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Movimentos sociais, tecnologias de informação e o ativismo em rede

Jorge Alberto S. Machado

Professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP

Introdução

Assim como os atores políticos e econômicos se globalizam, também se globalizam os coletivos sociais, incorporando o que as novas tecnologias de informação e comunicação melhor lhes oferecem, de forma a compensar a desigual distribuição de recursos e poder.

Devido ao aumento da ação coletiva em áreas de difícil definição jurídica e política, ativismo político, crime e engajamento em causas sociais se confundem cada vez mais na ação dos movimentos por uma globalização alternativa, dos grupos radicais e das diversas organizações que atuam em redes supranacionais. Agrupando dezenas ou até centenas de organizações de diferentes portes e universos culturais, linguísticos e identitários diversos, com base na infraestrutura da rede mundial, elas conseguem agregar eficiente e eficazmente o descontentamento para gerar amplas e complexas sinergias.

A rede converteu-se em um espaço público fundamental para o fortalecimento das demandas dos atores da sociedade civil, que conseguem contornar a desigualdade de recursos para ampliar alcance de suas ações e desenvolver estratégias de luta mais eficazes. Ela é um espaço público que possibilita novos caminhos para interação política, social e econômica, principalmente pelo fato de que nela qualquer cidadão pode assumir, ao mesmo tempo, uma variedade enorme de papéis - como cidadão, militante, editor, distribuidor, consumidor, etc. -, superando as barreiras geográficas e, até certo ponto, as limitações econômicas (Machado, 2003).

Organizando-se em rede: alguns casos

Alguns exemplos de atuação em rede por parte das organizações sociais são os da Third World Network, Global Watch, No Border, Palestinian NGOs Network, Global Citzen Initiative, ICG, Fórum Social Mundial e da Confédération Paysanne. Optamos por listar principalmente as redes de organizações, espécies de pontos nodais de coletivos e agrupações de ativistas menores e diversas.

