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O lugar da escola na pedagogia do MST

Roseli Salete Caldart

Setor de Educação do MST

Como a escola entra na dinâmica de um movimento social de luta pela terra

Quase ao mesmo tempo em que começaram a lutar pela terra, os sem-terra do MST também começaram a lutar por escolas e, sobretudo, para cultivar em si mesmos o valor do estudo e do próprio direito de lutar pelo seu acesso a ele. No começo não havia muita relação de uma luta com a outra, mas aos poucos a luta pelo direito à escola passou a fazer parte da organização social de massas de luta pela Reforma Agrária, em que se transformou o Movimento dos Sem Terra.

A trajetória do que pode ser chamado de ocupação da escola pelo movimento social, tem os seguintes momentos: mobilização das famílias sem-terra pelo direito à escola (luta pela terra feita em família acelerou a consciência de lutar também por este direito); o MST, como organização social das famílias Sem Terra que o integram, decidiu tomar a si a tarefa de organizar e articular por dentro de sua organicidade esta mobilização, (que daí se ampliou e hoje inclui a luta pelo direito à escola pública, da educação infantil à Universidade) além de buscar produzir uma proposta pedagógica específica para as escolas conquistadas e se preocupar com a escolha e a formação de seus educadores; a escola passa aos poucos a ter lugar na dinâmica do Movimento, seja porque integra as preocupações cotidianas dos assentamentos e acampamentos, em alguns mais do que em outros, a partir de sua própria trajetória específica, seja também porque agora considerada pelas instâncias da organização como parte da estratégia de luta pela Reforma Agrária e, mais recentemente, luta por um novo modelo de desenvolvimento do país.

Qual o lugar da escola na Pedagogia do Movimento Sem Terra

Em dados estimados podemos dizer que o MST conquistou em 20 anos aproximadamente 1.500 escolas públicas nos seus acampamentos e assentamentos, colocando nelas em torno de 160 mil crianças e adolescentes Sem Terra, e ajudando a formar os seus mais de 4 mil educadores; também desencadeou um trabalho de alfabetização de jovens e adultos, envolvendo entre 2003 e 2004 mais de 30 mil educandos e 2.000 educadores; começou a desenvolver práticas de educação infantil em seus cursos, encontros, acampamentos e assentamentos, que formam pelo menos 500 educadores nesta nova frente; conseguiu criar algumas escolas de ensino médio nos assentamentos e fazer cursos superiores em parceria com diferentes universidades brasileiras.

No começo os sem-terra acreditavam que se organizar para lutar por escola era apenas mais uma de suas lutas por direitos sociais; direitos de que estavam sendo excluídos pela sua própria condição de trabalhador sem (a) terra. Logo foram percebendo que se tratava de algo mais complexo. Primeiro porque havia (como há até hoje) muitas outras famílias trabalhadoras do campo e da cidade que também não tinham acesso a este direito. Segundo, e igualmente grave, se deram conta de que somente teriam lugar na escola se buscassem transformá-la. Foram descobrindo, aos poucos, que as escolas tradicionais não têm lugar para sujeitos como os sem-terra, assim como não costumam ter lugar para outros sujeitos do campo, ou porque sua estrutura formal não permite o seu ingresso, ou porque sua pedagogia desrespeita ou desconhece sua realidade, seus saberes, sua forma de aprender e de ensinar.

Um exemplo simples pode deixar esta situação bem clara. No Rio Grande do Sul temos, aprovada desde novembro de 1996, a chamada Escola Itinerante dos Acampamentos, com um tipo de estrutura e proposta pedagógica criada especialmente para acolher as crianças e os adolescentes do povo Sem Terra em movimento. Temos agora, mas foi preciso uma luta  de 17 anos (isto mesmo!) para conseguir o que seria o mais 'normal', porque justo, e que até já se tornou um direito constitucional: é a escola que deve ajustar-se, em sua forma e conteúdo, aos sujeitos que dela necessitam; é a escola que deve ir ao encontro dos educandos, e não o contrário. - Hoje há Escolas Itinerantes também no Paraná e Santa Catarina e tramitam processos em Goiás e Alagoas.

Foi percebendo esta realidade que o MST começou a incluir em sua agenda a discussão de uma proposta diferente de escola; uma escola pela qual efetivamente vale à pena lutar, porque capaz de ajudar no processo maior de luta das famílias Sem Terra, e do conjunto dos trabalhadores e das trabalhadoras do campo.

No início a pergunta central parecia ser a seguinte: que escola, ou que modelo pedagógico combina com o jeito dos Sem Terra e pode ajudar o MST a atingir seus objetivos? O processo, as práticas e discussões vêm nos mostrando, no entanto, que esta não é a verdadeira questão. Fomos aos poucos descobrindo que não existe um modelo ou um tipo de escola que seja próprio para um grupo ou outro, ou que seja revolucionário em si mesmo. Trata-se é de alterar a postura dos educadores e o jeito de ser da escola como um todo; trata-se de cultivar uma disposição e uma sensibilidade pedagógica de entrar em movimento, abrir-se à pedagogia do movimento social e do movimento da história, porque é isto que permite a uma escola acolher sujeitos como os Sem Terra, crianças como as Sem Terrinha. E ao acolhê-los, eles aos poucos a vão transformando e ela a eles. Um mexe com o outro, num movimento pedagógico que mistura identidades, sonhos, pedagogias... E isto só pode fazer muito bem a todos, inclusive aos educadores e às educadoras que assumem esta postura. E também à escola, que ao se fechar e burocratizar em uma estrutura e em um jeito de ser costuma levar os educadores a esquecer, ou a ignorar, que seu trabalho é, afinal, com seres humanos, que merecem respeito, cuidado, todos eles.

Nesta trajetória de tentar construir uma escola diferente, o que era (e continua sendo) um direito, passou a ser também um dever. Se queremos novas relações de produção no campo, se queremos um país mais justo e com mais dignidade para todos, então também precisamos nos preocupar em transformar instituições históricas como a escola em lugares que ajudem a formar os sujeitos destas transformações. Foi assim que se começou a dizer no MST que se a Reforma Agrária é uma luta de todos, a luta pela educação de todos  também é uma luta do MST...

Hoje nas reflexões do MST a escola não é o centro do processo de formação humana ao mesmo tempo em que tem um lugar cada vez mais importante. Ou seja, quando dizemos Pedagogia do Movimento, estamos identificando o jeito e a intencionalidade pedagógica por meio da qual o MST educa as pessoas que dele fazem parte. E isto é bem maior do que uma escola. Mas descobrimos no caminho que a escola cabe e pode ter um lugar de destaque nesta pedagogia, desde que sintonizada com a intencionalidade pedagógica do próprio Movimento, e de seu projeto histórico.

Publicado em 16 de maio de 2005

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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