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Literatura infantil: possibilidades de leitura a respeito das diferenças

Bonnie Axer

Este artigo tem como objetivo central indagar como questões relacionadas à diferença podem estar sendo transmitidas em histórias infantis. A partir de tal perspectiva, busquei realizar minha análise embasada teoricamente em conceitos como diferença, identidade e estereótipo, defendendo a literatura – e em especial a Literatura Infantil – no desenvolvimento do sujeito, pois acredito que sua importância se dê na medida em que sua prática estimule o desenvolvimento imaginário, literário e reflexivo do sujeito (Abramovich, 1994).

É válido ressaltar que é necessário tomar cuidado com a visão da literatura infantil somente enquanto subsídio para a escola e para seu ensino. Acredito que, ao contrário, a literatura é um dos elementos fundamentais da escola, pois a leitura amplia os horizontes e as visões de mundo do leitor, possuindo assim o que poderíamos chamar de “papel educativo”, visto que aprimora o ser humano enquanto sujeito.

Podemos dizer que a literatura infantil é relativamente nova, pois começou a ser difundida e pensada a partir do século XVII, quando a infância passou a ser socialmente construída (quando a as crianças deixaram de ser adultos em miniaturas e, aos poucos, foram sendo reconhecidas como sujeitos em formação) e considerada uma etapa que necessitava preocupação maior. Somente a partir do século XVIII que a criança passou a ser considerada um ser diferente do adulto, com necessidades e características próprias, e passou a receber uma educação especial e diferenciada. Segundo Zilberman (2003), não somente devido à emergência de atingir um público novo e diferenciado, a literatura infantil também surgiu como subsídio existencial e inalcançável pela educação doméstica e escolar.

Por ter sido vista, em seus primórdios, como literatura menor, a Literatura Infantil passou a necessitar da pedagogia para adequar sua arte à infância – adequar o literário ao raciocínio infantil. Nesse sentido, o livro infantil, passou a atuar diretamente no imaginário, a ser visto como um objeto utilizado com a finalidade de induzir comportamentos, normas de conduta e lições de moral, a veicular valores sociais e culturais, sendo encarado como um simples meio para atingir uma finalidade educativa (Palo & Oliveira, 1986).

Penso que, a partir de então, o auxílio da literatura permitiu que a criança tivesse contato com a realidade, com diferentes visões de mundo, outros lugares, tempos, modos de agir e de ser. A literatura é uma das maneiras possíveis de conhecer e compreender o mundo, um ato de desvendamento de si. É nesta perspectiva, sem didatizar a arte literária, que penso na literatura como caminho possível e interessante para “pensar e questionar” determinados temas – no caso deste estudo, questões ligadas à diferença. Não posso deixar de destacar ainda o potencial crítico que a leitura pode proporcionar, visto que pode levar a criança a se questionar e refletir sobre aquilo que é lido e visto. Assim, a literatura, além de conter informações e ensinamentos morais, possibilita ao leitor desdobramento de suas capacidades intelectuais (Zilberman, 2003).

Embora eu não faça aqui a defesa do uso simplista e didático da literatura destinada à infância, penso não somente na admiração de uma obra e no gosto pela leitura mas também num trabalho mais profundo e dedicado com algumas de suas histórias, na medida em que elas abrem espaço para esse tipo de discussão e reflexão. Nesse sentido, não podemos esquecer a importância da análise a respeito das enunciações da/na literatura, pois um texto literário é também um discurso que projeta uma concepção de mundo. Para isso, é necessário o desenvolvimento de uma leitura crítica e reflexiva dessa literatura, em que se analisem e se discutam as questões presentes com os alunos.

Essa leitura crítica e reflexiva da literatura pode ser feita com discussões em sala de aula, com oportunidades em que as crianças se reconheçam e se valorizem, além de reconhecer e valorizar os outros e passem a sentir que suas experiências têm lugar no espaço escolar, além de se identificarem com os personagens. Essa postura assumida pelos professores e pelos alunos pode contribuir para o aprofundamento da consciência quanto a alguns aspectos da identidade cultural e das diferentes realidades culturais, tornando-se um auxílio na formação dos professores com uma atividade de ação/investigação e a prática de uma visão crítica por parte dos alunos.

Considerando que as histórias são produções culturais não ideologicamente neutras, destinadas ao público infantil e entendendo a importância do papel da literatura, optei por analisar livros atuais, contos clássicos e histórias que de alguma forma, pretendem pôr em discussão identidades estereotipadas.

Neste primeiro artigo, analisarei duas histórias: O patinho feio e Na minha escola todo mundo é igual; nelas, procurei perceber a presença/ausência da diferença (como é representada e aceita), a estrutura da história, os valores veiculados, a ilustração e as relações estabelecidas entre os sujeitos com características diversas.

