Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Memórias do Cerrado

Lorenzo Aldé

Sob fogo, o Cerrado

A cada ano, o fogo devora um bocado de Brasil. Milhares de quilômetros quadrados de vegetação nativa, muitas vezes protegidos em Unidades de Conservação do Ibama, viram cinza nos meses de inverno. Ecossistemas inteiros são sacrificados pelas queimadas, algumas acidentais outras intencionalmente provocadas por fazendeiros. O prejuízo ecológico é assustador, e a repetição anual do fenômeno nos faz temer o pior: a completa extinção de espécies animais e vegetais, o desaparecimento de boa parte dos ricos biomas brasileiros.

As queimadas e a expansão indiscriminada das monoculturas e da pecuária extensiva afetam de forma dramática o segundo maior ecossistema do Brasil e da América Latina. O Cerrado equivale a 20% do território nacional, perdendo em extensão (2 milhões de km2) apenas para a Amazônia. A aparente pobreza de seu aspecto semidesértico engana: a região abriga verdadeiros tesouros ecológicos e culturais, que se perdem na uniformização da modernidade e nas agressões ao meio ambiente.

Versão brasileira das savanas africanas, o Cerrado concentra metade de todas as espécies de aves do país, dez mil espécies de árvores, 195 de mamíferos e 780 de peixes. Animais ameaçados de extinção - como o tamanduá-bandeira, o veado-campeiro, o cachorro-do-mato, o lobo-guará e a água cinzenta - encontram-se apenas no Cerrado. Quem viaja ao interior de Goiás pode testemunhar as revoadas de papagaios, periquitos e tucanos que não existem em nenhum outro lugar do planeta. Emas (as maiores aves brasileiras), siriemas, tatus-canastra, pacas, onças pintadas e cobras sucuris também habitam os espaços de árvores irregulares e matas semidensas, grandes chapadas que proporcionam quedas d'água monumentais, e o amplo horizonte que só existe sob o céu do Planalto Central.

Outro elemento natural característico do cenário cerrado são os cupinzeiros, moradas dos cupins feitas de barro que chegam a um metro de altura e se veem às centenas nas áreas mais descampadas. Nas noites de certas épocas do ano, os cupinzeiros irradiam uma luz fosforescente, de tom azul-esverdeado, produzida pelas larvas dos vaga-lumes.

O Cerrado agoniza, mas não morre. Pelo menos se depender de trabalhos como o do Instituto do Trópico Subúmido (ITS), vinculado à Universidade Católica de Goiás (UCG). Em projetos multidisciplinares, o Cerrado é compreendido em suas várias dimensões: histórica, social, cultural, ambiental, geográfica, biológica e geológica. Um modelo que deveria servir de exemplo para o estudo e preservação de todos os biomas brasileiros.

Um passeio pela História

Tudo o que sei, ao entrar no Memorial do Cerrado, é que se trata de um "museu interativo". O que quer dizer isso e o que vou encontrar, não dá para dizer. Às vezes as melhores surpresas (filmes, música, livros, aulas) são assim: vêm de onde menos se espera.

Sei que estou a poucos quilômetros do centro de Goiânia, jovem capital do Estado de Goiás (cidade planejada, "inaugurada" em 1935), no Complexo Estação Ciência São José, um enorme espaço (4,5 hectares) utilizado pelos projetos do ITS: Viveiros de espécies nativas; Espaço cultural Dalila Sales Barbosa (educação ambiental); Laboratórios de Pesquisa (engenharia de alimentos, plantas medicinais, banco de sementes, biologia animal, arqueologia); Reserva Florestal (trilhas ecológicas, banco de germoplasma, núcleo de primatologia); Projeto Jardins Recriados; Banco de Sementes; Núcleo de Anelídeos e Compostagem; Meliponário; Centro de Informatização (geoprocessamento); Centro de divulgação cultural; Biblioteca especializada.

