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Mais uma vez se tapa o sol com a peneira em educação
Jussara Hoffmann
Escritora e consultora em educação
De que planeta faz parte o Brasil, senhores? Nos últimos dias, venho acompanhando, mais uma vez, declarações acerca dos "ciclos" que me fazem pensar que vivo, de fato, cercada, nesse país, por extraterrestres.
Preciso e devo, como especialista na área da avaliação, posicionar-me a respeito de questões que considero gravíssimas em termos da qualidade do ensino no país. Para ser breve e contundente, embora com grande receio dos enormes equívocos que sempre permeiam essa discussão, pautarei minhas considerações em três máximas:
- Mais uma vez se tapa o sol com a peneira em educação!
- Mais uma vez seguimos na contramão do progresso!
- Mais uma vez priorizamos o que é menos prioritário!
Em primeiro lugar, os alunos não estão com problemas de aprendizagem porque a escola é ciclada ou seriada, porque se atribuem ou não notas, porque se fazem ou não provas. Reprovar os alunos no ensino fundamental só serve para "disfarçar" a verdade, tapando o sol com uma peneira de grandes furos. É, no mínimo, cruel e antiético propor que tal sistema excludente continue. Os alunos estão com problemas porque não estão sendo alfabetizados. A escola tradicional fugia do problema, retendo-os pela reprovação nas classes de alfabetização por anos e anos. Se aqueles que sobreviviam a isso aprendiam, era por teimosia, pela repetição da primeira série por anos e anos, pela ajuda dos pais. Hoje, porque seguem adiante, o ensino precário aparece, transparece. A sociedade se assusta. Continuam as crianças a não aprender como todas poderiam, se tivessem oportunidades reais de aprendizagem. Não aprendem porque não há, de fato, um acompanhamento permanente do seu aprendizado (isto é, não acontece a avaliação contínua que a lei determina), porque não se formam professores alfabetizadores competentes em cursos de magistério e de graduação, porque há muitos alunos em cada sala de aula, porque não existem recursos didáticos (livros e materiais pedagógicos) necessários para o ensino, porque as crianças não têm nenhum apoio das famílias (quando as têm), porque os professores não têm tempo e espaço nas escolas para formação continuada, porque são mal remunerados, porque fazem longas jornadas de trabalho, sem tempo de preparar-se para essa realidade e de preparar suas aulas. Não é mudando o sistema de promoção que se resolve tudo isso. Isso é um absurdo!
Em segundo lugar, continuamos na contramão do progresso em educação. O sistema de ciclos não se iniciou em Porto Alegre, em São Paulo, em qualquer outra cidade brasileira. Os países desenvolvidos, como França, Itália, Alemanha, Suíça, Portugal, há muitos anos baseiam-se no princípio de não reprovar na educação básica, adotando sistemas denominados de progressão/promoção automática, de regimes não seriados, de ciclos, com base em pesquisas sérias, em consistentes fundamentos teóricos. Muitos estudos comprovam, há décadas, que as crianças não aprendem mais ou melhor quando repetem o ano letivo. Pelo contrário, as consequências são altamente desastrosas em termos de sua continuidade nos estudos, de sua autoestima. É também ironia dizer que escolas particulares reprovam e, por isso, têm um ensino de qualidade. Os índices de reprovação das escolas particulares são baixíssimos nos ensinos fundamental e médio, praticamente nulos, porque o acompanhamento dos alunos com dificuldades é intensificado em termos pedagógicos, compartilhado com as famílias e especialistas de todas as áreas. Faz-se de tudo para que o aluno aprenda e não seja reprovado! A mesma coisa não acontece nas escolas públicas, e de nada adianta denunciar, denunciar e denunciar o problema sem resolvê-lo. Com sistemas de avaliação, tal como o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), vem ocorrendo isto: denuncia-se que os alunos não aprendem o que poderiam, mas não se discute "qualidade da aprendizagem", nem são desenvolvidos programas que visem à melhoria. Repetem-se estratégias de denúncia que não levam a nada. Os resultados continuam os mesmos por anos e anos.
Em terceiro lugar, invertemos, perigosamente, os critérios de exigência em avaliação educacional. Nosso país é mesmo de extraterrestres. Qualidade do ensino nos países desenvolvidos significa educação básica para todas as crianças, com acesso pleno (acesso à escola, continuidade dos estudos sem reprovações e acesso à aprendizagem de qualidade). Significa acolher, incluir, respeitar os diferentes ritmos e interesses dos alunos, formá-los para a vida, por meio uma ação educativa que garanta, mais do que tudo, a sua permanência na escola ao longo de vários anos (oito anos em média) - por um espaço de tempo longo que contribua para que se desenvolvam e adquiram uma formação básica (daí a expressão "educação básica").