Um clássico: O patinho feio

Figura 1 - Imagens das coleções analisadas: Fábulas de Ouro e Conte Outra Vez.
Figura 1 - Imagens das coleções analisadas: Fábulas de Ouro e Conte Outra Vez.

O patinho feio é um conto de fadas clássico, do dinamarquês Hans Christian Andersen, que perpetua sua magia até os dias de hoje, talvez por ser um conto de fadas que se diferencia da maioria, pois foi pensado para crianças, “em uma época em que os pequenos já eram objetos de preocupação” (Corso & Corso, 2006). Tal conto chama a atenção para o fato de a temática da diferença ser um assunto questionado há muito tempo. Mesmo com um enfoque diferenciado das discussões feitas hoje em dia, podemos dizer que há muito que a diferença é pensada no mundo social e cultural.

Segundo Tatar (2004), a história clássica dO patinho feio tem sido vista por gerações como uma fonte de consolo para os que sofrem sentimento de inadequação ou isolamento. Tal história alcançou uma espécie de autoridade moral que merece muita atenção, pois transmite uma mensagem muito clara sobre autoestima, status social e promessa de transformação.

Na história, o personagem central é um patinho que nasce diferente de seus irmãos, pois é um filhote de cisne chocado no ninho de uma pata. Por ser diferente de seus irmãos, o patinho é perseguido, ofendido e maltratado por todos os patos. Ele é considerado feio por não ser igual aos demais, o que o deixa marginalizado em relação aos demais personagens da história. A diferença é acentuada pelo uso de cores que o distinguem de sua família. Todos os irmãos do patinho, nas versões analisadas, apresentam cores mais claras, enquanto o patinho feio é sempre exibido com cores escuras.

A aceitação do personagem acontece num primeiro momento pela mãe do patinho, que diz: “quando crescer ficará bonito”; mas, com o decorrer da história, a própria mãe demonstra tristeza pela esquisitice do filhote; os irmãos, assim como os demais personagens – vizinhança –, zombam do patinho chamando-o de “feio”. Sua feiura contrasta com o encanto dos outros patinhos. “Todo mundo passou a maltratar o pobre patinho. Até seus irmãos e irmãs o tratavam mal e diziam: ‘Oh, sua criatura feia, o gato podia pegar você!’”.

O patinho passa toda a história buscando encontrar um grupo com características semelhantes às suas, ou seja, busca uma identidade comum. A narrativa tem seu desfecho no momento em que o patinho se transforma em um belo cisne, tornando-se “bonito” pelo fato de ser igual a todos desse novo grupo. Dessa forma, ao longo da história, o patinho fica isolado, discriminado devido à sua diferença em relação aos outros animais, sendo aceito somente pelos que são semelhantes a ele, os cisnes.

A história traz consigo questões preconceituosas, pois afasta a personagem do convívio com os demais devido à sua diferença, diferença essa não aceita por estar fora dos padrões predeterminados pela sociedade na qual ele estava inserido; era aceito somente pelos seus semelhantes – os cisnes. Tal fato é bem comum não somente em histórias infantis: quantas vezes não nos surpreendemos com a busca por uma identidade única, pelo desejo de ser aceito em um grupo?

Embora traga a vitória do suposto fraco, tal história, segundo Tatar (2004), reflete sobre questões éticas e estéticas, pois, além de veicular estereótipos culturais, traz também um culto ao sofrimento – a todo momento o patinho tem sua coragem posta à prova –, além do culto à hierarquia da própria natureza – o patinho sobrevive vitorioso a todas as zombarias justamente por ser um cisne e não somente um pato, e assim reina como supremo, “o mais belo de todos”.

Ao nos debruçarmos sobre alguns conceitos presentes nas narrativas, percebemos que o personagem patinho feio é taxado com essas definições por não se encaixar nos padrões vigentes entre a maioria. A busca pela aceitação é algo muito presente, pois ele tem seu conflito resolvido no momento em que o fato de tornar-se “igual” o faz ser aceito.

O que ocorre pode ser entendido como uma anulação das diferenças a partir da transformação das subjetividades. O discurso hostil de repúdio ao diferente não é desconstruído. Ele permanece oculto pelo suposto final feliz da história.

Um texto contemporâneo: Na minha escola todo mundo é igual

Em Na minha escola todo mundo é igual, encontro muito claramente o objetivo de discutir a diferença de fato e atentar para a importância do respeito que se deve ter pelos diferentes. Na própria apresentação do livro, ou no catálogo percebemos essa intenção: “Esse livro é o resultado poético de uma experiência vivida numa escola em que realmente todo mundo é igual, apesar das diferenças. É o anúncio de uma nova concepção: a educação inclusiva”.

O enredo trata de diferenças físicas, comportamentais, sexuais, culturais e raciais dentro de uma escola. A história se desenvolve mostrando que todos somos diferentes, mas ao mesmo tempo temos os mesmos direitos. O livro todo respeita as diferenças, que são muito bem retratadas nas ilustrações, chegando perto da realidade. É interessante ressaltar ainda que as personagens diferentes são retratadas da mesma forma que as demais, bem coloridas e vestindo os mesmos uniformes.