Uma vez dentro do Memorial do Cerrado "Padre Pereira", surge um amplo corredor com painéis retratando a evolução dos estágios da formação geológica da Terra. Ilustrações e textos sobre os supercontinentes anteriores aos atuais são entremeados com cenários e objetos de raro interesse, como fósseis de trilobitas (o mais antigo parente das baratas, com até 600 milhões de anos) e uma floresta petrificada da época do supercontinente Godwana, com idade calculada em 280 milhões de anos.

As impressionantes datações colocam a cabeça para funcionar, pondo à prova o raciocínio moderno segundo o qual vivemos no "novo mundo" e somos uma nação "jovem". Os primórdios da história da Terra estão aqui, sob o solo idoso do cerrado, e agora diante de nossos olhos. A partir daqui, tudo pode aparecer, e começo a entender o porquê da interatividade anunciada: se não posso tocar, moldar ou interferir no que vejo, o tocado sou eu. De um momento para o outro, passo a viver aquelas vidas de milhões de anos atrás.

Frágeis humanos. Sobreviventes não só dos famosos dinossauros, mas de improváveis variedades de animais gigantes: elefantes (maiores ainda), tatus e até bichos-preguiça de tamanhos paquidérmicos, habitantes do cerrado há 12 mil anos, cuja existência seus próprios ossos estão aqui para comprovar. Nosso corajoso ancestral se apresenta em seguida: o Homem da Serra do Cafezal (encontrado em Serranópolis), mais antigo esqueleto humano da América do Sul, tem cerca de 11 mil anos.

Milênio a milênio, começo a entender os primórdios do cerrado e do Brasil. No centro do Memorial, dezenas de espécies animais empalhadas em tamanho natural são expostas na vegetação característica do cerrado. A história se aproxima do presente. Os animais são os de hoje. E o homem?

Um grande poema o anuncia, junto à saída do Memorial:

Chegança

Sou Pataxó,
Sou Xavante e Cariri,
Ianomâmi, sou Tupi
Guarani, sou Carajá.
Sou Pancaruru,
Carijó, Tupinajé,
Potiguar, sou Caeté,
Ful-ni-ô, Tupinambá.
Depois que os mares
Dividiram os continentes,
Quis ver terras diferentes,
Eu pensei: "vou procurar
Um mundo novo,
Lá depois do horizonte,
Levo a rede balançante
Pra no sol me espreguiçar".
Eu atraquei
Num porto muito seguro,
Céu azul, paz e ar puro...
Botei as pernas pro ar.
Logo sonhei
Que estava no paraíso,
Onde nem era preciso
Dormir para se sonhar.
Mas de repente
Me acordei com a surpresa:
Uma esquadra portuguesa
Veio na praia atracar.
Da Grande-nau,
Um branco de barba escura,
Vestindo uma armadura
Me apontou pra me pegar.
E assustado
Dei um pulo da rede,
Pressenti a fome, a sede,
Eu pensei: "vão me acabar".
Me levantei
De borduna já na mão.
Aí, senti no coração,
O Brasil vai começar.

(Antonio Nóbrega e Wilson Freire, do CD Pernambuco falando para o mundo, 1998)

O Brasil vai começar

O Memorial do Cerrado dá passagem direta para a Vila Cenográfica Santa Luzia. Deixando para trás a história de nossa natureza ancestral e a formação geológica, biológica e humana do Cerrado, estou agora numa vila colonial goiana.

Ambiente urbano

O Brasil já começou há cerca de três séculos, mas a velocidade das transformações ambientais e culturais não tem a urgência do período moderno. O ambiente urbano em que me encontro acumula a história colonial dos séculos XVI a XVIII, do Império e da nascente República. As coloridas casas de estilo colonial estão de portas abertas. Dentro delas, uma fotografia viva de diversos ambientes, costumes e estilos de vida que compunham a sociedade do interior do Brasil.


A Casa Tradicional - sala

O ambiente das famílias abastadas, de "estilo português com ligeiras modificações", está representado pela sala de visitas, com direito a piano para saraus e móveis de madeira de lei. Já a casa tradicional tem móveis poucos e simples, com sala, quarto familiar e cozinha, nos quais cada objeto nos ajuda a traçar o perfil e a história dos habitantes "comuns" daquele tempo naquele lugar. Uma outra sala demonstra o ambiente domiciliar ocupado pelo buriti, palmeira típica do Cerrado.


