Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

O Rio de João

Mané Garrincha, lendário craque do Botafogo e bicampeão mundial com a Seleção Brasileira (1958 e 1962), chamava todos seus adversários de "João". Fosse numa pelada descalça em campo de terra batida, fosse em uma final de Copa do Mundo, o que o Mané queria era fazer os "Joões" de bobos.

O Rio de Janeiro fez 437 anos em 1° de março de 2002. A cidade do Carnaval, das praias e florestas, dos morros, do samba, capital do Império e da República, berço de tradições culturais e laboratório de ideias de vanguarda, construiu sua identidade na vida alegre das ruas, graças a João, Sebastião, Marias e Manés.

Em 1908, iluminada pelas primeiras luzes da modernidade, o Rio de Janeiro já se revelava, aos olhos mais sensíveis, como uma cidade multifacetada, fascinante, efervescente na democracia da ruas. Nesse ano, um cronista lança o livro "A alma encantadora das ruas", em que observa, deslumbrado, as novas relações sociais que se desenham no coração daquela seria mais tarde chamada a Cidade Maravilhosa. Seu nome: João do Rio. (1881-1921 - foi cronista, teatrólogo e contista) .

A essência da identidade carioca já está presente nas linhas críticas e bem-humoradas deste João: a capacidade de criar soluções de sobrevivência, a paixão pela música, a riqueza do imaginário social, a espontaneidade da mistura cultural que constitui hoje a maior riqueza não apenas do Rio, mas de todo o Brasil.

Descubra onde os Rios (de hoje e de ontem) se encontram, lendo um trecho de A alma encantadora das ruas, de João do Rio.

O que se vê nas ruas

Pequenas Profissões

O cigano aproximou-se do catraieiro. No céu, muito azul, o sol derramava toda a sua luz dourada. Do cais via-se para os lados do mar, cortado de lanchas, de velas brancas, o desenho multiforme das ilhas verdejantes, dos navios, das fortalezas. Pelos boulevards sucessivos que vão dar ao cais, a vida tumultuária da cidade vibrava num rumor de apoteose, e era ainda mais intensa, mais brutal, mais gritada, naquele trecho do Mercado, naquele pedaço da rampa, viscoso de imundícies e de vícios. O cigano, de frack e chapéu mole, já falara a dois carroceiros moços e fortes, já se animara a entrar numa taberna de freguesia retumbante. Agora, pelos seus gestos duros, pelo brilho do olhar, bem se percebia que o catraieiro seria a vítima, a vítima definitiva, que ele talvez procurasse desde manhã, como um milhafre (ave de rapina) esfomeado.

Eduardo e eu caminhamos para a rampa, na aragem fina da tarde que se embebia de todos aqueles cheiros de maresia, de gordura, de aves presas, de verduras. O catraieiro batia negativamente com a cabeça.

- Uma calça, apenas uma, em muito bom estado.
- Mas eu não quero.
- Ninguém lhe vende mais barato, palavra de honra. E a fazenda? Veja a fazenda.

Desenrolou com cuidado um embrulho de jornal. De dentro surgiu um pedaço de calça cor de castanha.

- Para o serviço! Dois mil réis, só dois!...Eu tenho família, mãe, esposa, quatro filhos menores. Ainda não comi hoje! Olhe, tenho aqui uns anéis...não gosta de anéis?

O catraieiro ficara, sem saber como, com o embrulho das calças, e o seu gesto fraco de negativa bem anunciava que iria ficar também com um dos anéis. O cigano desabotoara o frack, cheio de súbito receio.

- É um anel de ouro que eu achei, ouro legítimo. Vendo barato: oito mil réis apenas. Tudo dez mil réis, conta redonda!

O catraieiro sorria, o cigano era presa de uma agitação estranha, agarrando a vítima pelo braço, pela camisa, dando pulos, para lhe cochichar ao ouvido palavras de maior tentação; ninguém naquele perpétuo tumulto, ninguém no rumor do estômago da cidade, olhava sequer para o negócio desesperado de cigano. Eduardo, que nessa tarde passeava comigo, arrastou-me pelo ex-Largo do Paço, costeando o cais até a velha estação das barcas.