O livro inteiro trata da aceitação da diferença, da aceitação de cada um em sua singularidade; como em: “Lá na minha escola ninguém é diferente, cada um tem o seu jeito, o que importa é ir para frente”. Como tratam da importância de aceitar a todos, independente de suas diferenças, as relações estabelecidas são todas muito saudáveis e respeitosas, a solidariedade é muito presente no decorrer de toda a história.

Figura 2: Capa do livro
Figura 2: Capa do livro

No entanto, pode-se perceber certa incoerência entre a imagem e o texto que compõem a capa do livro. A frase que afirma serem todos iguais na escola é acompanhada de uma imagem trazendo um grande grupo de crianças que chamam a atenção exatamente pelo fato de serem todas bem diferentes. Camargo (1995) denomina a relação entre o texto e a ilustração a que se refere como coerência intersemiótica, ou seja, a convergência ou não-contradição entre os significados (denotativos e conotativos) da ilustração e do texto. A coerência intersemiótica pode assumir as modalidades de convergência, desvio e contradição, ou seja, coerência propriamente dita, incoerência localizada e incoerência, respectivamente. Durante a avaliação de imagens e textos, é fundamental atentar se a ilustração irá convergir, desviar ou contradizer os significados do texto.

Cabe questionar também o conceito de igualdade com o qual o livro trabalha, pois a diferença acaba sendo tratada com uma postura de diversidade. Nesse sentido, Bhabha (2003) diz que a diversidade é o reconhecimento de conteúdos e costumes de cada cultura que se mantêm num enquadramento temporal de comparação entre um sujeito e outro, protegidos por uma identidade coletiva e única, quase um jogo de polaridades. Já a diferença é um processo de enunciação da cultura, em que afirmações da e sobre essa cultura se diferenciam; é um processo de significação que permite a relação com esse Outro, possibilitando a percepção do que realmente somos. Dessa maneira, percebemos como a diversidade conduz em seu discurso um esquecimento das diferenças. E é isso que o livro acaba propondo: “Aqui vai um belo conselho, que só leva um segundo: quem não respeita o outro, não tem lugar neste mundo”. Será mesmo? Será que reconhecer as diferenças, considerando-as igualdades, possui algum tipo de respeito?

Durante toda a narrativa são exibidas crianças dos mais distintos tipos físicos, comportamentos e nacionalidades, embora o discurso da igualdade proposto tão fortemente pelo livro acabe por minimizar a discussão sobre as diferenças individuais e coletivas, sem questionar ou problematizar o porquê de algumas identidades se sobreporem a outras. Todos são vistos como iguais apesar das diferenças – embora o que talvez nos torne mais iguais é o fato de sermos todos diferentes.

Conclusões

Procuramos destacar não uma metodologia, mas uma postura em relação à literatura infantil que a respeite como arte e que possibilite reflexões sobre ela. O professor, assim como todo profissional de educação, pode assumir o papel de mediador entre o que está escrito (e sendo lido) e o que está sendo internalizado por esses leitores ainda em formação. Sendo assim, defendo uma prática de ação e de investigação que permita uma leitura que de fato questione e problematize a história, seus valores, preconceitos, estereótipos e identidades.

O livro de literatura não é um objeto meramente destinado a entreter o público infantil. Ele pode ser considerado também um suporte cujo conteúdo envolve crenças, ideologias, estereótipos e conceitos dos mais variados. O mesmo livro que diverte e instiga com seu texto e suas ilustrações envolventes é também um instrumento relevante para ensinar conhecimentos que a criança vai acrescentando à sua bagagem cultural e, dessa forma, compreendendo e (re)elaborando o mundo em que vive.

Em outras palavras: uma história infantil vai muito além dos famosos “era uma vez” e “viveram felizes para sempre”.

 

Referências bibliográficas

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1994.

ANDERSEN, H. C. O patinho feio. Coleção Fábulas de Ouro. São Paulo: Todolivro.

BHABHA. H. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.

CAMARGO, Luís. Ilustração do livro infantil. Belo Horizonte: Lê, 1995.

CORSO, Diana Lichtenstein; CORSO, Mário. Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006.

LEITE, C. & RODRIGUES, M. L. Contar um conto, acrescentar um ponto – uma abordagem intercultural na análise da literatura para a infância. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional, 2000.

PALO, Maria José; OLIVEIRA, Maria Rosa D. Literatura infantil: voz de criança. São Paulo: Ática, 1986.

RAMOS, Rossana. Na minha escola todo mundo é igual. São Paulo: Cortez, 2004.

TATAR, Maria. Contos de fadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 2003.

Publicado em 1º de dezembro de 2009

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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