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Nada do que é humano me é estranho

Rita Marisa Ribes Pereira

Professora da Faculdade de Educação da Uerj e do Curso de Especialização em Educação Infantil da PUC-Rio.

Colocando em debate a escola, a ética e a violência

Texto produzido para a Série "Debates contemporâneos: escola e violência", veiculada pela TVE-Brasil em  setembro de 1999. www.tvebrasil.com.br/salto

O chefe da segurança mata o adolescente que roubou um rádio em Central do Brasil. No trem, sacolejam as cores de um Brasil exilado no sonho da grande cidade. "Não chore! É apenas um filme." No noticiário o destaque é o assaltante morto com cinco tiros em frente à câmera. Nova tomada. Agora em câmera lenta. O "tira-teima". A reconstituição. "Ainda bem que tem gols!!!" A pátria de chuteiras pede o fim da guerra de torcidas. O jogo do videogame se parece com a Guerra do Golfo. Ou será a Guerra do Golfo se parece com o jogo do videogame? Alimentos geneticamente alterados. Milhões de seres humanos morrendo de fome. Os sulcos da terra seca se desenham em rugas nos rostos nordestinos. A descoberta de água na Lua leva o homem a pensar em povoá-la. Na terra, a luta pela reforma agrária continua. Cólera, febre amarela, tuberculose, meningite, dengue: doenças já erradicadas entram novamente em cena. Saúde pública. Saúde privada. Privação. Na publicidade, a margarina é o segredo para uma vida saudável. Nossos comerciais, por favor! Compre! Adquira! É gastando que você economiza. "Topa tudo por dinheiro?" "Algumas coisas na vida não têm preço. Mas para todas as outras existe um cartão de crédito." "O mundo trata melhor quem se veste bem." Em todos os invernos, existe campanha de agasalho.  Mas o desejo é a sandalinha da Carla Perez. "Quem não tem dança!" Na escola, as crianças reconhecem logotipos antes mesmo de aprender a ler. Rótulos de produtos são instrumentos para a aprendizagem da leitura. Ivo vê a uva. A pata nada. O peixe de xale. Vida. Escola. Na vida dez, na escola zero. Cadernos. Canetas. Armas de fogo. Brincadeiras. Brigas. Algazarra. Medo. Crianças. Adolescentes. Famílias. Encontros. Desencontros. Cultura. Saber. Inclusão. Exclusão. Limites. "Minha liberdade termina quando começa a liberdade do outro." "A liberdade do outro amplia a minha ao infinito." Alteridade. Indiferença. Solidariedade. Ética. Violência. Escola.

"Nada do que é humano me é estranho" disse o sábio Terêncio, na antiguidade. Sua frase nos ajuda a pensar que toda criação ou produção humana, por mais estranha que nos pareça, é feita por nós. É nossa a glória da sua criação e também é nossa a responsabilidade por  tê-la criado. O ser humano se caracteriza pela sua infinita capacidade de criação. Arte. Ciência. Política. Agricultura. Arquitetura. Educação. Cultura. São tantas as coisas que inventamos: livros, macarronada, brinquedos, futebol, roda de amigos, relógios de pulso, helicópteros, naves espaciais, computadores, doce de leite, tanques de guerra, bomba atômica, clonagem, desrespeito, solidariedade, violência. Algumas criações nos enchem de orgulho. Com falsa modéstia reivindicamos reconhecimento. Em relação a outras, fingimos não terem sido feitas por nós. Quem buscaria os louros pela explosão da bomba atômica? Quem é o fabricante das armas que as crianças e os adolescentes levam para a escola? Quem assume a indiferença diante de tantas perguntas infantis? Quem são os inventores desta "Vida Severina onde se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte e de fome um pouco por dia"? Quem deseja ser o pai desses tantos monstros de Frankenstein?

Às vezes, temos medo das nossas criações. Outras vezes - que são a maioria -, fingimos não terem sido produção nossa e nos descomprometemos, travestindo-nos de indiferença. Sob a ótica da indiferença, tudo na vida vai se transformando em comum, em familiar. Torna-se comum dizermos que o mundo está muito violento, que as coisas não têm mais jeito, que as coisas são assim  mesmo. Serão mesmo? Os noticiários sobre violência, sobre o descaso com a saúde pública, a descrença na justiça, as mazelas da educação, a duvidosa qualidade da programação televisiva, tudo isso já nos soa familiar. Todos os dias, esses assuntos adentram nossa casa. Com eles, entram também as tramoias vividas nas novelas, as rajadas de metralhadora que fazem sonoplastia dos filmes, os maníacos que conseguiram inúmeros minutos de fama, a roupa que está na moda e ainda não temos, as expressões que comporão nossa linguagem. Onde estão os diamantes do "Seu Valdomiro"? Onde estão as muitas crianças desaparecidas? Quem matou Odete Roitman? Quem matou P.C. Farias?  A vida imita a arte? Ficção. Realidade. Isso lhe parece familiar?