A Oficina Tipográfica

Para além das residências, alguns ambientes sociais eram essenciais para a vida urbana. A oficina do alfaiate e a sapataria, com todos seus objetos de trabalho, estão no ambiente dos "artesãos citadinos". Os "pioneiros da imprensa" produziam livros, jornais, periódicos, revistas e panfletos na oficina tipográfica, fielmente reproduzida, em cujas paredes se veem cópias dos impressos da época.


O Armazém de Secos e Molhados
do Seu Zé Malaquias

A escola também está aberta, e na sala de aula há carteiras antigas, lousas individuais e, claro, a palmatória. Enquanto isso, o comércio cotidiano passa pelo armazém de secos e molhados "do Seu Malaquias" e sua incrível variedade de produtos.

Mais à frente, chegamos à praça central, que até hoje pode ser vista quase que inalterada em qualquer cidadezinha histórica, composta de igreja, cadeia e prefeitura. Quase nos limites da cidade, atravessando uma ponte, chega-se à mais visitada das casas: a casa da mulher-dama. Por fora parede cor-de-rosa e portas vermelhas, por dentro sala (para as preliminares regadas a bebida à luz do candeeiro de azeite de mamona) e dois quartos ajeitados para atender aos desejos dos clientes e à rotina das "meninas".


Igreja, cadeia e prefeitura

Logo atrás do bordel, inicia-se a periferia da cidade, com casas rústicas onde vivem os mais pobres e os tipos marginalizados da sociedade (representados pela casa da doida).


Ambiente rural


Rancho do peão de boiadeiro

Na zona rural a realidade é outra. As sedes das fazendas, normalmente construídas em alvenaria rústica, são representadas, na Vila Cenográfica, por sala e quarto, com decoração e utensílios simples. Não longe dali, moravam os peões de boiadeiro, em ranchos sem paredes e cobertos por telhão colonial ou palmas de buriti. Toda a "traia" das montarias ficam dependuradas nas vigas, juntamente com os poucos apetrechos para a alimentação e necessidades cotidianas. O fogão era construído com a terra batida de um cupinzeiro.


Engenho de roda

Entre as unidades de produção artesanal do meio rural, destacam-se a casa de farinha (onde se ralava a mandioca no "caititu", peça acionada manualmente, e depois coava-se, espremia-se e torrava-se a massa até o preparo da farinha e do polvilho) e o engenho de roda, conjunto de três cilindros conduzido por tração animal (geralmente uma parelha de bois), onde a cana era triturada para a produção de açúcar mascavo, melado e rapadura.

Aldeia indígena

Os povos indígenas ainda eram muitos e em boa parte do Cerrado sua cultura mantinha-se intacta. Depois de explorar a vida urbana e rural daquele Brasil tão próximo e tão distante, chego a uma típica taba timbira, em suas dimensões originais.

A organização social está explícita da disposição do espaço. Ao redor de uma praça central, oito grandes ocas estão divididas em dois clãs de quatro ocas, ligados por caminhos que cruzam a praça. Cada residência abriga duas famílias.

A taba foi construída por funcionários e cientistas do ITS, utilizando as técnicas empregadas pelos timbiras. A estrutura das ocas usa troncos amarrados com cordas de embira e a cobertura é feita com palha de buriti. Todos os cestos e esteiras vistos nos cenários seguem rigidamente os modelos originais. Pesquisadores do Memorial do Cerrado passaram semanas entre os índios para aprender a confeccioná-los.

Filhotes do Memorial

O projeto do Memorial do Cerrado já inaugurou museus similares em várias cidades do interior goiano. A equipe responsável pela concepção do espaço, coordenada por Altair Sales Barbosa, recebeu um convite de instituições do Amazonas para prestar consultoria na elaboração de um projeto semelhante relativo ao bioma Amazônia.