- Admiraste aquele negociante ambulante?
- Admirei um refinado "vigarista"...
- Oh! meu amigo, a moral é uma questão de ponto de vista. Aquele cigano faz parte de um exército de infelizes, a que as condições da vida ou do próprio temperamento, a fatalidade, enfim, arrasta muita gente. Lembras-te de La romera de Santiago, de Velez de Guevara? Há lá uns versos que bem exprimem o que são essas criaturas:

Estos son algunos hombres
De obligaciones, que pasan
Necesidad, y procuran
De esta suerte remediarla
Saliendose a los caminos...

É quanto basta como moral. Não sejamos excessivos para os humildes.

O Rio tem também as suas pequenas profissões exóticas, produto da miséria ligada às fábricas importantes, aos adelos, ao baixo comércio; o Rio, como todas as grandes cidades, esmiúça no próprio monturo a vida dos desgraçados. Aquelas calças do cigano, deram-lhas ou apanhou-as ele no monturo, mas como o cigano não faz outra coisa na sua vida senão vender calçar velhas e anéis de plaquet , aí tens tu uma profissão da miséria, ou se quiseres, da malandrice - que é sempre a pior das misérias. Muito pobre diabo por aí pelas praças parece sem ofício, sem ocupação. Entretanto, coitados! o ofício, as ocupações, não lhes faltam, e honestos, trabalhosos, inglórios, exigindo o faro dos cães e a argúcia dos reporters.

Todos esses pobres seres vivos tristes vivem do cisco, do que cai nas sarjetas, dos ratos, dos magros gatos dos telhados, são os heróis da utilidade, os que apanham o inútil para viver, os inconscientes aplicadores à vida das cidades daquele axioma de Lavoisier: nada se perde na natureza. A polícia não os prende, e, na boêmia das ruas, os desgraçados são ainda explorados pelos adelos , pelos ferros-velhos, pelos proprietários das fábricas...

- As pequenas profissões!... É curioso!

As profissões ignoradas. Decerto não conheces os trapeiros sabidos, os apanha-rótulos, os selistas, os caçadores, as ledoras de buena dicha. Se não fossem o nosso horror, a Diretoria de Higiene e as blagues das revistas de ano, nem os ratoeiros seriam conhecidos.

- Mas, senhor Deus! é uma infinidade, uma infinidade de profissões sem academia! Até parece que não estamos no Rio de Janeiro...
- Coitados! Andam todos na dolorosa academia da miséria, e, vê tu, até nisso há vocações! Os trapeiros, por exemplo, dividem-se em duas especialidades - a dos trapos limpos e a de todos os trapos. Ainda há os cursos suplementares dos apanhadores de papéis, de cavacos e de chumbo. Alguns envergonham-se de contar a existência esforçada. Outros abundam em pormenores e são um mundo de velhos desiludidos, de mulheres gastas, de garotos e de crianças, filhos de família, que saem, por ordem dos pais, com um saco às costas, para cavar a vida nas horas da limpeza das ruas.

De todas essas pequenas profissões a mais rara e a mais parisiense é a dos caçadores, que formam o sindicato das goteiras e dos jardins. São os apanhadores de gatos para matar e levar aos restaurants, já sem pele, onde passam por coelho. Cada gato vale dez tostões no máximo. Uma só das costelas que os fregueses rendosos trincam, à noite, nas salas iluminadas dos hotéis, vale muito mais. As outras profissões são comuns. Os trapeiros existem desde que nós possuímos fábricas de papel e fábricas de móveis. Os primeiros apanham trapos, todos os trapos encontrados na rua, remexem o lixo, arrancam da poeira e do esterco os pedaços de pano, que serão em pouco alvo papel; os outros têm o serviço mais especial de procurar panos limpos, trapos em perfeito estado, para vender aos lustradores das fábricas de móveis. As grandes casas desse gênero compram em porção a traparia limpa. A uns não prejudica a intempérie, aos segundos a chuva causa prejuízos enormes. Imagina essa pobre gente, quando chove, quando não há sol, com o céu aberto em cataratas e, em cada rua, uma inundação!

