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No final de tudo o gene quer apenas ser feliz
Marcia L. Triunfol
O Projeto Genoma Humano
Março de 1998
Um dos maiores e mais ambiciosos projetos científicos de todos os tempos é o Projeto Genoma Humano. Este projeto envolve principalmente a sociedade científica e o governo americano. A principal meta do projeto é a determinação da localização (locus) e estrutura (sequência de nucleotídeos) de todos os genes encontrados em nossos cromossomos. Este projeto estará, como tudo indica, concluído nos primeiros anos do próximo século.
Uma vez que os experimentos envolvendo genética humana são particularmente complicados por questões éticas, e uma vez também que muito do nosso conhecimento de genética é oriundo de observações feitas em outros organismos, o Projeto Genoma Humano inclui não somente o sequenciamento do genoma humano, mas também de outros organismos de interesse experimental.
Hoje em dia, os mapas do genoma humano já possuem milhares de pedaços de DNA conhecidos (localização e estrutura).
Os mapas dos genes humanos nos permitem localizar genes de importância médica, genes que, por exemplo, causam doenças específicas. E com o Projeto Genoma Humano os cientistas serão capazes de identificar os genes responsáveis por problemas mais complicados, como obesidade e problemas do coração.
O Projeto Genoma Humano é a maior prova do poder que a biologia moderna conquistou como ciência prática e também teórica. Uma vez que o projeto tem como principal alvo os genes humanos, o andamento deste traz também a necessidade de que a sociedade discuta os limites de tal empreitada.
Até onde queremos saber quando o conhecimento sobre nossos genes pode, potencialmente, nos limitar o acesso a um seguro de saúde ou mesmo um emprego? Com a conclusão do projeto, saberemos que, independente do fato de parecermos fortes e sadios, todos nós possuímos genes deletérios, estando todos sob o risco da discriminação.
O maior desafio do Projeto Genoma Humano ainda está na definição de como o conhecimento adquirido ao longo de sua realização será utilizado pela sociedade de um modo geral. Este conhecimento pode ser utilizado de maneira positiva, a favor do indivíduo ou pode atuar no sentindo oposto, criando uma nova ética social.
Por outro lado, se a tecnologia está disponível, teremos nós o dever ou direito de direcioná-la do modo que julgamos mais adequado? E o público dava as mais variadas opiniões. Um senhor então se levantou e fez aquela que considerei a mais brilhante colocação. "Gostaria que alguém nesta sala me informasse como definimos normal. O que é ser um feto, uma criança ou um adulto normal?" Eu fiquei sentadinha lá no meu lugar a pensar... E me lembrei daquela música do Caetano Veloso, Vaca Profana que dizia: "...de perto ninguém é normal...".
Com quantos genes se faz um ser humano?
Novembro de 2000
No início o exagero, como sempre. Falava-se até em 200 mil genes. Depois, conforme o Projeto Genoma foi avançando, este valor começou a mudar. E hoje, com o nosso mapa quase que totalmente sinalizado e decifrado, aprendemos que na verdade a nossa receita leva muito menos ingredientes do que antes imaginávamos.
E o número final, segundo os dados da Celera (empresa americana que dividiu com os cientistas das universidades a glória de ter sequenciado a maior parte do código genético humano), está em torno de 35 mil genes. E acredita-se que este valor ainda será reduzido para algo em torno de 20 mil. Enfim, corremos o risco de terminarmos nossos dias com apenas um ovo na panela, e claro, uma pitadinha de sal.
O interessante disso tudo é a percepção do velho ditado que dizia, o importante é qualidade, não quantidade. Isso mesmo! Para se fazer um ser humano não são necessários tantos genes quanto pensávamos, e importante mesmo são as interações que estes genes são capazes de realizar. Parece incrível imaginar que apenas 20 mil genes são suficientes para se produzir alguém como eu ou como você. E quase todos os ingredientes desta receita já podem ser encontrados no banco de dados da Celera, a companhia americana de biotecnologia que apostou, desde o início, na ineficiência do governo americano em realizar o mapeamento do genoma humano de forma organizada, meticulosa e em tempo hábil. E cá pra nós, ganhou a aposta. O banco de dados da Celera é incomparavelmente melhor que o banco de dados público, chamado Gene Bank, que reúne um consórcio de institutos e universidades em todo o mundo.