Tabela 1: Organizações em rede ou redes de organizações
Organização Causa Histórico Formas de atuação
Oxfam Internacional Tem como objetivo encontrar soluções para a pobreza e as condições de injustiça. Uma das redes de organizações que mais ganhou relevo nos últimos anos. Reúne em uma confederação 12 organizações que trabalham em conjunto com cerca de 3.000 organizações locais no mundo todo. Para alcançar seus propósitos, a OXFAM desenvolve intensos lobbies junto aos organismos internacionais, além de promover campanhas informativas e participar de programas de desenvolvimento. Promove campanhas informativas, divulga documentos, articula-se através da rede com as 12 organizações que atuam com outras redes locais em mais de cem países.
The Palestinian NGO Network Coordenar a atuação das organizações em apoio à causa palestina espalhadas pelo mundo; busca também estratégias comuns entre elas. Fundada em 1993, depois da assinatura do Tratado de Oslo, esta rede dá suporte a entidades civis que lutam pelos direitos do povo palestino, atuando como "guarda-chuva" de 92 organizações. A PNGO colabora ainda com outras organizações ou redes de organizações, como Sabeel Ecumenical Liberation Theology Center, The General Union of Palestinian Women, Christian Aid Christian Peacemaker Teams (CPT), Coalition of Women for Peace, Ecumenical Accompaniment Program in Palestine and Israel (EAPPI), International Solidarity Movement (ISM), International Women's Peace Service (IWPS), Israeli Committee Against House Demolitions e  World Council of Churches. Através de seu site, a PNGO divulga suas estratégias de luta, publicações, informação sobre campanhas, projetos em andamento, notícias, documentos e comunicados. Sua página na Web se transformou em um veículo de referência, integração e intercâmbio entre as organizações que formam a PNGO.
IGC e APC (Institute for Global Communications e Association for Progressive Communications) Apoiar, por meio do uso das tecnologias de informação e comunicação, as organizações de todo o mundo que atuam por direitos humanos, paz, meio ambiente, desenvolvimento sustentável, direitos da mulher e dos trabalhadores. Foi fundado em 1987 para dar suporte à rede de organizações pacifistas PeaceNet. Em parceria com seis organizações internacionais, o IGC fundou, em 1990, a APC, uma coalizão internacional de redes de computadores de entidades progressistas, com 25 membros e 40 parceiros. A APC diz apoiar um mundo em que as pessoas possam usar o "potencial criativo das T.I.C. para melhorar suas vidas e criar sociedades mais igualitárias e democráticas" (APC, 2004). Sua assembleia consultiva é formada por membros de outras organizações ou redes de organizações como Peacefire.org, GreenMarketplace, Project Change Anti-Racism Initiative e redes como Envirolink Network, The Women's Network. O IGC oferece serviço de hospedagem na rede a cerca de 250 organizações sem fins lucrativos. Oferece também suporte à formação de outras redes como a EcoNet, WomensNet, LaborNet e AntiRacismNet.
A APC oferece ferramentas de comunicação e compartilhamento de informação para organizações não-governamentais e ativistas de mais de 130 países.
Indymedia
(Centro de Mídia Independente - CMIs)
Apoiar e promover o intercâmbio de notícias entre a imprensa independente em todo o mundo. Reúne centros alternativos de mídias do mundo todo. Foi formada para cobrir a reunião da OMC, em Seattle, em 1999, utilizando a Internet como sua base para difundir informes, vídeo, áudio e fotos registrados.
Após o fracasso da cúpula, a Indymedia se consolidou. Passou a publicar um jornal em Seattle - e em outras cidades através da Rede - e fundou uma estação de rádio. No site, foi desenvolvido um inovador sistema de publicação aberta, mediante cadastro. A difusão dos CMIs começou depois das coberturas, em 2000, dos protestos contra o FMI e o Banco Mundial. Atualmente há mais de uma centena de CMIs espalhados pelo mundo.
A organização se dá basicamente pela Internet, envolvendo discussões internacionais entre os membros do centro, inicialmente através de suas listas e IRC. Também utilizam um sistema de gerenciamento de conteúdo chamado Twiki, que funciona como site de acesso aberto. A Indymedia não tem escritório central, nem endereço, telefone e fax, ainda que alguns CMIs possam tê-los.
Global Trade Watch (GTW) Fomentar a democracia por meio da promoção de um mercado mais justo e responsável como alternativa ao modelo corporativo de comércio mundial. Um bom exemplo de organização que faz parte de outras redes de organizações de alcance mundial. Os temas principais da GTW são proteção ambiental, saúde, justiça econômica, segurança, democracia e responsabilidade política (GTW, 2004). A GTW faz parte do comitê executivo da Citzen Trade Campaign, coalizão que reúne entidades de trabalhadores, ambientais, religiosas, ligas de consumidores, fazendas familiares com o objetivo de lutar por políticas comerciais social e ambientalmente justas. A GTW também faz parte da rede Our World Is Not For Sale (OWINFS), que reúne organizações, movimentos sociais e ativistas independentes do mundo todo que lutam contra o modelo corrente da globalização incorporada pelas práticas do comércio internacional. Usa a Rede para divulgar documentos, fazer denúncias, difundir e promover campanhas, angariar fundos, articular-se com seus membros, divulgar atividades, notícias, documentos e comunicados, além de ajudar a promover e apoiar organizações aliadas e suas atividades.
Nodo50.org Dar suporte informático a movimentos e coletivos sociais diversos, superar a fragmentação dos movimentos sociais e promover a difusão de "contrainformação". Reúne 853 organizações sociais, o Nodo50 surgiu com base em um simples BBS (Bulletin Board System), durante a comemoração dos 50 anos do FMI e do Banco Mundial, em 1994, em Madri. Seu objetivo era dar suporte às organizações que denunciavam a forma de atuação de tais organismos. Em 1996, o Nodo50 se tornou um provedor de acesso com o objetivo de apoiar campanhas de ações de movimentos sociais e pequenas organizações políticas. As organizações que fazem parte do Nodo50 são ligadas principalmente aos movimentos feministas, ecologistas, sindicalistas e grupos internacionais de apoio, solidariedade ou cooperação ao desenvolvimento. A ideia é "superar a fragmentação dos movimentos em ilhas atomizadas, trabalhando na construção de um arquipélago interconectado de resistências e ações coletivas" (Nodo50, 2004). O Nodo50, além de oferecer conexão, espaço para hospedagem, gestão de domínios e outros serviços comuns a empresas do ramo, faz projetos gráficos, dá cursos de formação, facilita a busca e a inscrição em suas organizações, apoia e divulga suas campanhas, facilita a difusão e o intercâmbio de informações entre tais organizações, por meio de sua lista e da lista de outras organizações que difunde.
No Border Coordenar a luta de ONGs e movimentos sociais contra a migração global com base no recrutamento e na exploração e  econômica de trabalhadores. Criada em 1999, em Amsterdã, trata-se de uma rede formada por mais de 150 organizações e grupos de ativistas europeus em defesa dos imigrantes e contra as formas de discriminação. Sua principal luta é contra as políticas de deportação de exilados estrangeiros por parte de governos, assim como contra as corporações que se beneficiam de alguma forma de tal situação. A No Border é conhecida por suas estratégias arrojadas de atuação, o que incluem hackerismo e campanhas em rede contra governos e empresas. A coordenação entre os grupos de ativistas é feita por uma lista de e-mails e por dois encontros anuais. Promove ocupações, acampamentos junto a aeroportos, manifestações simultâneas em vários países e hackerismo.
Third World Network Apoio ao desenvolvimento e à cooperação internacional Rede internacional independente de organizações e indivíduos envolvidos em assuntos relacionados com o desenvolvimento e as relações Norte-Sul. Concentra-se sobre a investigação sobre assuntos econômicos, sociais e ambientais referentes aos países em desenvolvimento; publica livros e revistas, organiza seminários e apresenta plataformas de apoio aos interesses dos países do Sul nas conferências internacionais. A TNW possui escritórios na África, América, Ásia e Europa. Conta com organizações filiadas nos países em desenvolvimento, com as quais desenvolve parcerias. Divulga documentos, distribui informes, promove campanhas informativas e eventos. Coordena-se com outras organizações pela Rede.