- Falaste, entretanto, dos sabidos?
- Ah! os sabidos dedicam-se a pesquisar nos montes de cisco as botas e os sapatos velhos, e batem-se por duas botas iguais com fúria, porque em geral só se encontra uma desirmanada. Esses infelizes têm preço fixo para o trabalho, uma tarifa geral combinada entre os compradores, os italianos remendões. Um par de botas, por exemplo, custa 400 réis, um par de sapatos 200 réis. As classes pobres preferem as botas aos sapatos. Uma bota só, porém, não se vende por mais de 100 réis.
- Mas é bem pago!
- Bem pago? Os italianos vendem as botas, depois de consertadas, por seis e sete mil réis! E o mesmo que acontece aos molambeiros ambulantes como o cigano que acabamos de ver - os belchiores compram as roupas para vendê-las com quatrocentos por cento de lucro. Há ainda os selistas e os ratoeiros. Os selistas não são os mais esquadrinhadores, os agentes sem lucro do desfalque para o cofre público e da falsificação para o burguês incauto. Passam o dia perto das charutarias pesquisando as sarjetas e as calçadas à cata de selos de maços de cigarros e selos com anéis e os rótulos de charutos. Um cento de selos em perfeito estado vende-se por 200 réis. Os das carteiras de cigarros têm mais um tostão. Os anéis dos charutos servem para vender uma marca por outra nas charutarias e são pagos cem por 200 réis. Imagina uns cem selistas à cata de selos intactos das carteirinhas e dos charutos; avalia em 5% os selos perfeitos de todos os maços de cigarros e de todos os charutos comprados neste país de fumantes; e calcula, após este pequeno trabalho de estatística, em quanto é defraudada a fazenda nacional diariamente só por uma das pequenas profissões ignoradas.
- Gente pobre a morrer de fome, coitados...
- Oh! não. O pessoal que se dedica ao ofício não se compõe apenas do doloroso bando de pés descalços, da agonia risonha dos pequenos mendigos. Trabalham também na profissão os malandros de gravata e roupa alheia, cuja vida passa em parte nos botequins e à porta das charutarias.
- E é rendoso?
- Rendoso, propriamente, não; mas os selistas contam com o natural sentimento de todos os seres que, em vez de romper, preferem retirar o selo do charuto e rasgar a parte selada das carteirinhas sem estragar o selo.
- Mas os anéis dos charutos?
- Oh! isso então é de primeiríssima. Os selistas têm lugar certo para vender os rótulos dos charutos Bismarck - em Niterói, na Travessa do Senado. Há casas que passam caixas e caixas de charutos que nunca foram dessa marca. A mais nova, porém, dessas profissões, que saltam dos ralos, dos buracos, do cisco da grande cidade, é a dos ratoeiros, o agente de ratos, o entreposto entre as ratoeiras das estalagens e a Diretoria de Saúde. Ratoeiro não é um cavador - é um negociante. Passeia pela Gamboa, pelas estalagens da Cidade Nova, pelos cortiços e bibocas da parte velha da urbs, vai até ao subúrbio, tocando um cornetinha com a lata na mão. Quando está muito cansado, senta-se na calçada e espera tranquilamente a freguesia, soprando de espaço a espaço no cornetim.

Não espera muito. Das rótulas há quem os chame; à porta das estalagens afluem mulheres e crianças.

- Ó ratoeiro, aqui tem dez ratos!
- Quanto quer?
- Meia pataca.
- Até logo!
- Mas, ô diabo, olhe que você recebe mais do que isso por um só lá na Higiene.
- E o meu trabalho?
- Uma figa! Eu cá não vou na história de micróbio no pêlo do rato.
- Nem eu. Dou dez tostões por tudo. Serve?
- Heim?
- Serve?
- Rua!
- Mais fica!

E quando o ratoeiro volta, traz o seu dia fartamente ganho...

Tínhamos parado à esquina da Rua Fresca. A vida redobrava aí de intensidade, não de trabalho, mas de deboche.

Nos botequins, fonógrafos roufenhos esganiçavam canções picarescas; numa taberna escura com turcos e fuzileiros navais, dois violões e um cavaquinho repinicavam. Pelas calçadas, paradas às esquinas, à beira do quiosque, meretrizes de galho de arruda atrás da orelha e chinelinho na ponta do pé, carregadores espapaçados , rapazes de camisa de meia e calça branca bombacha com o corpo flexível dos birbantes , marinheiros, bombeiros, túnicas vermelhas e fuzileiros - uma confusão, uma mistura de cores, de tipos, de vozes, onde a luxúria crescia.

