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Medo do Câncer

Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia

Folheio uma revista de banalidades na banca de jornal. Nem presto atenção na capa. Quando vou me retirando vejo que tem a foto do Clodovil e uma manchete: "Não tenho medo do Câncer". Por um segundo me pergunto: "por que é tão importante saber que Clodovil não tem medo do Câncer?". Lembro de uma aula na faculdade de filosofia sobre Martin Heidegger. O professor me diz: "morrer é diferente de experimentar a possibilidade da morte". Todas as criaturas que estão vivas morrem um dia.

Mas o homem tem a benção de saber que vai morrer, que vai passar. O tempo é como um tabuleiro de xadrez. Quando você entra nele, o jogo já começou e as peças já estão dispostas de um determinado modo. Você não pode mudar isso. Não pode zerar o jogo e começar tudo do ponto inicial. Se fosse assim, suas possibilidades de ganhar a partida seriam bem maiores. Você vai formando suas escolhas e o tempo vai movendo as peças. Cada escolha sua, reconfigura o tabuleiro do tempo. A cada jogada, suas possibilidades de escolha vão diminuindo. Até que, um belo momento, você está sozinho com seu rei. Isso é experimentar a possibilidade da morte. Saber que, num determinado momento, o campo de suas escolhas, vai se reduzir a zero.

A filosofia me ajudou muito a compreender a natureza do jogo do tempo. Isso eu devo a ela, por isso eu pago a minha dívida exercitando-a constantemente. Praticar a filosofia não é simplesmente escrever artigos acadêmicos, fazer teses de mestrado, dar aula sobre o pensamento de Kant. Praticar a filosofia implica em tomar uma determinada postura diante das regras do tempo e construir uma escala de valores pessoais condizente com essa postura.

Hoje, muitas pessoas ainda têm medo do Câncer. Muitas ainda têm medo da dor e do sofrimento. Muitas ainda acreditam piamente que a vida é um par de tênis, que você pode calçar. Um carro no qual você pode entrar e dirigir a 180 por hora. Um sanduíche que você pode comer quando está com fome. Então aparece o medo do Câncer. O apego a um padrão muito estranho e raso de existência que nos faz querer permanecer no mundo por mais tempo.

Talvez isso seja resultado de um erro de avaliação. De uma falta de compreensão acerca das regras do jogo. Na verdade, não foi Clodovil que me ensinou a não ter medo do Câncer. Foi Sócrates, quando estava na prisão, esperando a cicuta que iria matá-lo. Lógico que a sabedoria de Clodovil não é da mesma natureza da sabedoria de Sócrates. Mas saber que os dois parecem não ter medo da morte é algo reconfortante.

Wittgenstein falou sobre isso nas Investigações Filosóficas, um livro publicado postumamente nos anos 1950. Ele diz: "Qual a sua meta na filosofia? - ensinar à mosca a saída do vidro". A palavra que ele usa para vidro é "Fliegenglas". Uma armadilha para pegar moscas, muito usada nos verões vienenses. Coloca-se uma garrafa com mel dentro. As moscas são atraídas pelo mel e entram na garrafa. Então ficam presas nesse mesmo mel e morrem ali mesmo. Na metáfora, o mel pode ser entendido como a nossa linguagem, que cria um sem número de artificialidades que nos embotam o entendimento. Nossa própria confusão mental que cria um sem número de armadilhas em nosso percurso. Caminhar bem é sempre melhor do que caminhar muito.

Quando saí da banca, quase presencio um acidente de carro. Por um segundo um Ford K vermelho iria cruzar a preferencial de um Celta azul-escuro. Me preparei para o impacto olhando a cena na frente da banca. Mas o tempo brincou com os motoristas e tudo o que sobrou foi o cheiro de borracha queimada, o barulho de buzina e dois humanos a se xingar.Uma quase morte, talvez.

Saio da banca com uma certeza: "aprender a não ter medo do Câncer é como aprender a sair do vidro".

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Publicado em 31 de dezembro de 2005

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