Vale, então, a pergunta:  se "nada do que é humano me é estranho", não será também próprio do homem a capacidade de estranhar?  O que nos é familiar, será, efetivamente, conhecido? É possível conhecer sem estranhar? Aquilo que aos nossos olhos parece familiar pode não ser efetivamente conhecido. É preciso que coloquemos o familiar sob suspeita, sempre em questionamento, pois, quando aquilo que nos parece óbvio é denunciado com consciência, recuperamos a capacidade crítica do nosso olhar.

Dito isso, se a violência já se tornou familiar, o que efetivamente sabemos sobre ela?

A violência, hoje, parece-nos extremamente familiar. No entanto, é preciso ponderar que não se trata de um fenômeno contemporâneo. Um breve olhar para a história da humanidade pode ajudar-nos a perceber as transformações que as práticas violentas vão redesenhando: guerras, massacres, autoritarismo, ditaduras, fascismo, machismo, escravidão, repressão, censura, relações opressoras de trabalho, poder, trabalho infantil, massificação. O que entendemos quando o noticiário fala em limpeza étnica na Bósnia? O que queremos dizer quando pedimos a retirada dos mendigos das ruas? Qual a relação entre a guerra em Kosovo e a Primeira Guerra Mundial? Qual a relação entre as capitanias hereditárias e a atual luta pela terra no Brasil? A história da humanidade é também uma história de violência, uma geografia política muitas vezes desenhada às custas do apagamento do outro.

Sob o olhar da filosofia, há uma relação de oposição entre natureza e cultura. Com o objetivo de distinguir-se e sobrepor-se perante os demais seres da natureza, o homem pretendeu (pretensioso que é) dominar a natureza, tentando até dominar o que nele existe de natureza. Criando para tudo uma justificativa racional, deu-se ao direito de desviar o curso dos rios, alterar geneticamente os alimentos, clonar animais, produzir armas químicas que matam o próprio homem e deixam intactas todas as coisas (e as baratas, é o que dizem...). Que estranha forma de tornar-se senhor! Se olhada sob esse aspecto, a própria cultura representa uma forma de violência que não é externa ou circunstancial ao homem, mas que faz parte dele, que lhe é inerente.

A violência, portanto, não tem apenas uma face. É certo que a identificamos com mais facilidade quando ela toma uma proporção física: guerra, assassinato, espancamento, demolição. A morte não causa  mais espanto. E se, hoje, percebemos a violência tão presente é porque talvez essas atitudes tenham tomado uma proporção mais ampla. Certamente, o que mais nos choca é o fato de que a iniciativa dessas formas de violência não é mais uma atitude exclusiva dos adultos. O que nos assusta é que passamos a ter medo das crianças e dos adolescentes, de todas as classes sociais. O que significa ter medo das crianças? Do que efetivamente temos medo: das suas atitudes ou das suas perguntas?

Era comum nas antigas tragédias gregas que os filhos fossem culpados pelos erros cometidos por seus pais. Muitas vezes tinham que pagar com a própria vida ou, então, assumir a culpa como condição de vida. A culpa era sua maior herança. E com nossos filhos, com nossos alunos, será que não estamos deixando a eles essa herança? Percebemos cada vez mais um distanciamento entre crianças e adultos. São muito restritas as experiências compartilhadas. Suas histórias passam a ser construídas separadamente, e o hiato deixado entre elas é um abismo construído entre as gerações. Se uma das características da cultura humana é a transmissão das descobertas da humanidade para as gerações vindouras para que elas, de posse desse saber, possam lançar-se a novos desafios, o que podemos esperar de uma geração condenada a buscar por si própria essas respostas? Será que percebemos esse vazio como um berço para a violência? A ética só se constrói na relação com o outro, na percepção da presença do outro. É nessa relação que aprendemos a nos conhecer, pois o outro ajuda a perceber em nós um pouco daquilo que sequer sabemos que somos. É o outro que nos confirma, que discorda, que aponta a diferença.