O Gene Bank é bastante confuso, tem muita coisa repetida e diferentes universidades e institutos usam diferentes formatos, o que faz com que o trabalho de pessoas como eu, uma genuína caçadora de genes, se torne imensamente complicado, chato e demorado. E o que se vê hoje é a Celera oferecendo o acesso ao seu banco de dados por um precinho camarada... 19 mil dólares por ano, com contrato de 3 anos! E imagine quem já está interessado em comprar o direito ao acesso a este banco de dados? As instituições científicas pertencentes ao governo americano. É como vender água para Iemanjá.
Vender o acesso ao banco de dados, assim como o software para decifrar o mapa genômico, sempre foram os grandes objetivos da Celera, que eu só fui entender mais tarde. Antes todos nós pensávamos que o maior objetivo da Celera era patentear os genes. Por isso teria entrado nesta corrida. Mas não é não, e a Celera de modo algum é uma das grandes patenteadoras de genes. Até porque, segundo a lei americana, só se pode patentear um gene quando se sabe exatamente o que este gene faz, se causa alguma doença, se é responsável por algum tipo de suscetibilidade e coisas do tipo. E isso não tem nenhuma relação com mapear um gene. Mapear um gene significa, simplesmente, que a sequência de DNA (aquela coisa de timina, adenina, guanina e citosina) é conhecida. Daí, a saber, a função do gene é outra coisa.
E com isso a Celera deixa claro que sua metodologia é mais eficiente, mais organizada, mais elaborada, mais informativa, e, claro, muito mais cara que aquela oferecida pelo governo americano. .
E o próximo passo agora será o sequenciamento do código genético de todos os organismos vivos que habitam nosso planeta. Teremos o Projeto Genoma Elefante, Projeto Genoma Formiga, Projeto Genoma Melancia... E assim vai... E eu nestes dias tão particularmente confusos aqui no Hemisfério Norte fico a me perguntar... Será que a Celera não consideraria mudar de ramo só um pouquinho? Projeto Voto Humano. Com a garantia Celera. Mais eficiente, mais organizado, mais elaborado, mais informativo...
Com 30 mil genes se faz um ser humano!
Fevereiro de 2001
A corrida finalmente chegou ao fim. E com dois vencedores. Esta semana o mapa do genoma humano será publicado nas duas maiores revistas científicas do mundo. Os dados obtidos pelo consórcio público, que reúne o Governo Americano e diversas universidades e institutos, serão publicados na revista Nature, enquanto os dados produzidos pela empresa privada Celera irão sair na revista Science.
A maior revelação obtida com o final do sequenciamento do genoma humano está no fato de que somos formados por um número de genes muito menor do que aquele antes imaginado. Com apenas 30 mil genes, o genoma humano surpreende por ter apenas 10 mil genes a mais do que o genoma de um verme. Já as moscas têm 13 mil genes, quase a metade de nosso número.
As implicações de tal descoberta vão além da numerologia ou dos mistérios da cabala. Se nós, seres humanos, possuímos poucos genes a mais do que outros organismos bem menos complexos, então o que estabelece nossa complexidade provavelmente não está nos genes. Vários outros achados interessantes são revelados com o final do mapeamento humano. Os cientistas descobriram que uma parte significante de nossos genes é originada de bactérias. Nada mais que 113 genes responsáveis por 223 importantes funções metabólicas em nosso organismo são oriundos de bactérias que infectaram nosso genoma ao longo da evolução, gostaram do que viram e deixaram seus genes para sempre em nosso código genético. Funções como a respiração celular, por exemplo, dependem enormemente destes genes.
