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O caminho das pedras
Lorenzo Aldé
Jornalista
Histórias e imagens inéditas do primeiro Parque Nacional brasileiro
Cachoeira Piturendaba
Qual é a cara do Brasil? Futebol, mulatas, samba, carnaval? Segundo pesquisa de José Murilo de Carvalho com cariocas, em 1990, essas imagens da nação não constituem o que temos de mais brasileiro, de mais importante. O Brasil se distingue do mundo, em primeiríssimo lugar, pela exuberância e força de sua natureza.
O curioso é constatar que, para a maioria da população brasileira, esse idílio ambiental repousa em uma espécie de nostalgia do paraíso perdido. Afinal, amontoamo-nos desordenadamente nas grandes metrópoles, sujeitamo-nos à subvida urbana sob o lema do "tempo é dinheiro", nos desabituamos a conviver com a natureza.
Onde está, então, a tal da identidade nacional, que proclamamos com orgulho? Será que simplesmente encorporamos o discurso globalizado, segundo o qual "a Amazônia é o pulmão do mundo", e assim, ao olhar o generoso verde da bandeira nacional, só conseguimos vislumbrar a gigantesca floresta equatorial, tão distante quanto mítica para a maioria dos urbanoides incorrigíveis como nós?
"O Brasil não conhece o Brasil" - o diagnóstico de Aldir Blanc vale também como autorretrato ambiental: exaltamos o verde e as águas como nossos maiores patrimônios, sem sequer saber seu nome e endereço.
O novo livro do jornalista Marcos Sá Corrêa mostra que "o caminho das pedras" é mais curto do que se imagina: no Parque Nacional de Itatiaia, com entrada logo ali, no quilômetro 317 da Via Dutra, é possível redescobrir o Brasil.
O autor de Itatiaia - O caminho das pedras (Coleção Olhar Brasil. São Paulo: Metalivros, 2003, 239 p.) dedica o livro justamente "a essa gente que ainda não sabe o que está perdendo". São mais de 200 fotografias e um texto primoroso, em que o veterano jornalista narra, com prazer, as descobertas resultantes de cinco anos de convívio com o Parque, amparado por um extenso levantamento bibliográfico.
Orquídea
Um parque, várias perspectivas
Em 1937, por um decreto de Getúlio Vargas, Itatiaia tornou-se o primeiro Parque Nacional brasileiro. A área sempre foi palco de disputas fundiárias e de sucessivos fracassos do Estado em controlar o uso e legislar sobre suas terras. "É o modelo de parque nacional compatível com um país que, como Itatiaia, nasceu loteado", comenta o autor, ao falar do risco de o Parque acabar sendo rebaixado no seu status ambiental, transformando-se em apenas uma Área de Proteção Ambiental (APA). São 190 propriedades privadas disputando espaço com o Parque.
A história da ocupação do Vale do Paraíba demonstra que o meio ambiente nunca teve vida fácil por ali, vítima da destruição causada pela expansão cafeeira, no século XIX, cuja monocultura e a prática de queimadas esgotaram em poucas décadas a fertilidade da terra e dizimaram grandes áreas de Mata Atlântica. "Léguas a fio se sucedem de morraria áspera, onde reinam soberanos a saúva e seus aliados, o sapé e a samambaia. Por ela passou o café, como um Átila", escreveu Monteiro Lobato na virada do século. Depois do café, vieram as boiadas leiteiras, cujas fazendas devoravam encostas reduzindo a área de floresta virgem e confinando seus limites a altitudes cada vez maiores.
Não fosse a ineficácia dos governos em lidar com o espaço público, o Itatiaia poderia ser hoje uma reserva de 48.000 hectares, exatamente o tamanho das seis enormes fazendas compradas pelo Estado em 1908, por uma bagatela, do comendador Henrique Irineu Evangelista de Souza, filho do Visconde de Mauá. Como se apressou em lotear as terras para imigrantes europeus, julgando erroneamente que nelas se poderiam cultivar uvas, maçãs e peras, não restavam mais do que 12.000 hectares sob sua jurisdição quando, 29 anos depois, decidiu-se pela criação do Parque.
A agradável surpresa do texto de Marcos Sá Corrêa é encontrar essas informações sem o ranço desesperançado típico dos ambientalistas ferrenhos. Como bom jornalista (e ainda por cima formado em História), Marcos sustenta uma narrativa envolvente, que prende o leitor e o diverte, encadeando fatos históricos às características ambientais, sociais e humanas do Parque. Ao lançar mão de uma grande quantidade de relatos e passagens de personagens notórios e anônimos, compõe um mosaico que aponta para uma diversidade humana tão abrangente quanto a ambiental. Dos entusiastas do "progresso", que no século XIX se maravilhavam com as técnicas das queimadas (os "piromaníacos") às saborosas trajetórias do casal Dioclésio e Miriam, exemplo prático de que é possível conviver respeitosamente com a floresta.