Por que não reprovar? Por que é preciso confiar, acreditar na capacidade de todas as crianças, criando-lhes oportunidades de acesso à cultura e ao mundo letrado que a vida fora da escola não lhes oferece pelas carências socioculturais? Assim, elas precisam ser acolhidas e compreendidas em suas diferenças, atendidas por profissionais da educação, que devem, sobretudo, promover um ambiente espontâneo e feliz de aprendizagem. Não podem encontrar obstáculos e pressões mal tendo ingressado na escola. A alfabetização é muito importante, sim, mas precisa ser valorizada dentro de um contexto mais amplo de educação. Crianças que nunca tiveram um livro de histórias na mão não podem recuperar esse tempo perdido contando-se os dias do calendário escolar, ou tendo de seguir o "ritmo" que burocratas impõem. Elas precisam, sim, desse tempo precioso que é seu de direito - o tempo de escolarização da escola básica. Elas precisam de um ambiente livre das pressões da "vida lá fora", atendidas e orientadas para que possam, pelo menos, vislumbrar e acreditar numa outra vida que não a do tráfico, da violência, da miséria. Baseando-se nesses princípios éticos, países que respeitam suas crianças acabaram com o analfabetismo e constituíram sociedades cultas e letradas.
Não é esse o conceito de qualidade que ronda por aí, na palavra de governantes e de toda a sociedade. Defende-se a reprovação/exclusão nos ensinos fundamental e médio, principalmente, de alunos das escolas públicas. Limita-se, pela vergonhosa e restrita oferta de vagas, o acesso deles à universidade pública através dos vestibulares, episódios elitistas que servem muito bem a uma sociedade capitalista. Entretanto, no interior das universidades, o sistema de avaliação é cada vez mais frouxo, permissivo, medíocre. Se é difícil para um estudante entrar na universidade, por ter de galgar o portal do vestibular (que não mede competências específicas para curso nenhum), mais difícil é não sair de uma universidade com certificado de conclusão, pois pouco ou nada se exige dele em termos de leitura, de pesquisa, de aprendizagem na grande maioria dos cursos. A universidade é o baluarte da educação do país, do avanço científico, da literatura, da cultura. É preciso formar pesquisadores, leitores, escritores, cientistas. E isso exige rigor, academicismo, horas de aula, de biblioteca, de pesquisa. Onde estão esses universitários? Como serão os futuros profissionais e professores formados por essa universidade, onde não se lê, não se escreve, nem mesmo se faz uma prova séria de conhecimento? Alardeia-se a "frouxidão" da avaliação na educação básica, mas ninguém fala sobre a mediocridade da avaliação no ensino superior. Há cursos universitários que até reprovam demais, é certo, como cursos de engenharia, medicina, farmácia, arquitetura... Mas, muitas vezes, isso ocorre porque os alunos não têm até mesmo quem os ensine de verdade, porque os professores não têm nenhuma formação pedagógica. "Recitam" ensinamentos por muitas e muitas horas e, depois, fazem provas que reprovam, atribuem notas sem nem mesmo explicar por quê. E ainda chamam isso de sistema de avaliação exigente.
Nossos parâmetros de qualidade, quando se fala em avaliação, estão de cabeça para baixo. Dá-se atenção máxima à ponta do ceberg - o sistema burocrático de seriação - enquanto a "montanha de gelo" por baixo das águas afunda o navio. A base do iceberg, senhores, o que dá fundamento ao sistema de avaliação, em educação, são os valores culturais e éticos da sociedade, são as concepções de escola, são as teorias de aprendizagem, a destinação de recursos humanos e materiais para as escolas. É nisso que estamos falhando. Enquanto os países desenvolvidos ampliam o acesso universal e garantem a máxima aprendizagem de suas crianças e jovens na escola, preocupando-se, principalmente, com melhoria da qualificação docente e com as questões pedagógicas, em nosso país, políticos vão aos jornais, ao rádio, à TV para defender políticas burocráticas excludentes e ultrapassadas, sem sequer olhar para as profundezas do mar revolto.
Diz Pedro Demo, renomado educador de nosso tempo, que avaliar é, sobretudo, cuidar que o aluno aprenda. E acrescento: quem gosta cuida, protege, acompanha a criança em seu crescimento, mantendo-a pertinho de si, com "rigorosidade amorosa" - como sempre repetiu Paulo Freire.
Essa é a concepção de avaliação que eu defendo!
- Leia também Aprovação: uma política educacional?
Publicado em 31 de dezembro de 2005
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