Outro fato interessante diz respeito à arquitetura de nosso genoma. O que desde o início já se desconfiava, agora parece muito mais claro. Nosso genoma tem mais lixo do que qualquer outra coisa. Apenas 1% do genoma é formado por genes; e por genes entendem-se sequências de DNA que contém o código para a produção de uma proteína. Se tomarmos as quatro bases nitrogenadas que compõem o DNA (A,T,C e G) como sendo as letras de uma alfabeto, os genes seriam aquelas sequências onde a junção destas letras formaria uma palavra, neste caso, uma proteína.
No entanto, a maioria de nosso genoma é formada por sequências sem sentido que não formam proteínas. A esse tipo de sequência os cientistas chamam de DNA lixo. No entanto, observou-se que uma destas sequências, chamada de sequência ALU, de lixo não parece ter nada. As sequências ALU constituem sequências repetidas, espalhadas por todo nosso DNA, ocupando no total 14% do nosso "espaço genômico".
Até então essas sequências não estavam associadas a qualquer tipo de função. Agora os cientistas descobriram que as sequências ALU são fundamentais na tarefa de acionar determinados genes quando o organismo encontra-se em uma situação de estresse. Muito cuidado com o que você joga no lixo.
A conclusão do mapeamento do genoma humano revelou também que os grandes responsáveis pelas mutações encontradas em nossa espécie são as células reprodutoras masculinas, os espermatozoides. E por mutações entendem-se erros genéticos. Ainda não está claro o que faz com que os espermatozoides carreguem tantos erros genéticos, mas os cientistas acreditam que este fenômeno esteja associado ao grande número de divisões celulares necessárias para a formação deste tipo de célula.
Cada divisão celular oferece um novo risco de que a nova célula não receba uma cópia idêntica à da molécula de DNA contida na célula original. Já os óvulos femininos são produzidos por intermédio de uma série muito menor de divisões celulares. Mas se os espermatozoides são os grandes portadores de mutações, vale também dizer que eles são os grandes responsáveis por nossa inovação biológica, uma vez que as mutações são os principais instrumentos usados pelo processo evolutivo. É por meio desse processo que novos genes são formados, duplicados, rearranjados ou até mesmo perdidos.
Por intermédio da comparação entre o genoma humano e o genoma de outros organismos menos complexos, como moscas e vermes, os cientistas são surpreendidos pela revelação de que apenas uns poucos genes de nosso genoma podem ser responsáveis por tamanha complexidade. E parte desta complexidade é fruto da habilidade de algumas destas sequências em produzir cópias de si mesmas, assim como rearranjar a ordem de suas sequências. Assim surgiu o nosso sistema imunológico, composto por uma variedade de genes similares, capazes de responder a um grande número de estímulos externos.
Os cientistas acreditam que estas descobertas irão revolucionar a medicina, contribuindo enormemente no desenvolvimento de novos medicamentos, tratamentos e atuando principalmente no diagnóstico e prevenção de diversas doenças genéticas.
No entanto, muitas questões permanecem abertas, e a busca por novas respostas será sempre o próximo projeto em pauta. Como tudo na ciência, quando se abre uma porta nos deparamos com outras portas que nos levam a outros tantos caminhos. Agora que finalmente compreendemos as bases daquilo que nos constituí, novas perguntas surgem, e a procura por novas respostas, sem dúvida, iniciará uma nova corrida. Apertem os seus cintos! Mesmo que funcionasse, a clonagem jamais a traria de volta!!
Clonagem
Onze dias atrás, quando eu esperava minha vez para testemunhar em uma audiência no Congresso sobre clonagem humana, um dos cinco cientistas da lista de testemunhas pegou o microfone. Brigitte Boisselier, uma química que trabalha com casais que desejam utilizar as técnicas de clonagem na criação de bebês, leu em alto tom uma carta de um "pai". O autor da carta, que inesperadamente se tornou pai aos quase quarenta anos de idade, descreve seu desespero por ter perdido seu filho de 11 meses após uma cirurgia e 17 dias de sofrimento e angústia.