Se, por um lado, o crescente saber especializado nos ajuda a compreender melhor os comportamentos infantil e juvenil, por outro lado institucionalizou-se a tal ponto o saber que deixou esvaziado o lugar da afetividade. Psicólogos, educadores, psicopedagogos, sociólogos, juristas e outros profissionais: todos sabemos muitas coisas sobre a infância e a adolescência. No entanto, isso não tem sido garantia de qualidade na relação com nossos filhos. Quem sabe esse tipo de saber foi produzido distanciado da realidade humana. É preciso saber das teorias da linguagem, mas é preciso também dizer-se e saber ouvir. É preciso saber dos processos da criação da escrita, mas é preciso também descobrir seu potencial criador, ler, escrever. É preciso saber das leis, mas é também preciso reconhecer-se e respeitar o outro na sua condição de cidadania - não porque está na lei, mas porque nos envolvemos eticamente.

Nesse sentido, torna-se urgente perguntar: que outras faces guarda a violência? Quais os perigos de uma violência que não mostra a sua face? A violência também encontra morada na linguagem. Tanto nos discursos que pronunciamos como na negação do direito à fala.  Expressões. Piadas. Ditos populares. Músicas. Novelas. Filmes. A situação está ficando preta. Não judia de mim. A conversa não chegou na cozinha. Homem não chora. Parece que é cego. É leso. De cavalo dado não se olham os dentes. Mulher ao volante, perigo constante. Em boca fechada não entra mosca. Quantas outras expressões e ditados populares poderíamos ainda listar?

Também a linguagem escolar guarda uma face oculta muitas vezes violenta. Organização do espaço físico. Conteúdos desconexos à realidade. Primazia da escrita sobre outras linguagens. Oposição entre a fala culta e a fala popular. Atividades repetitivas. Rotina  pouco criativa. Prova. Nota. Avaliação que busca a falta, justamente os predicados que o sujeito não tem. Disciplinas que ganham reconhecimento à medida que reprovam em massa. Disciplinas humanistas muitas vezes desvalorizadas. Reprovação. Exclusão.

O que esse contexto pode dizer à criança ou ao adolescente, ávidos por aventuras e desafios? Que esse espaço não é seu. Que seu comportamento não condiz com as expectativas institucionais. Que sua forma de ser, de falar, de vestir e de pensar não é correta. O que significa dizer "Este lugar não é seu", seja ele a escola, a casa, o mundo? De quem é, então, este mundo, essa escola? É preciso pensar em que medida a instituição de um exílio social - não ter um lugar que se identifique como seu - pode ser um meio de camuflar o medo, entre outras tantas coisas, que temos medo do que tenham a dizer sobre a nossa escola, a nossa casa, o nosso mundo. Significa que só percebemos o erro no outro. Significa que esse outro não foi chamado a pensar junto. Significa que sua capacidade criativa foi reprimida.

Tudo que é reprimido, lembra-nos a psicologia, retorna em forma de violência. O que nos conta a imagem de uma escola destruída? O que nos conta o olhar dos drogados? O que nos revelam as famílias inteiras que vivem nas ruas? O que nos revela a falta de perspectivas que atribuímos aos jovens? O que nos conta a apatia de alguns? Por que a violência nos incomoda e a apatia não?

Em que medida é possível reconhecer que esse mundo também é seu? Que a sua casa pode ser efetivamente sua? Que sua escola também pode ser seu lugar? Como perceber a sutil e profunda diferença entre a rebeldia e a violência? Como perceber que todo ato criativo pressupõe o rompimento com um contexto já estabelecido? Como terá sido a infância e juventude de Copérnico, Galileu, Einstein, Picasso, Charles Chaplin? Como potencializar essa capacidade de transgressão que confere identidade ao jovem para que ela se transforme em criação?

Inúmeras experiências nos mostram que, nas escolas em que os alunos e a comunidade se sentem efetivamente participantes, os índices de violência se mostram muito pequenos ou mesmo inexistentes. Por quê? Que valores estão sendo compartilhados? Que outras experiências são possíveis de se construir, "para que, afinal, floresça o mais humano em nós"?

Referências

MELLO-Neto, João Cabral. Morte e vida Severina.

DaMatta, Roberto. Relativizando. Uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro, Rocco, 1997.

Na perspectiva crítica da Escola de Frankfurt, ver: HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1986.

Pasolini, Pier-Paolo. Os jovens infelizes: antologia de ensaios corsários. São paulo, Brasiliense, 1990 .

Jobim e Souza, Solange. "Infância, violência e consumo" In: Subjetividade em questão: a infância como crítica da cultura. Rio de Janeiro, 7Letras, 2000.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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