Poderiam ser citadas ainda outras redes de organizações de bastante relevo, como a Setem, a Confédération Paysanne, Atacc, Fórum Social Mundial (também atua em rede), entre outras. Mas suas características e formas de articulação não se diferenciam muito das já citadas.

Há ainda organizações que, embora não atuem em rede de organizações, reúnem redes com centenas de milhares de pessoas, com um grande poder de mobilização e lobby. É o caso da Public Citizen, nos Estados Unidos, organização de defesa do cidadão e consumidor, que milita por causas tão diversas como justiça econômica e social nos negócios comerciais, accountability político, uso de energias limpas e sustentáveis, proteção ambiental e saúde.

Mesmo organizações mais antigas, "pré-Internet", como Greenpeace, WWF, American Watch ou Anistia Internacional, utilizam a Rede para divulgar suas ações, documentos, dossiês, comunicados, promover suas campanhas, comunicar-se com as representações locais, angariar fundos e aceitar filiações. No caso dessas ONGs mais antigas, falta ainda averiguar qual o tipo de transformação que a Internet ocasionou, de forma concreta, em sua cultura organizacional.

Poderiam ser relacionadas outras redes ou sub-redes menores, intra e transorganizacionais. Porém, essas redes são tão complexas e amplas que necessitariam descrições que vão além do propósito deste artigo, já que envolvem, inclusive, conexões e contatos individuais de seus membros.

Para Keck e Sikkink, tais articulações são resultados de uma busca mais eficiente para a formação de "um bloco de canais" por meio de alianças entre grupos locais conectados a uma rede internacional e seus governos. O compartilhamento da informação teria um papel-chave para a construção de estruturas compartilhadas de significado como parte de sua atividade política (1998: 17). Para eles, a fonte de sua ação coletiva se baseia na crença das liberdades das teorias liberais e na consciência individual onde "o indivíduo pode fazer a diferença" (1997: 2).

