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O que diria o Betinho do momento?

Cândido Grzybowski

Sociólogo, diretor do Ibase

No dia 9 de agosto de 1997 morria Herbert de Souza, o nosso Betinho. Lá se vão seis anos sem a presença física de uma figura pública ímpar na defesa de causas da cidadania e na promoção dos direitos humanos e da democracia no Brasil. Betinho buscou mas não conseguiu viver até a festa cívica da eleição e posse de Lula presidente do Brasil. Uma pena.

Lembrando os finais de dia, no Ibase, com longos mas estimulantes debates de conjuntura entre amigos-cúmplices, na intuição de longo alcance, na simplicidade com que apresentava as suas ousadas ideias sobre as questões mais quentes, fico matutando o que diria o Betinho do momento brasileiro. Aliás, momento que merece ser dissecado pelo que revela de mais profundo do que somos e para onde vamos como povo ainda em busca do encontro consigo mesmo. Assentada a poeira das celebrações, o Governo Lula em ação reanima o velho debate sobre as possibilidades de nossos limites como projeto de país de uma maneira bem acirrada, para ninguém ficar de fora. Precisamos encarar o desafio de pensar longe, sem medo de escancarar tanto nossas mazelas como o curto caminho que nos separa do acerto de rumo.

Penso que Betinho concordaria comigo em definir o momento como uma espécie de destampe das contradições. Está ficando claro que o Governo Lula não tem as soluções prontas, as grandes propostas que resgatam a chamada dívida social de uma vez por todas, o milagre da definição de um modelo de desenvolvimento autônomo e sustentado do Brasil. Mas está claro, também, que Lula aposta no "pacto de incertezas" que significa a prática da democracia na busca de soluções, na construção de propostas, na definição da estratégia de desenvolvimento desejável e possível do Brasil. Até aqui, esta talvez seja a sua maior novidade: um novo modo de definir as políticas, mais do que elas mesmas. Isto provoca uma revelação e até um "desnudamento" público, por assim dizer, das identidades e interesses dos diferentes sujeitos sociais e seus representantes, um reposicionamento estratégico e tático em termos políticos, com ações, reações e entrincheiramentos surpreendentes, com uma intensificação do debate público e radicalização de propostas.

São as nossas contradições mais profundas que começam a emergir à luz do dia. Simplificando, entre as ameaças dos especuladores a nível do mercado, com seus tentáculos globalizados, e as pressões dos movimentos sociais, teremos muitos momentos de suspense e angústia, até que se dê um passo no rumo de enfrentamento da exclusão e das desigualdades sociais que o Brasil precisa dar. Há que se reconhecer que não é a consciência das contradições que acaba por destruir as sociedades, mas a incapacidade política de extrair delas a força de superação, através de concertações e pactos entre os diferentes sujeitos em luta. E democracia é exatamente este modo de politicamente construir a partir das contradições e tensões, superando-as. Democracia vista como opção estratégica e não como utilidade política de ocasião. Posto isto, penso que o modo de ser do Governo Lula vai ser isto mesmo: um radical compromisso com a democracia, que significa um viver sob tensão entre a concertação e a ruptura como condição de construção de propostas e de um novo rumo para o Brasil, onde povo e nação se encontrem, com desenvolvimento humano sustentável.

Aqui é bom que se ponha o dedo na ferida certa, bem ao gosto de Betinho. Afinal, sejamos razoáveis, quem provoca a tensão? Os sem-terra e os sem-teto? Por que somos tão incapazes de ver nos agentes de mercado e na ditadura que impõem à economia, ao governo e à sociedade como um todo a causa das tensões? Para quem a tão explícita ameaça permanente dos tais mercados é sinônimo de estabilidade? Por acaso, não é a total falta de regulação do chamado mercado financeiro - matriz do modelo que o Governo Lula herdou e de que não vai se livrar tão facilmente, pelo visto - que não só impede mas até acentua a exclusão social, com falta de geração de empregos, com maior concentração de renda, etc., etc.? Ou ainda, olhando pela outra ponta, a tensão são os sem-terra que provocam ou as milícias de jagunços dos latifundiários e a falta de recursos públicos - dado o atrelamento da política à produção de superávit fiscal - para a efetivação da tão almejada Reforma Agrária?

As falsas ou meias verdades, tão naturalmente apregoadas nos jornais e até subscritas por grandes formadores de opinião, precisam ser desmascaradas neste momento. Vemos todos os dias que o mercado com sua lógica exclui e até mata. Parece um gatilho apontado contra as nossas cabeças. Pior, nos tira a capacidade de pensar diferente. Afinal, o afloramento das tensões sociais é causa da instabilidade ou apenas revelador do quanto submeter-se aos mercados nos gera uma situação de grandes conflitos e inseguranças? Debater nossas contradições, aceitar o desafio do Governo Lula de se expor, de confrontar-se com os outros e as outras, de fazer valer nossa cidadania na diversidade do como somos, é uma condição indispensável para que ganhe a democracia e, ao mesmo tempo, reencontremos o rumo possível do Brasil de liberdade e dignidade humana que sonhamos para todas e todos os brasileiros. Tenho certeza que Betinho concordaria com esta minha análise.

Rio, 05.08.03

Leia também: A falta que ele nos faz

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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