De repente o meu amigo estacou. Alguns metros adiante, na Rua Fresca, um rapaz doceiro arriara a caixa, e sentado num portal, entregava o braço aos exercícios de um petiz da altura de um metro. Junto ao grupo, o cigano, com outro embrulho, falava.

- Vês? Aquele pequeno é marcador, faz tatuagens, ganha a sua vida com três agulhas e um pouco de graxa, metendo coroas, nomes e corações nos braços dos vendedores ociosos. O cigano molambeiro aproveita o estado de semidor e semi-inércia do rapaz para lhe impingir qualquer um dos seus trapos...um psicólogo, como todos os da sua raça, psicólogo como as suas irmãs que leem a buena dicha por um tostão e amam por dez com consentimento deles.

Oh! essas pequenas profissões ignoradas, que são partes integrantes do mecanismo das grandes cidades!

O Rio pode conhecer muito bem a vida do burguês de Londres, as peças de Paris, a geografia da Manchúria e o patriotismo japonês. A apostar, porém, que não conhece nem a sua própria planta, nem a vida de toda essa sociedade, de todos esses meios estranhos e exóticos, de todas as profissões que constituem o progresso, a dor, a miséria da vasta Babel que se transforma. E entretanto, meu caro, quanto soluço, quanta ambição, quanto horror e também quanta compensação na vida humilde que estamos a ver.

Estos son algunos hombres
De obligaciones, que pasan
Necesidad, y procuran
De esta suerte remediarla
Saliendose a los caminos...

Mas o meu amigo não continuou o fio luminoso de sua filosofia. O catraieiro apareceu rubro de cólera, e sutilmente cosia-se com as paredes, ao aproximar-se do cigano.

De repente deu um pulo e caiu-lhe em cima de chofre.

- Apanhei-te, gatuno!

O cigano voltara-se lívido. Ao grito do catraieiro acudiam, numa sarabanda de chinelas, fúfias, rufiões, soldados, ociosos, vendedores ambulantes.

- Gatuno! Então vendes como ouro um anel de plaquet? Espera que te vou quebrar os queixos. Sacudiu-o, atirou-o no ar para apanhá-lo com uma bofetada. O cigano porém caiu num bolo, distendeu-se e partiu como um raio por entre a aglomeração da gentalha, que ria. O catraieiro, mais corpulento, mais pesado, precipitou-se também.

Os vagabundos, com o selvagem instinto da caça, que persiste no homem - acompanharam-no. E pelos boulevards, onde se acendiam os primeiros revérberos, à disparada entre os squares sucessivos, a ralé dos botequins, aos gritos, deitou na perseguição do pobre cigano molambeiro, da pobre profissão ignorada, que, como todas as profissões, tem também malandros.

Então Eduardo sentenciou.

- Tu não conhecias as pequenas profissões do Rio. A vida de um pobre sujeito deu-te todos esses úteis conhecimentos. Mas, se esse pobre sujeito não fosse um malandro, não conhecerias da profissão até mesmo os birbantes.

A moral é uma questão de ponto de vista. Para julgar os homens basta a gente defini-los segundo os seus sucessivos estados. Se te aprouver definir os profissionais humildes pela tua última impressão, emprega os mesmos versos de Guevara com uma pequena modificação:

Estos son algunos hombres
De obligaciones, que pasan
Necesidad, y procuran
De esta suerte remediarla
Corriendo por los caminos...

Os Tatuadores

- Quer marcar?

Era um petiz de doze anos talvez. A roupa em frangalhos, os pés nus, as mãos pouco limpas e um certo ar de dignidade na pergunta. O interlocutor, um rapazola louro, com uma dourada carne de adolescente, sentado a uma porta, indagou:

- Por quanto?
- É conforme, continuou o petiz. É inicial ou coroa?
- É um coração!
- Com nome dentro?

O rapaz hesitou. Depois:

- Sim, com nome: Maria Josefina.
- Fica tudo por uns seis mil réis.