Tais redes exercem uma crescente influência simbólica na responsabilidade política (accountability). É isso que apontam Smith, Chatfield e Pagnucco. Para esses autores, isso se daria "por meio do fortalecimento da informação e contrainformação política, do alinhamento de estratégias de atuação, do compartilhamento de metas e outros tipos de apoio recíproco". Dessa forma, tais organizações "conseguem ligar o local, o nacional com o global, assim como as arenas políticas inter e transgovernamentais, criando assim uma nova estrutura de política global que desagrega o Estado e a política local na intersecção dos níveis nacional e internacional" (1997). A necessidade do compartilhamento de um conjunto de valores, em algum nível, é outra característica de tais redes, que podem unir, como destaca Escobar (2000), ONGs, fundações, igrejas, grupos de consumidores, movimentos sociais locais e alguns atores-Estado em torno de uma mesma causa.

Vê-se que as novas tecnologias de informação e comunicação permitem, a partir de apenas alguns pontos, integrar ou conectar redes imensas e diversas. Tais conexões ainda não foram suficientemente estudadas. No entanto, vale destacar alguns estudos pioneiros nesse sentido, realizados por Diani (2003a), em que mostra caminhos prospectórios, pela aplicação de análise de redes, e de Oliver e Myers (2003), sobre as redes de ação coletiva na difusão de protestos.

Características dos movimentos sociais perante as novas tecnologias de informação e comunicação

Depois de apresentar uma breve descrição das mudanças nas formas de atuação dos movimentos sociais, cabe agora sumarizar as características dos movimentos sociais que atuam por meio das redes telemáticas.

1) Proliferação e ramificação dos coletivos sociais. A rapidez e o alcance das novas tecnologias de informação permitem uma proliferação de organizações civis e coletivos sociais, assim como uma integração eficiente e estratégica entre eles; baseado principalmente no idealismo e voluntarismo de seus membros, incentivados pela relação custo-benefício bastante favorável, surgem novas formas de alianças e sinergias de alcance global. Com isso, aumentaram enormemente as formas de mobilização, participação, interação e acesso à informação, a provisão de recursos, as afiliações individuais e as ramificações entre os movimentos sociais.

2) Horizontalidade, flexibilidade das redes. As organizações tendem a ser cada vez mais horizontais, menos hierarquizadas, mais flexíveis, com múltiplos nós e conectadas a numerosas microrredes (Melucci - 1996- chama-as de "redes submersas") ou células que podem ser rapidamente ativadas. Como destaca com propriedade Castells, os novos movimentos sociais se caracterizam cada vez mais por "formas de organização e intervenção descentralizada e integrada em rede".

3) Tendência coalizacional. Atua crescentemente em forma de redes coalizacionais (Diani, 2003 b, Escobar, 2000), de alcance mundial, em torno de interesses comuns, e com base na infraestrutura de comunicação propiciada pela Internet.

4) Existência dinâmica ou segundo os fatos. Possuem grande dinamismo, podem se formar, alcançar certos objetivos, causar impacto e repercussão, expandir-se por razão de um fato político; da mesma forma, podem rapidamente se desmanchar ou desaparecer, conforme a situação.

5) Minimalismo organizacional-material. A sede física se tornou irrelevante; fax, telefone ou endereço postal passam a ser itens secundários. A possibilidade de operação a um custo muito baixo incentiva a emergência e a associação de novos movimentos sociais.

6) Universalismo e particularismo das causas. Os ideais podem ser universalistas e particularistas. Podem atender a uma ou a um conjunto de aspirações de coletivos sociais bastante pequenos e específicos (e mesmo geograficamente separados). No entanto, ainda que ligado a uma causa ou tema específico, a luta pode orientar-se cada vez mais com relação a um quadro de lutas mais amplo, que diz respeito a princípios de aceitação universal, como desenvolvimento sustentável, direitos humanos, direito à autodeterminação dos povos, combate ao racismo e formas de discriminação, democracia, liberdade de expressão, etc.