Amante confesso da natureza - ainda mais depois de dedicar a ela todos os fins de semana, feriados e férias durante cinco anos - Marcos presta um favor à literatura do gênero, pois a livra do pensamento maniqueísta segundo o qual o homem é a encarnação do mal, o inimigo do meio ambiente, e não parte ativa de sua dinâmica, tanto na destruição quanto na preservação e desfrute de suas maravilhas.
Até porque, mesmo cercado por todos esses problemas genuinamente brasileiros, o Parque conserva intacta uma impressionante porção de Mata Atlântica, merecendo carinhosa descrição a variedade de sua fauna, flora, pedras, trilhas, águas e relevo. Os naturalistas não conseguem esgotá-lo "em uma vida de pesquisas". E há, no momento, nada menos do que 60 estudos acadêmicos em andamento nas profundezas do Parque.
O livro também consegue realizar, sem desgrudar-se da atenção do leitor comum, uma retrospectiva científica, ao relatar as principais contribuições de entomologistas, zoólogos, botânicos, biólogos e outros especialistas que se debruçaram sobre essas matas e seus habitantes.
O autor faz uma revelação para aqueles que pretendem visitar Itatiaia: "o parque não tem nada de chato". Diz isso porque, no livro de visitas, a terceira reclamação mais frequente (depois da estrada esburacada e do estado dos banheiros) é "a falta de opções de lazer". Expectativas equivocadas, explica ele: "A maioria do público acha que parque só é parque de verdade quanto tem quadra de esportes e brinquedos de criança".
Eis o olhar necessário: "Do relevo escarpado do planalto às águas elétricas das encostas, tudo lá é tão movimentado que os detalhes resvalam pelas bordas de nossa atenção. Numa natureza complexa e introvertida como a brasileira, a paisagem às vezes parece monótona porque nela há coisas demais para ver. A mata, para os distraídos, é uma barafunda verde. Mas cada pedaço do mosaico, para os interessados, pode ser um novo mundo". E completa, dando a pista do caminho que ele mesmo seguiu: "O parque não tem só os 30 quilômetros quadrados dos limites oficiais. Tem 30 bilhões de centímetros quadrados. E pode ter 30 trilhões de milímetros quadrados. É parque que não acaba mais".
As fotos do livro não o deixam mentir.
Microcosmo brasileiro
A sequência de imagens de Itatiaia - O Caminho das pedras funciona como um zoom. Enquanto o texto de Marcos Sá Corrêa, nada propenso a didatismos, segue suas idas e vindas pelos diversos interesses ambientais e humanos que o Parque suscita, as fotos começam por dar ideia da estrutura ambiental da floresta, vista de fora, de cima, de dentro, seus rios, cachoeiras, neblina, céus, árvores e enormes pedras. Registros de uma natureza farta e límpida, com o foco que estamos acostumados a usar.
Grilo
A partir do capítulo "Pela lente da aproximação", em que narra como surgiu a ideia do livro e de que modo se apaixonou pela macrofotografia (aquela que registra o microcosmo), começam a aparecer os habitantes do Parque, timidamente. Primeiro as folhas e flores, depois um incrível sapinho laranja, depois um bicho-pau, depois um besouro, outros insetos, depois os passarinhos... e assim, ao final do texto, na página 100, o leitor já está totalmente ambientado àquele cenário, já conhece melhor o Parque e sente-se dentro dele, ouve o barulho das águas, os estalos da mata e os rumores de vida por todo canto. Já pediu licença aos verdadeiros proprietários daquele universo e agora está pronto para adotar o olhar proposto pelo autor, e surpreender-se com a delicadeza e precisão das próximas 132 páginas: o "Álbum", um magnífico ensaio fotográfico.
Aranha - Epicadus heterogaster
É impossível não imaginar que por trás da câmera, em cada um daqueles microflagrantes, estava sempre o mesmo homem, paralisado, paciente, atento. Uma verdadeira terapia zen, lecionada pelo ritmo da natureza em sua menor escala. É o próprio quem conta: "Aperta-se o disparador com a respiração suspensa, descendo a uma dimensão onde a mata inteira se condensa nos menores fragmentos. O tempo ali se mede em milésimos de segundo".
Com o cuidado de informar o nome científico de praticamente todos os seres retratados - do quati à taturana, do macaco-prego à libélula, da orquídea ao cogumelo, do mosquito ao opilião - e as lentes e técnicas utilizadas em cada foto, Marcos Sá Corrêa presta serviços a todas as áreas com que sua obra se comunica, fazendo um livro ao mesmo tempo artístico e científico, ambiental e histórico. Como bom jornalista.
Publicado em 31 de dezembro de 2005
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