Houve um momento em que se discutiu o preço, e o petiz estava inflexível, quando vindo do quiosque da esquina um outro se acercou.

- Ó moço, faço eu; não escute embromações!
- Pagará o que quiser, moço.

O rapazola sorria. Afinal resignou-se, arregaçou a manga da camisa de meia, pondo em relevo a musculatura do braço. O petiz tirou do bolso três agulhas amarradas, um pé de cálix com fuligem e começou o trabalho. Era na Rua Clapp, perto do cais, no século XX... A tatuagem! Será então verdade a frase de Gautier: "o mais bruto homem sente que o ornamento traça uma linha indelével de separação entre ele e o animal, e quando não pode enfeitar as próprias roupas recama a pele"?

A palavra tatuagem é relativamente recente. Toda a gente sabe que foi o navegador Loocks que a introduziu no ocidente, e esse escrevia tattou, termo da Polinésia de tatou ou to tahou, desenho. Muitos dizem mesmo que a palavra surgiu no ruído perceptível da agulha da pele: tac, tac. Mas como é ela antiga! O primeiro homem, decerto, ao perder o pêlo, descobriu a tatuagem.

Desde os mais remotos tempos vêmo-la a transformar-se: distintivo honorífico entre uns homens, ferrete de ignomínia entre outros, meio de assustar o adversário para os bretões, marca de uma classe para selvagens das ilhas Marquesas, vestimenta moralizadora para os íncolas da Oceânia, sinal de amor, de desprezo, de ódio, bárbara tortura do Oriente, baixa usança do Ocidente. Na Nova Zelândia é um enfeite; a Inglaterra universaliza o adorno dos selvagens que colhem o phormium tenax para lhe aumentar a renda, e Eduardo com a âncora e o dragão no braço esquerdo é só por si um problema de psicologia e de atavismo.

Da tatuagem no Rio faz-se o mais variado estudo da crendice. Por ele se reconstrói a vida amorosa e social de toda a classe humilde, a classe dos ganhadores, dos viciados, das fúfias de porta aberta, cuja alegria e cujas dores se desdobram no estreito espaço das alfurjas e das chombergas , cujas tragédias de amor morrem nos cochicholos sem ar, numa praga que se faz de lágrimas. A tatuagem é a inviolabilidade do corpo e a história das paixões. Esses riscos nas peles dos homens e das mulheres dizem as suas aspirações, as suas horas de ócio e a fantasia da sua arte e a crença na eternidade dos sentimentos - são a exteriorização da alma de quem os traz.

Há três casos de tatuagem no Rio, completamente diversos na sua significação moral: os negros, os turcos com o fundo religioso e o bando das meretrizes, dos rufiões e dos humildes, que se marcam por crime ou por ociosidade. Os negros guardam a forma fetiche; além dos golpes sarados com o pó preservativo do mau olhado, usam figuras complicadas. Alguns, como o Romão da Rua do Hospício, têm tatuagens feitas há cerca de vinte anos, que se conservam nítidas, apesar da sua cor - com que se confunde a tinta empregada.

Quase todos os negros têm um crucificado. O feiticeiro Ononenê, morador à Rua do Alcântara, tem do lado esquerdo do peito as armas de Xangô, e Felismina de Oxum a figura complicada da santa d'água doce. Esses negros explicam ingenuamente a razão das tatuagens. Na coroa imperial hesitam, coçam a carapinha e murmuram, num arranco de toda a raça, num arranco mil vezes secular de servilismo inconsciente:

- Eh! Eh! Pedro II não era o dono?

E não se fotografam com um pavor surdo, como se fosse crime usar essas marcas simbólicas.

Os turcos são muçulmanos, maronitas, cismáticos, judeus, e nestas religiões diversas não há gente mais cheia de abusões, de receios, de medos. Nas casas da Rua da Alfândega, Núncio e Senhor dos Passos, existem, sob o soalho, feitiçarias estranhas, e a tatuagem forra a pele dos homens como amuletos. Os maronitas pintam iniciais, corações; os cismáticos têm verdadeiros eikones primitivos nos peitos e nos braços; os outros trazem para o corpo pedaços de paramentos sagrados. É por exemplo muito comum turco com as mãos franjadas de azul, cinco franjas nas costas da mão, correspondendo aos cinco dedos. Essas cinco franjas são a simbolização das franjas da taleth , vestimenta dos Khasan, nas quais está entrançado a fio de ouro o grande nome de Ihaveh.