Seria bom que todas as regiões brasileiras contassem com espaços interativos de preservação e reconstrução histórica, valorizando nosso patrimônio ambiental e cultural. e propiciando à formação das futuras gerações oportunidade de integração com o passado geológico, biológico e humano do Brasil.

Fotos retiradas do livro Vila Cenográfica de Santa Luzia, de Horieste Gomes (2001).

Museu vivo

O profundo impacto de conhecer um espaço como este deixa claro para qualquer visitante: o próprio conceito de museu deve ser retrabalhado. Deve ultrapassar a simples exposição de peças, documentos, imagens, informações sobre um lugar ou uma época, que permanecem assim abstratos e distantes de nossas vidas, e promover uma real integração das pessoas com o espaço.

A experiência dos "museus vivos" não é nova, e vem se difundindo bastante no Brasil e no mundo. Algumas diferenças em relação aos museus tradicionais são marcantes:

  • O acervo é atualizado constantemente;
  • As pessoas podem mexer no acervo e fazer parte das experiências;
  • Trata-sede um lugar de aprendizagem e também de divertimento (todo museu vivo promove eventos variados, como a apresentação de cantores e músicos, jogos, palestras, filmes etc.).

Um dos objetivos do museu vivo é o resgate de época de modo participativo. Nesse processo, os seus visitantes tomam conhecimento de um outro tempo, diferente daquele em que vivem.

Através dos objetos expostos é possível analisar a temporalidade - tecnologia, costumes, odores, estética, cultura, necessidades, ritmos etc. - que muitas vezes o relato oral já não dá conta.

Para as áreas de História e Geografia, a familiaridade com os museus permite aos alunos entender o processo histórico em suas características de ordem e sucessão, duração, simultaneidade, permanências e mudanças, e caracterização de época.

Além disso, quando direcionamos o olhar dos alunos para um passado "concreto", estamos lhe dando argumentos para que ele analise a trama complexa de elementos presentes numa determinada época.

Mesmo em museus que não podem ser considerados exatamente "museus vivos", por terem sido criados em uma concepção mais tradicional, o professor pode propiciar aos alunos uma visita dinâmica e interativa, através de um roteiro bem construído. Conheça a oficina de História "Espanando a poeira - alternativas para a visitação escolar a museus", de livre acesso no Portal da Educação Pública.

Referências

GOMES, Horieste. Vila Cenográfica de Santa Luzia. Goiânia: Universidade Católica de Goiás, 2001.

Instituto do Trópico Subúmido (ITS), da Universidade Católica de Goiás (UCG).
http://www.ucg.br/Institutos/its/Its.htm

Parques Nacionais do Ibama
http://www2.ibama.gov.br/unidades/parques/parnas.htm

Site do Ibama
http://www.ibama.gov.br

Mapa com todos os Parques Nacionais do Brasil
http://www2.ibama.gov.br/unidades/geralucs/mapas/mapasimg/brasil/parna.pdf

Parque Nacional das Emas
http://www.altiplano.com.br/ParqueEmas.html

Artigo O cerrado agoniza (UnB)
http://www.unb.br/informativos/a2002/cerrado_agoniza.htm

Cerrado, por Leopoldo Magno Coutinho
http://eco.ib.usp.br/cerrado/

Base de Dados Tropical / Cerrado
http://www.bdt.fat.org.br/sci?sci.biom.cerr

SOS Cerrado
http://server2041.virtualave.net/soscerrado/

Árvores do Cerrado
http://sites.uol.com.br/eadmelo/cerrd/

Cerrado (Ministério das Relações Exteriores)
http://www.mre.gov.br/cdbrasil/itamaraty/web/port/meioamb/ecossist/cerrado/apresent.htm

Caminhos do Cerrado
http://www.caminhosdocerrado.hpg.ig.com.br/cerrado.htm

EcoSolidariedade / Cerrado
http://www.ecosolidariedade.com.br/por/cerrado.htm

Cerrado, Savana brasileira (artigo de Alexandre Mansur)
http://www.webspawner.com/users/cerrado/

Publicado em 31 de dezembro de 2005

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.