Na sala o silêncio era total, enquanto Brigitte Boisselier repetia as palavras do autor da carta: "Eu decidi que jamais desistiria de meu filho e não irei parar enquanto não for capaz de proporcionar mais uma chance ao seu DNA".
Eu escutei a recusa do autor em aceitar a morte de seu filho e seu desejo em proporcioná-lo uma outra oportunidade por meio da clonagem, e fiquei abismado com o perigo e futilidade de tal pensamento. Eu fui requisitado como testemunha porque tenho escrito artigos e lecionado bioética para medicina e ciências por mais de 20 anos, mas devo dizer que também sou um pai sofrido que está de luto.
O assassinato, há 4 meses, de minha filha de 20 anos, tem reforçado, de modo agonizante, o que eu já sabia há anos enquanto bioeticista: a clonagem não é capaz de mudar a fatalidade da morte e de diminuir a dor e o sofrimento. Uma filha não pode ser duplicada.
O nascimento do primeiro clone de um mamífero (a ovelha Dolly) ocorreu há apenas quatro anos, e a possibilidade de clonagem humana já existe. Se antes a clonagem era motivo de ficção, hoje ela é objeto de pesquisa científica. A comissão presidencial da qual faço parte começou a deliberar sobre a ética na clonagem humana.
Os cientistas negaram qualquer interesse na clonagem humana e o Congresso acabou por realizar várias audiências sobre o assunto, mas não aprovou nenhuma lei. Houve então uma moratória sobre o assunto, exceção somente para declarações ocasionais de "futuros clones", tais como o médico Richard Seed e um grupo liderado por um homem chamado Rael que afirma que somos todos clones descendentes de alienígenas.
Recentemente Boisselier, cientista chefe de Rael, e Panos Zavos, um especialista em fertilidade de Ketuncky, atraíram a atenção, da noite para o dia, quando proclamaram que iriam de fato criar um clone humano no futuro próximo. A revelação de que cientistas renegados poderão tentar clonar seres humanos, reacendeu a preocupação dos legisladores.
Os defensores da clonagem têm tido dificuldades para encontrar argumentos éticos persuasivos. O argumento baseado em narcisismo, de modo que uma pessoa possa criar vários "minieus" não tem obtido muito apoio. Outros recorrem para o argumento de que um adulto deve ter o direito de utilizar todas as vias possíveis para ter a criança que desejam. No entanto, esse surto de liberdade não se aplica para outras questões, tais como o bem-estar da criança. Desse modo, a estratégia mais eficiente tem sido a de se mostrar complacente. E quem poderia ser mais complacente do que alguém que perdeu uma filha?
Infelizmente, eu me encontro na posição para corrigir estes mal-entendidos. Eu não estou sugerindo que minha situação é a mesma daquela do autor da carta. Nem melhor, nem pior. Simplesmente diferente. O filho do autor viveu com ele por menos de um ano e a nossa filha viveu perto de nós por 20 anos; o filho dele morreu de uma doença em um hospital, porém Emily, minha filha, com Cynthia, irmã de Kate, Matt, Nicky e Pete, desapareceu no campus da universidade no início de novembro. Seu corpo foi encontrado 5 semanas mais tarde. Ela foi violentada e assassinada com um tiro.
Conforme vou escrevendo estas linhas, ainda tento acreditar que trata-se de outra pessoa, uma história no noticiário das 11 da noite. Eu e Cynthia toda hora nos perguntamos se isso de fato é a nossa vida. E é. E Emily, sua adorável presença física e exuberância não fazem mais parte desta vida. A morte transforma as coisas e, como eu já suspeitava, a morte de um filho causa mais tristeza do que qualquer outra. Assim me falaram, assim minha experiência diz.
Eu quero então falar para o autor da carta, de pai para pai, de pai sofrido para pai sofrido, e também para todos que acreditam, sem fundamento, que a clonagem pode de algum modo ser capaz de reparar a arbitrariedade de uma doença, a infelicidade ou a morte. Eu não tenho nada a ganhar com isso, eu não quero seu dinheiro e eu com certeza também não quero ser cruel. Mas há duras verdades aqui que algumas pessoas, por ignorância ou interesse próprio, não estão revelando.