A outra camada é a mais numerosa, é toda a classe baixa do Rio - os vendedores ambulantes, os operários, os soldados, os criminosos, os rufiões, as meretrizes. Para marcar tanta gente a tatuagem tornou-se uma indústria com chefes, subchefes e praticantes.

Quase sempre as primeiras lições vieram das horas de inatividade na cadeia, na penitenciária e nos quartéis; mas eu contei só na Rua Barão de S. Félix, perto do Arsenal de Marinha, e nas ruelas da Saúde, cerca de trinta marcadores. Há pequenos de dez, doze anos, que saem de manhã para o trabalho, encontram os carregadores, os doceiros sentados nos portais.

- Quer marcar? perguntam; e tiram logo do bolso um vidro de tinta e três agulhas.

Muitos portugueses, cujos braços musculosos guardam coroas da sua terra e o seu nome por extenso, deixaram-se marcar porque não tinham que fazer.

- Que quer V.S.? O pequeno estava a arreliar. Marca, moço, marca! E tanto pediu que pôs pra aí os risquinhos.

Os pequenos, os outros marcadores ambulantes, têm um chefe, o Madruga, que só no mês de abril deste ano fez trezentas e dezenove marcações. Madruga é o exemplo da versatilidade e da significação miriônima da tatuagem. Tem estado na cadeia várias vezes por questões e barulhos, vive nas Ruas da Conceição e S. Jorge, tem amantes, compõe modinhas satíricas e é poeta. É dele este primor, que julga verso:

Venha quanto antes d. Elisa
Enquanto o Chico Passos não atiça
Fogo na cidade...

Homem tão interessante guarda no corpo a síntese dos emblemas das marcações - um Cristo no peito, uma cobra na perna, o signo de Salomão, as cinco chagas, a sereia, e no braço esquerdo o campo das próprias conquistas. Esse braço é o prolongamento ideográfico do seu monte de Vênus onde a quiromancia vê as batalhas do amor. Quando a mulher lhe desagrada e acaba com a chelpa, Madruga emprega leite de mulher e sal de azedas, fura de novo a pele, fica com o braço inchado, mas arranca de lá a cor do nome.

Enquanto andou a fornecer-me o seu profundo saber, Madruga teve três dessas senhoras - a Jandira, a Josefa e a Maria. A primeira a figurar debaixo de um coração foi a Jandira. Um belo dia a Jandira desaparecia, dando lugar à Josefa, que triunfava em cima, entre as chamas. Um mês depois a letra J sumira-se e um M dominava no meio do coração.

Os marcadores têm uma tabela especial, o preço fixo do trabalho. As cinco chagas custam 1$000, uma rosa 2$000, o signo de Salomão,o mais comum e o menos compreendido porque nem um só dos que interroguei o soube explicar, 3$000, as armas da Monarquia e da República 6$ a 8$, e há Cristos para todos os preços.

Os tatuadores têm várias maneiras de tatuar: por picadas, incisão, por queimadura subepidérmica. As conhecidas entre nós são incisivas nos negros que trouxeram a tradição da África e, principalmente, as por picadas que se fazem com três agulhas amarradas e embebidas em graxa, tinta, anil ou fuligem, pólvora, acompanhando o desenho prévio. O marcador trabalha como as senhoras bordam.

Lombroso diz que a religião, a imitação, o ócio, a vontade,o espírito de corpo ou de seita, as paixões nobres, as paixões eróticas e o atavismo são as causas mantenedoras dessa usança. Há uma outra - a sugestão do ambiente. Hoje toda a classe baixa da cidade é tatuada - tatuam-se marinheiros, e em alguns corpos há o romance imageográfico de inversões dramáticas; tatuam-se soldados, vagabundos, criminosos, barregãs, mas também portugueses chegados da aldeia com a pele sem mancha, que influência do meio obriga a incrustar no braço coroas do seu país.