7) Grande poder de articulação e eficiência. Permite a organização de protestos simultâneos em diferentes cidades e países, assim como a articulação local de vários grupos de manifestantes dispersos. Ao contrário ao que erroneamente se crê, a convergência de interesses não se dá somente no plano virtual - no espaço dos fluxos, como diria Castells (2000). Ela se materializa também por ações concretas. É o caso, por exemplo, das ações do Move On, No Border, Oxfam, Confederation Paysanne, Atacc, grupos Okupa, entre outros. Sua geometria pode ser variável, concentrando e ativando seus nós de diferentes formas e combinando estratégias variáveis.

8) Estratégias deslocalizadas de ideologias compartilhadas. As estratégias no espaço dos fluxos são deslocalizadas; buscam ligar identidades, objetivos, ideologias e visões de mundo compartilhadas. Identidade e solidariedade passam a desempenhar papéis fundamentais para a formação de tais redes. Essa característica se associa ao que Castells chama de identidades de resistência. Segundo ele, a constituição dos sujeitos se daria "sociedades civis em processo de desintegração", em que a identidade seria um elemento de "resistência comunal" (1999: 25).

9) Multiplicidade de identidades / circulação de militantes. Permite a circulação dos militantes nas redes. Um mesmo ativista pode estar enredado com outras causas, com outros atores coletivos; pode militar em vários movimentos e, também, transmitir sua reivindicações nas diferentes redes de que participa (por meio de suas conexões identitárias); como a união de seus membros pode ser apenas específica ou pontual, não é incomum a participação de um mesmo indivíduo em diferentes movimentos sociais, compartilhando um interesse com pessoas que, em outras dimensões da vida social, tem aspirações, valores e crenças bem diferentes. Para Giddens, a autoidentidade é uma característica fundamental do que chama "modernidade tardia". Em um cenário de crescente interconexão entre a intencionalidade com a "extencionalidade" - capacidade de interação com elementos cada vez mais globais - do indivíduo, a este é possível negociar uma série de estilos e opções de vida, construindo sua identidade em termos de sua interação dialética com o global. Castells, ao falar da construção social da identidade, refere-se a "identidade de projeto" quando "os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade" (Castells, 1999: 24). A "identidade de projeto" está relacionada à construção de projetos de vida por prolongamentos da identidade e experiências do indivíduo, que dão espaço ao surgimento de novos sujeitos - que formam o ator social coletivo" (Castells, 1999: 26).

10) Identidade difusa. O anonimato e a multiplicidade de identidades potencializam as formas de ativismo, mas também por essa razão é que cada é vez mais difícil tratar de questões identitárias dos movimentos sociais. Os interesses dos indivíduos que os ligam em redes são cada vez mais cruzados, diversos e frequentemente tênues. Luta-se cada vez mais ao redor de códigos culturais, valores e interesses diversos. Essa luta se dá cada vez menos a partir dos indivíduos e mais sobre a construção de sujeitos sociais. Essa complexidade característica dos movimentos sociais contemporâneos foi percebida por Melucci. Para ele, eles têm estruturas cada vez mais difíceis de serem especificadas como ator coletivo, possuindo "formatos cada vez mais indistintos e densidades variáveis" (Melucci, 1996: 114).

Articulações de grande escala ou manifestações com apoio diversificado e maciço, como as ocorridas por ocasião das cúpulas e reuniões do G7, OMC, FMI, Banco Mundial, Fórum Econômico Mundial e da Guerra do Iraque, não poderiam ser realizadas há alguns anos - ou, pelo menos, sem uma dificuldade muito maior. O uso das tecnologias de informação proporcionou que, de forma avessa ou independentemente aos meios tradicionais e espécies de controle social, um enorme fluxo de informações circulasse, resultando em algum nível de conscientização e uma eficiente articulação de meios, recursos e estratégias para grandes mobilizações a partir de centenas de nós de pequenos coletivos de ativistas. Foi com essa criatividade que os diversos e novíssimos movimentos sociais conseguiram frustrar com êxito a cúpula da OMC, em Seattle, e causar sérios transtornos em quase todos os eventos do gênero realizados nos anos recentes pelas organizações anteriormente citadas.

