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Lúcio Cardoso: um corcel de fogo e ideias

Adriana Saldanha Guimarães

Pesquisadora carioca e mestre em Literatura Brasileira pela PUC-Rio

Lúcio Cardoso nasceu em 14 de agosto de 1912, em Curvelo, Minas Gerais. Foi autor de diversos livros, entre os quais Crônica da casa assassinada, que, com certeza, fez dele um dos grandes escritores da literatura brasileira. Além de escritor, Lúcio deixou sua marca em diversas áreas do meio cultural. Foi roteirista e coprodutor dos filmes Almas adversas (1948) e A mulher de longe (1949), no qual também atuou como diretor. Na área teatral, além de escrever algumas peças, foi um dos criadores do Teatro de Câmera. Nas artes plásticas, aventurou-se como pintor. As cores fortes e os temas da noite e da morte estavam presentes tanto na literatura como no cinema e na pintura. Era o mesmo Lúcio, o da busca incessante dos males da alma e da escrita, cujas palavras eram também as imagens e os gestos.

Lúcio, durante muito tempo, paralelamente à produção de sua ficção, registrou suas reflexões, ideias e lembranças. Foi dos poucos escritores brasileiros a compor aquilo que chamou de "diário não-íntimo". Considerava-o parte de sua obra. Através do seu Diário podemos ter ideia do espaço que ocupava, com quem se relacionava, dos livros que lia, das questões da vida e da sua relação atormentada com a escrita. Aí se traça a trajetória literária de uma época: de 1949 até 1962.

No acervo de Lúcio, que se encontra na Fundação Casa de Rui Barbosa, encontramos outros manuscritos relacionados à escritura de diário: "O diário do terror", "O livro de bordo" e também anotações datilografadas referentes ao período de 1942 a 1947. A escrita, feita de fragmentos, que se assemelham a peças de quebra-cabeça, constrói a identidade do escritor.

O mundo de Lùcio era da desordem, que, para ele, era um equivalente de sua própria paisagem, pois não suportava as ideias estratificadas pelo senso comum. "Para mim não têm valor as teorias estáticas, os ideais paralisados: o que me toca são os movimentos da dinâmica e da propulsão, ainda que a meta seja o infinito, e o horizonte por descobrir o nada", escreveu ele. Usava os questionamentos de vida como temática para sua literatura. A realidade é múltipla, tanto quanto a linguagem que a constrói, "e assim sendo, todo cheio de vozes que só sabem se exprimir através da informe projeção deste mundo confuso que me habita".

Lúcio tinha verdadeira obsessão pelo tema da morte. Uma sombra que está sempre presente, pois, segundo ele, faz parte da agonia de viver. "O que é a morte senão a essência de todos nós?". Diante dessa vida trágica, na qual a morte "é sutil e gosta de devorar silenciosamente as almas...", o poeta exclama: "Ó Morte / supremo fruto para que se abrem as flores da vida". Esse mesmo pensamento, que nos persegue a vida toda como uma sombra, até que um dia se instala dentro de nós para sempre, está relacionado ao desejo de escrever. Escreve-se para não morrer, ou seja, mesmo sendo o corpo finito, o que se escreve permanece.

Na verdade, escrever para Lúcio era ouvir sua própria voz, misturando ficção e memória, fazendo da obra uma literatura mais intimista. "Se quisesse, poderia viver sem escrever, o que não seria nada de mais. Mas acho mais divertido escrever: resolvo até fazer 'obras', forçando coisa por coisa, imaginando página por página, sendo artificial ou 'sincero' numa grande confusão. Escrever é bom para sentir e o que quero é sentir. Há também uma outra vontade que escrever pode ajudar: a de crescimento contínuo."

A sua estética romanesca rompe o sistema convencional de representação. O que é belo deve ser posto em questão. Assim como o belo tem seu lado perverso, o feio é desejado para despertar o mistério, a surpresa, o novo encanto. "Não se amassa o barro com águas puras, mas com tudo o que a correnteza traz, limos e detritos. Isto é o que transforma o líquido comum em humos, e garante no final a solidez das construções."

Às vezes, sua escrita não fluía com tanta facilidade. Ele mesmo anota: "Quando se quer ir muito longe no pensamento, fica-se impossibilitado de escrever". Talvez por ter ido muito longe no pensamento, Lúcio tenha tido dificuldades em prosseguir um de seus romances: "Continuo a escrever 'O Viajante', mas sem encontrar a forma adequada à história. Além do mais o estilo é arrastado, não vive e nem explode como eu desejava". Esse mesmo tema foi repetido inúmeras vezes em seu Diário completo. No fim, descobre ser O viajante uma obra inacabada, "a essência do mal, em permanente trânsito...". A mesma essência que tinha a sua vida.

Por tudo isso, Lúcio Cardoso foi certeiramente comparado, pela escritora e amiga Clarice Lispector, a um "corcel de fogo sem limite para o seu galope", numa belíssima crônica publicada no Jornal do Brasil alguns meses após sua morte ocorrida em 28 de setembro de 1968.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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