Andei com o Madruga três longos meses pelos meios mais primitivos, entre os atrasados morais, e nesses atrasados a camada que trabalha braçalmente, os carroceiros, os carregadores, os filhos dos carroceiros deixaram-se tatuar porque era bonito, e são no fundo incapazes de ir parar na cadeia por qualquer crime. A outra, a perdida, a maior, o oceano malandragem e da prostituição é que me proporcionou o ensejo de estudar ao ar livre o que se pode estudar na abafada atmosfera das prisões. A tatuagem tem nesse meio a significação do amor, do desprezo, do amuleto, posse, do preservativo, das ideias patrióticas do indivíduo, da sua qualidade primordial.

Quase todos os rufiões e os rufistas do Rio têm na mão direita entre o polegar e o indicador, cinco sinais que significam as chagas. Não há nenhum que não acredite derrubar o adversário dando-lhe uma bofetada com a mão assim marcada. O marinheiro Joaquim tem um Senhor cruficificado no peito e uma cruz negra nas costas. Mandou fazer esse símbolo por esperteza. Quando sofre castigos, os guardiões sentem-se apavorados e sem coragem de sová-lo.

- Parece que estão dando em Jesus!

A sereia dá lábia, a cobra atração, o peixe significa ligeireza na água, a âncora e a estrela o homem do mar, as armas da República ou da Monarquia a sua compreensão política. Pelo número de coroas da Monarquia que eu vi, quase todo esse pessoal é monarquista.

Os lugares preferidos são as costas, as pernas, as coxas, os braços, as mãos. Nos braços estão em geral os nomes das amantes, frases inteiras, como por exemplo esta frase de um soldado de um regimento de cavalaria: viva o marechal de ferro!... desenhos sensuais, corações. O tronco é guardado para as coisas importantes, de saudade, de luxúria ou de religião. Hei de lembrar sempre o Madruga tatuando um funileiro, desejoso de lhe deixar uma estrela no peito.

- No peito não! cuspiu o mulato, no peito eu quero Nossa Senhora!

A sociedade, obedecendo à corrente das modernas ideias criminalistas, olha com desconfiança a tatuagem. O curioso é que - e esses estranhos problemas de psicologia talvez não sejam nunca explicados - o curioso é que os que se deixam tatuar por não terem mais que fazer, em geral, o elemento puro das aldeias portuguesas, o único quase incontaminável da baixa classe do Rio, mostram sem o menor receio os braços, enquanto os criminosos, os assassinos, os que já deixaram a ficha no gabinete de antropometria, fazem o possível para ocultá-los e escondem os desenhos do corpo como um crime. Por quê? Receio de que sejam sinais por onde se faça o seu reconhecimento? Isso com os da polícia talvez. Mas mesmo com pessoas, cujos intentos conhecem, o receio persiste, porque decerto eles consideram aquilo a marca de fogo da sociedade, de cuja tentação foram incapazes de fugir, levados pela inexorável fatalidade.

Há tatuagens religiosas, de amor, de nomes, de vingança, de desprezo, de profissão, de beleza, de raça, e tatuagens obscenas.

A vida no seu feroz egoísmo é o que mais nitidamente ideografa a tatuagem.

As meretrizes e os criminosos nesse meio de becos e de facadas têm indeléveis ideias de perversidade e de amor. Um corpo desses, nu, é um estudo social. As mulheres mandam marcar corações com o nome dos amantes, brigam, desmancham a tatuagem pelo processo do Madruga, e marcam o mesmo nome no pé, no calcanhar.

- Olha, não venhas com presepadas, meu macacuano. Tenho-te aqui, desgraça! E mostram ao malandro, batendo com o chinelo, o seu nome odiado.

É a maior das ofensas: nome no calcanhar, roçando a poeira, amassado por todo o peso da mulher...

Há ainda a vaidade imitativa. As barregãs das vielas baratas têm sempre um sinalzinho azul na face. É a pacholice , o grain de beauté, a gracinha, principalmente para as mulatas e as negras fulas que o consideram o seu maior atrativo. Quando envelhecem, as pobres mulheres mandam apagar os sinais - porque querem ir limpas para o outro mundo, e a Florinda, há pouco falecida, que rolara quarenta anos nos bordéis de S. Jorge e da Conceição, dizia-me antes de morrer:

- Ai, meu senhor, isto é para os homens! Quando se fica velho arranca-se, porque a terra não vê e Deus não perdoa.