A primeira verdade é que a clonagem não produz indivíduos normais e sadios. Os dois especialistas em clonagem animal que compartilharam a audiência com Boisselier relataram os resultados obtidos até então com vacas, camundongos e outros mamíferos. Estes animais têm apresentado várias anormalidades e altas taxas de morte e muitas das fêmeas que carregavam fetos-clones morreram ou ficaram doentes. Rudolf Jaenisch, especialista em clonagem em camundongos do Massachuset's Institute of Technology (MIT), falou ao subcomitê que ele não acreditava que existisse nenhum clone saudável, nem mesmo Dolly, a ovelha pioneira, que é muito obesa.
Os cientistas não sabem dizer por que a clonagem falha tanto. Uma explicação plausível inicial está no fato de que, quando as células de um embrião se dividem, iniciando o processo que resulta na formação dos vários tecidos que constituem nosso corpo, a maioria dos genes é desligada, estando ativos apenas aqueles necessários para que a célula em questão possa realizar suas funções.
Uma célula das ilhotas pancreáticas, por exemplo, precisa de todos os genes que reconhecem quando uma pessoa necessita de insulina, ativos. Todos os outros genes dos indivíduos também podem ser encontrados nesta célula, no entanto, a maioria está quimicamente bloqueada, como um carro parado ilegalmente que teve seus pneus imobilizados.
Para produzir um clone sadio, os cientistas necessitam destravar todos os genes presentes na célula que será utilizada na clonagem. Não basta apenas ter os genes necessários às ilhotas do pâncreas; todos os genes serão necessários em algum momento, em alguma célula do novo organismo. A menos que os cientistas descubram como destravar todos os genes e restaurá-los a seu estado original, nós continuaremos a ver clones mortos ou deformados.
Você não precisa ser um bioeticista profissional para perceber que tentar criar uma criança por intermédio da clonagem com os recursos tecnológicos do momento seria uma violação grosseira dos padrões internacionais de proteção aos seres humanos e um exemplo de experimentação humana imoral. Alguns cientistas argumentam que podem evitar estes problemas. Zavos, que falou na audiência, prometeu que só selecionaria e implantaria os fetos saudáveis. Mas Zavos não forneceu sequer uma razão plausível que ele poderia distinguir os clones saudáveis dos não saudáveis.
Agora, a segunda verdade: mesmo que a clonagem pudesse produzir um embrião saudável, não resultaria na mesma pessoa da qual o material genético foi adquirido. Cada um de nós é fruto do complexo amálgama que envolve sorte, experiência e hereditariedade. O útero onde o feto se desenvolve, o que a mãe come ou bebe, o estresse pelo qual passa, sua idade, todos estes fatores moldam o feto em desenvolvimento. Mesmo os genes conduzem uma intrincada coreografia de liga e desliga e instruem outros genes a fazerem o mesmo em resposta aos estímulos internos, assim como aos do mundo no lado de fora. Como nos transformamos em quem somos permanece ainda um mistério.
A única coisa que podemos ter certeza é de que somos muito mais do que um punhado de genes. Assim como falei em meu testemunho, talvez a melhor maneira de desestimular a clonagem humana seria por meio da clonagem de Michael Jordan. Michael II pode vir a ter nenhum interesse em jogar basketball, tornando-se, por outro lado, um contador. O que faz Michael I genial não são apenas seus dotes físicos, mas sim sua competitividade, determinação e desejo de vencer.
Outra verdade: criar uma criança para tomar o lugar de outra criança morta é injusto. Nenhuma criança deve ser obrigada a aceitar a opressão de que a mesma irá viver a encarnação de um padrão genético idealizado à qual a vida lhe foi negada. Os pais podem fazer graça em relação aos planos e o futuro de suas crianças, no entanto eu acredito que as crianças não acham esses planos tão interessantes.
