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O mundo visto de Baraka
Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Baraka é uma favela em Dakar, capital do Senegal. Mais um destes tantos pedacinhos do mundo globalizado que, juntos, abrigam a metade da humanidade que conta com menos de 2 dólares por dia. São os que vivem abaixo da linha da pobreza na visão quantitativa do Banco Mundial. Na verdade, em Baraka, as pouco mais de 200 famílias, numa média de 10 membros por família, vivem com bem menos, com renda diária que se conta em centavos de dólar. E vivem, teimosamente, mas com cabeça altiva.
Estive em Dakar para participar da reunião do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial. Oportuníssima reunião. Quando instalamos o Conselho Internacional, em junho passado, em São Paulo, formado por representantes de redes, campanhas e alianças de caráter internacional, estávamos buscando uma base ampla e diversificada de sustentação para o Fórum Social Mundial. A reunião do Conselho Internacional, em Dakar, mostrou o quanto estratégica e portadora de futuro é a iniciativa do Fórum Social Mundial. Lá estavam militantes das mais expressivas redes africanas, engajadas no Fórum Social Africano, que se realizará de 4 a 9 de janeiro de 2002, em Bamako, no Mali, em preparação ao Fórum Social Mundial que terá lugar em Porto Alegre, de 31 de janeiro a 5 de fevereiro. Neste momento, em que a lógica do terror e da guerra quer se impor, a reafirmação de que um outro mundo é possível, de que um mundo de paz é possível, em plena África, só pode gerar esperanças. Deu para recarregar baterias!
Já estava me preparando para voltar, satisfeito com a reunião. O velho amigo Jacques Bugnicourt, fundador e grande liderança da rede ENDA - Environment and Development Action - a anfitriã da reunião em Dakar - me propôs um passeio. Baraka está no caminho do aeroporto e é um dos muitos projetos de urbanização com participação popular que a ENDA apoia em Dakar. Lá fomos nós. No caminho, Jacques, com impressionante domínio de indicadores e sensibilidade aguçada por mais de 40 anos de militância nos "cartiers" pobres, introduziu-me rapidamente aos contrastes da vida local. Começamos aí mesmo, no seu velho carro, bem alinhados com o espírito do Fórum Social Mundial, no esforço intelectual e político de traçar os estreitos caminhos que nos restam para construir as bases de um mundo de liberdade e dignidade humanas. Sonhadores? Nem tanto!
Dakar concentra aproximadamente 3 milhões de habitantes, mais ou menos um terço da população do Senegal. Continua crescendo entre 7% e 8% ao ano, puxada pelos migrantes que afluem do interior decadente - o arroz, produto de base da agricultura e da alimentação, não consegue concorrer com o importado - e pelo impressionante crescimento natural da população de 4% ano. Cidade de poucos empregos formais, mas de muito trabalho. Em Dakar, a par de uma atividade pesqueira bastante dinâmica e de um pequeno setor têxtil, só cresce a especulação imobiliária, ligada aos empreendimentos turísticos, e a economia informal. Esta é a base real de trabalho, renda e vida da maioria, mas a seu modo excluída e ignorada, pois tem pouca ou nenhuma serventia nos esquemas de ajuste estrutural e na visão econômica dos gestores da globalização, na sua versão senegalesa. O maior recurso do Senegal é gente. Como no tempo da escravidão - a Ilha de Goré, donde partiam os escravos para a América, fica bem em frente a Dakar, a poucos minutos de barco - Senegal exporta gente. Gente que acaba migrando para a Europa e, crescentemente, para os EUA, como estratégia de inclusão num mundo que continua a negar-lhes cidadania.
Baraka nisto tudo é ainda um fio de esperança. Seu nome diz muito: "Benção do Deus". Lá chegamos sem o amigo Jacques me dizer do que se tratava. Mostrou-me antes as belas casas dos "emergentes" de Dakar, algo bem conhecido nosso. O "progresso" avança com base na usurpação de terras públicas, privatizadas a pau e fogo, falsificando documentos e com a ajuda da polícia e dos buldozers do governo municipal, se necessário, quando a resistência popular for muita. Baraka resiste! À primeira vista, é uma miserável favela cercada por um luxuoso bairro de classe média e alta. Confesso que ao lá chegar tive medo. Eram 9 horas da noite. Muito poucas luzes nas casas. Nenhuma nos becos. A escuridão local estava atenuada por ser noite de lua cheia.
Saímos andando. Um a um, mulheres, meninas, velhos, jovens e crianças, fomos cumprimentando na passagem. Todos faziam questão de dar a mão e manifestar a satisfação por ver Jacques. Chama a atenção o fato de famílias inteiras estarem estiradas num tapete no chão em frente do barraco ou casa. Dado o intenso calor de mais de 30 graus, dormem aí mesmo. Aos poucos, caminhando, fui entendendo e vendo o outro mundo que Jacques estava a me mostrar. O encantamento com aquela gente, como uma benção iluminada pela luz do luar, foi tomando conta de mim. É uma comunidade dominantemente muçulmana, extremamente aberta e acreditando em sua capacidade de criar a vida na adversidade, com tolerância. Isto, nestes dias de fanatismos e fundamentalismos, por si só, já diz muito.
Visitei a escola comunitária, onde mais de duzentos, entre crianças e jovens, assistiam à televisão, provavelmente no único aparelho da comunidade. Depois, visitei uma creche em construção. Por enquanto, durante o dia, as crianças se acomodam debaixo de árvores. Estive no centro de informática, na com.baraka. Aí, com quatro velhos computadores - normalmente só um funciona - já se fez o milagre de iniciar quase todas as crianças e adolescentes na informática e na sociedade de informação, mandando e recebendo correios eletrônicos. Além do mais, toda a comunidade tem acesso a dois telefones, um para chamar e outro para receber chamadas. O centro ainda funciona como o apoio logístico na gestão da economia cooperativa local, que vai da conta de água (duas torneiras coletivas) e de eletricidade até a própria construção de casas. Em dois anos de existência do projeto, metade dos barracos deu lugar a verdadeiras casas construídas em mutirão.
No fundo, Baraka não passa de uma pequena coletividade excluída que diz não à própria exclusão, contra tudo e contra todos. Mas com grandiosidade de coração e muita humanidade. Ninguém me pediu esmola, mas quiseram saber o meu correio eletrônico para me enviar mensagens. Ninguém reclamou da vida, mas muitos me perguntaram sobre a situação do desemprego no Brasil e como isto afeta as pessoas. A solidariedade os torna universais, tudo em vivendo ignorados na Dakar profunda, ao largo da globalização. É resgatando a energia e a criatividade de gente assim que um outro mundo pode ao menos ser pensado. Voltei mais convencido do que nunca de que a aventura do Fórum Social Mundial tem raízes na vida de gente, real, concreta. Só isso já faz uma grande diferença.
Veja mais sobre o Fórum Social Mundial em: http://www.forumsocialmundial.org.br
Publicado em 31 de dezembro de 2005
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