marchas no FSM. A poeirenta rua principal foi transformada em avenida da cidadania planetária, das 8h da manhã às 10h da noite. Esse foi o epicentro do Fórum Social Mundial, em Mumbai. Não foi preciso entender literalmente o que diziam as marchas, bastava render-se ao seu simbolismo cheio de denúncias e afirmações. A elas se somaram e por elas foram requalificados os grandes atos (conferências, painéis e mesas-redondas) sobre militarismo, unilateralismo e guerra, sobre o poder global opressor e as trincheiras de resistência, sobre os movimentos pela paz. No meio, o laboratório vivo de mais de mil seminários e oficinas, a seu modo desencontrados, mas afirmativos da possibilidade de iniciar aqui e agora a construção de outro mundo.

No final, um Fórum que impactou pelo que carrega de surpreendente. Sem dúvida, ainda patinamos na busca do método de diálogo e de construção coletiva de propostas e estratégias. Temos consciência que, com base na diversidade de atores sociais e no respeito ao pluralismo, estamos diante da possibilidade de fazer emergir uma nova cultura política, universalista, cosmopolita, includente, enfim, um novo método de fazer política transformadora. Mas nos demos uma tarefa que supõe muito mais ousadia e radicalidade do que à primeira vista aparece. Diante da crise em que se debate a ordem dominante do direito quase exclusivo do capital, a adesão à mensagem é uma garantia da pujança da onda de cidadania. Mas precisamos transformá-la em força de reconstrução de um mundo solidário, democrático e sustentável, para nós e para as gerações futuras. Essa á a principal lição a extrair de Mumbai.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.