Deve-se chamar a atenção de que esse processo ainda está em andamento. Tais mudanças nas estruturas e formas de atuação dos movimentos sociais ainda estão em uma etapa inicial. Considerando a falta de conexão em muitos países do mundo, o analfabetismo digital ou as dificuldades e limites decorrentes alfabetização digital tardia dos estratos etários superiores, o predomínio de setores da classe média em tais organizações e, sobretudo, porque se trata de transformações operadas em sua maioria por uma geração que ainda há de assumir posições mais importantes na sociedade, há ainda um grande horizonte de transformações pela frente. Tais transformações dependem ainda da emergência de uma nova geração e da assimilação de novas práticas culturais, ainda presentes em setores minoritários da sociedade global.

Por outro lado, tais tecnologias têm permitido não apenas a formação, mas também a existência de novos entes políticos no âmbito global. Novos atores sociais surgem e se formam, apoiados em redes e sub-redes menores, espécies de células "dormentes", que podem ser ativadas a qualquer momento, segundo seus fatores identitários, valores e ideologias. Trata-se de um jogo em que as múltiplas identidades sociais, interesses e ideias se articulam e se combinam com grande dinamismo em torno de objetivos e fins específicos e determinados. O que chamamos de "forças dormentes" são mentes - ou pessoas - conectadas que, ainda que individualmente possam pouco mais do que se indignar diante de uma injustiça, quando organizadas em uma rede, sentem-se encorajadas para participar e desencadear ações. Os movimentos sociais articulados em rede têm o poder de agregar essas "identidades individuais" ativando os elementos identitários de solidariedade.

Para poder fazer frente a interesses de corporações, governos e autoridades, esses atores sociais têm como o principal recurso - e, por vezes, o único - a informação. Estrategicamente difundida e aliada a formas de articulações tradicionais - como manifestações, protestos e campanhas mundiais -, a informação e o conhecimento podem eficientemente desencadear processos de mudança social. O que chamamos aqui de informação é apenas uma matéria bruta que pode ser transformada em ideologia. Por isso, os movimentos sociais se orientam cada vez mais em torno dos meios de comunicação, cujo poder de persuasão pode ser, por vezes, muito mais poderoso que, por exemplo, o uso da força.

Consolida-se também a tendência de que a maior parte dos movimentos sociais através da Rede se oriente por valores universais, como direitos humanos, de minorias, liberdade de expressão, preservação ambiental, entre outros, reivindicando as garantias das leis de um Estado democrático - mesmo que seja para transgredi-lo. Tais valores, por serem cada vez mais aceitos, criam fortes identificações que facilitam a integração no plano axiológico e simbólico dos movimentos sociais. A partir de tal interpretação, vê-se uma intersecção bastante favorável para que ocorra essa conexão em redes entre os movimentos sociais.

O que tece tais redes de coletivos sociais são relações, conflitos e processos políticos e sociais que ocorrem na sociedade, cujas causas e consequências se entrelaçam no cotidiano dos atores e são, cada vez mais, compartilhadas entre eles. Assim como outros aspectos das relações sociais mediadas por computadores, os conflitos e processos de mudança reverberam e difundem-se nas redes telemáticas até conquistar mentes e alcançar o cotidiano das pessoas.

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Este texto originou-se de um trabalho apresentado pelo autor no II Congresso Online del Observatorio para la Cibersociedad, ocorrido em Barcelona, de 2 a 14 de novembro de 2004. Clique aqui para acessar a versão integral (em espanhol) do texto no site do evento.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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