É claro que temos expectativas para nossos filhos, esperamos que eles sejam honestos, justos, corretos etc. Mas nós não podemos ditar o temperamento, talento ou interesses. Clonar uma criança para reencarnar outra, nada mais é do que uma distorção grotesca das expectativas paternas.
O que me traz à dura verdade final: não há como se evitar o sofrimento. Cynthia e eu temos fantasiado e feito o tempo voltar para trás de modo que possamos desfazer o assassinato de Emily. Nós daríamos nossos órgãos, ou mesmo nossas vidas para trazê-la de volta e proporcionar-lhe a oportunidade de realizar seu sonho de se tornar uma sacerdotisa episcopal e uma velha aposentada resmungona, sentada em sua varanda em Cap Cod, rodeada por seus netos e poodles.
Mas tentar recriar Emily a partir de seu DNA seria como buscar uma ilusão. Ondas massivas de tristeza nos põem para baixo, nos tiram o fôlego e as forças e, ainda, nós temos que aprender a viver assim. Quando retomarmos nossas forças, fazemos de tudo que podemos e o que precisa ser feito. Na maior parte das vezes nós tentamos segurar um ao outro.
Então eu me vejo querendo dizer ao autor da carta e aos cientistas que oferecem falsas esperanças ao referido autor e a tantas outras famílias: não há tecnologia capaz de consertar ou reverter o sofrimento. A clonagem de seu querido filho morto não irá tapar o buraco que esta falta lhe faz em sua vida. Sua carta me encheu de tristeza, por você e por sua esposa, não somente pela perda de seu filho, mas também pelo apelo inútil de tentar substituir sua dor por uma réplica do filho que você perdeu. Mesmo que você pudesse criar uma duplicata biológica saudável, seu apelo seria inútil.
Emily viveu até quase completar 21 anos. Durante estes anos nossas vidas se tornaram tão entrelaçadas que eu tento achar as palavras para descrever como Cynthia e eu nos sentimos agora. Nós fomos afortunados por tê-la conosco por tempo suficiente, de modo que pudemos vê-la se transformar num indivíduo próprio, pudemos amá-la com todo nosso coração e sem qualquer dúvida saber que ela também nos amou. A sua perda nos transformou para sempre. A vida segue em uma direção, a ciência não pode reverter a corrente ou reencarnar a morte. A Emily que nós conhecemos e amamos gostaria que nós continuássemos a fazer aquilo que é importante para nossas vidas: amarmos um ao outro, trabalhar sério e buscar o sentido das coisas. E não esquecê-la, jamais. Nós somos incapazes. Por que iríamos fazer tal coisa? Ela foi uma presença luminosa em nossa família, uma amiga extraordinária, uma promissora filósofa. E nós a honramos quando mantemos sua memória viva, e não quando pensamos em fabricar uma cópia genética. E este pensamento me direciona ao autor da carta mais uma vez: tenho de acreditar que seu filho, se pudesse lhe falar, desejaria que você fizesse o mesmo.
Nota do tradutor: Um dos fenômenos responsáveis por esta inativação dos genes chama-se metilação. Pelo processo de metilação, os diferentes genes de uma célula são inativados por intermédio da adição de radicais de metila à dupla fita de DNA. Uma vez presentes estes radicais metila impedem que as enzimas responsáveis pela transcrição do DNA tenham acesso à fita de DNA e, deste modo, estes genes específicos não são transcritos, não havendo consequentemente a produção do RNA correspondente assim como da proteína. Enzimas específicas chamadas de metilase são responsáveis pela adição dos radicais metila.
Este artigo foi escrito por Thomas Murray, publicado no The Washington Post em 8 de março de 2001. Tradução e versão para o Português e Espanhol por Marcia Lachtermacher-Triunfol e Maria Belém Rivero Paris
Material do Curso de Férias - Projeto Ciência Para Todos, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) - Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMEG). Coordenação: Profa-Mestre Silvia Regina Turcinelli.
Leia mais: http://www.odnavaiaescola.com
Publicado em 31 de dezembro de 2005
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