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O Hiato entre Cidadania e Poder
Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Em diferentes partes do mundo, estão sendo criados fatos e situações novas para a democracia que todas e todos, amantes da liberdade e dignidade humanas, precisamos encarar com urgência e ousadia. Alguns já falam até em crise da própria democracia. Provavelmente, é isto mesmo, uma crise política em gestação. Sua solução não é visível. Ainda é tempo de agir, evitando turbulências maiores e a volta de soluções fascistas e autoritárias. Mais que isto, são também componentes da crise os sinais que apontam para a possibilidade de um salto qualitativo com a radicalização da democracia como valor e ideal, como opção e proposta. Estamos, na verdade, diante de novos desafios para a cidadania, que tantas mulheres e tantos homens, mundo afora, lutam para por no centro. Nunca é demais lembrar quão recente e frágil é a democracia. Além do mais, a maior ameaça à globalização reinante do tudo pelo mercado vem exatamente de cidadãs e cidadãos em movimento, que dizem não e resistem.
De diferentes formas, estamos sendo sacudidos com fatos desencontrados e aí está a questão a enfrentar. Cada vez mais gente parece se insurgir contra o rumo que tomam as coisas. No entanto, isto não se traduz em termos institucionais. Estamos diante de uma espécie de desencontro, de falta de sintonia, de um perigoso fosso em crescimento entre democracia direta e democracia representativa. Com o risco de simplificação, a coisa pode ser apresentada assim: é como se o que se exprime na rua - o locus por excelência da democracia direta - fosse incapaz de se traduzir nas instituições representativas. Ou, de outra forma, é como se os partidos e os representantes, mesmo eleitos, ignorassem e agissem independentemente das demandas cada vez mais radicais da cidadania nas ruas.
Aqui ao nosso lado, temos como protótipo o caso argentino. Os sinais de um hiato perigoso foram se acumulando. Depois de um longo governo Ménem, totalmente submisso à pregação neoliberal e servil da globalização econômico-financeira, a maioria votou por mudanças de rumo. De la Rua, o vitorioso, nada mudou. Pior, chamou o mago do desastre - o Caballo - para completar a tarefa. As eleições para governadores mostraram que nada o que se oferecia como possibilidade de representação atendia aos anseios de mudança da maioria, vencendo o voto de protesto. Este nada elege, sendo empossados os colocados em segundo lugar. Logo estourou plenamente a crise. O desencontro entre a voz da cidadania através de panelaços e os representantes políticos dos diferentes partidos é o ingrediente mais notável da crise. A sociedade civil se mobiliza de forma espetacular e, ao mesmo tempo, isto não se traduz em termos de partidos e poder.
Talvez o que aconteceu recentemente na França revele ainda mais claramente o problema. No primeiro turno das eleições presidenciais, com abstenções maiores do que o escore de qualquer um dos candidatos, aconteceu o que parecia impossível: em segundo lugar chegou o ultra direitista Le Pen. Nos dias seguinte, a França foi palco de enormes manifestações de rua, em protesto, da cidadania assustada. O curioso foi ver os que não votaram, especialmente jovens, protestarem pelos resultados. Mas a coisa não foi tão simples. Os 60% de franceses que são contra o que aí está e que finalmente se somaram aos 20% de Chirac para salvar a República no segundo turno, foram divididos, até pulverizados, no primeiro turno. Ou seja, os partidos clássicos de esquerda foram incapazes de entender as demandas da cidadania e traduzí-las em propostas. Desencontro perigoso, que põem em risco a própria democracia. O próprio Le Pen vem crescendo por ter sido capaz de responder, autoritariamente sem dúvida, aos que se sentem excluídos ou ameaçados de exclusão. Parece que o mesmo fenômeno de populismo autoritário de direita se repetiu nas últimas eleições holandesas, com notável avanço do impossível há alguns anos, a tal lista do Pim.
A Itália, que amarga a truculência de Berlusconi, é uma variante do mesmo problema. Foi aí que em 2001, em Gênova, durante a reunião do G-8, aconteceu a maior manifestação de protesto contra a globalização. No voto, aproveitando a incapacidade dos partidos democráticos e de esquerda de captar o anseio de mudança, além deles mesmos se apresentarem muito divididos, venceu o neofascimo. Agora, as manifestações contra as suas políticas se contam aos milhões, como nunca se viu na Itália. O que se passa afinal? Por que o desencontro, o hiato?
Os exemplos são muitos, apesar de diferentes em sua forma. O movimento que demanda outro mundo só faz crescer. Onde governantes, no geral legitimamente eleitos, se reúnem, as multidões que protestam e demandam outro rumo são cada vez maiores. Assim foi em Barcelona, durante reunião dos governantes da União Europeia. O Fórum Social Mundial é um exemplo notável. Mostrando dinamismo e esperança, o Fórum não esconde o desencontro entre cidadania e as instituições políticas. Mas há um estranhamento entre a cidadania militante e as instituições que se generaliza. Certo, as organizações multilaterais nunca foram democráticas. As Nações Unidas vêm perdendo visivelmente substância política. O unilateralismo truculento do imperial governo Bush é o exemplo mais extremado do mesmo problema. A legitimidade da eleição de Bush é altamente contestada, pelo grande absenteísmo e pela decisão final da Suprema Corte. Mas a coisa é grave na medida em que o fosso entre sociedade civil mobilizada e as instituições começa a ser cada vez mais visível a nível local e regional. Só para ficar na América Latina, vale a pena meditar sobre os processos da Venezuela, Colômbia, Peru, Guatemala, Haiti, entre outros.
Enfim, a hora é de rever estratégias. Os partidos em primeiro lugar. Não há democracia sem partidos fortes e disputa entre propostas. Mas os partidos se burocratizam e distanciam. Os representantes dão as costas aos eleitores. Existe algo mais agressivo à cidadania que os eleitos mudarem de partido como mudam de roupa, como só acontecer aqui no Brasil? Mas nós, cidadãs e cidadãos, precisamos reavaliar propostas e intervenções. Em defesa da autonomia e do papel constituinte da cidadania, não estamos rompendo pontes de articulações fundamentais? Afinal, a rua pode mudar governos, mas não os constitui. E democracias necessitam tanto de cidadãos ativos como de instituições, numa permanente e tensa relação construtiva. A hora exige tanto afirmação de independência e autonomia das sociedades civis frente aos governos e ao sistema empresarial mercantil, como a construção dos necessários vínculos transformadores.
Publicado em 31 de dezembro de 2005
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