Grande parte desses homens e dessas mulheres têm o delírio mais sensual, fazem os nomes queridos em partes melindrosas, marcam os membros delicados com punhais, lâmpadas e outros símbolos. Neste caso eu tenho o Antônio Doceiro, um lindo rapazito que foi bombeiro depois de ter rolado pelo mundo, e a Anita Pau. Ambos têm desenhos curiosos por todo o corpo, e a pobre Anita mostra no calcanhar por extenso o nome do pai seus filhos e traz em cada seio a inicial dos dois pequenos como numa oferenda - a sua única oferenda de mãe aos desgraçados perdidos...

Num meio de tão fraca ilusão, onde as miçangas substituem os pendentifs d'arte e a vida ruge entre o desejo e o crime, depois de muito os pobres entes marcados como uma cavalhada - a cavalhada da luxúria e do assassínio -, começa a gente a sentir uma concentrada emoção e a imaginar com inveja o prazer humano, o prazer carnal, que eles terão ao sentir um nome e uma figura debaixo da pele, inalteráveis e para todo o sempre.

Aquele pequeno impressionou-me de novo na sua profissão estranha. Indaguei:

- Quanto fizeste hoje?
- Hoje fiz doze mil réis.

E eu compreendi que afinal tatuador deve ser uma profissão muito mais interessante que a de amanuense de secretaria...

Orações

- Que está você a vender?
- Orações, sim senhor.
- Novas?
- Uma nova, sim - a oração dos nove.

Era num canto de rua, por uma tarde de chuva. O pobre garoto, muito magro, com o pescoço muito comprido, sobraçava o maço de orações, a sorrir.

- Mas, criatura, a oração dos nove foi desmoralizada!
- E agora é que se vende mais. Olhe, eu hoje vendi quatrocentos folhetos. Só de oração dos nove, trezentos e vinte cinco.

Eu acredito nos prodígios. É uma opinião individual mas definitiva. Se a oração dos nove, depois de assustar toda a cidade e de incomodar o arcebispo, ainda continuava com um tão grande número de crentes, era porque tinha prodigiosas virtudes. Comprei a oração e estuguei o passo. Que é afinal uma oração? É um levantamento da alma a Deus com o desejo de o servir e gozar, e S. João de Damasco já a definia um pedido de coisas convenientes, com medo de que os fiéis pedissem também inconveniências. Aquele menino magro, naquela esquina de rua, era um dos insignificantes agentes desse tremendo micróbio da alma.

Si I'on en croit les savants
Pour qui toute la Nature
N'est qu'un bouillon de culture
Mortel aux pauvres vivants.

Quantas orações andam por aí impressas em folhetinhos maus,vendidas nas grandes livrarias e nos alfarrabistas, exportadas para a província em grossos maços, ou simplesmente manuscritas, de mão em mão, amarradas ao pescoço dos mortais em forma de breve! Há nessa estranha literatura edições raras, exemplares únicos que se compram a peso de ouro; orações árabes dos negros muçulmins, cuja tradução não se vende nem por cinquenta mil réis; orações de pragas africanas, para dizer três vezes com um obi na boca; orações para todas as coisas possíveis e impossíveis. O homem é o animal que acredita - principalmente no absurdo. Levei muito tempo a colecionar essas súplicas bizarras. Há mais de mil: de S. Bento, de Santa Luzia, de Santa Helena, Monserrate, S. João Batista, Milagre de Jesus Cristo, Maria Eterna, Santa Bárbara, Menino Deus, Santa Catarina, Senhora do Socorro, Santa Teresa, S. Antônio, S. Jorge, Nossa Senhora da Guia, S. Marcos, S. Benedito, Santo Sepulcro, Nossa Senhora do Rosário, Magnificat, Anjo Custódio, S. Lourenço, S. Joaquim, S. Estevão, Bom Parto, Anunciação para defumar a casa, Santa Filomena, Conceição, S. Roque, S. Sebastião, S. Anastácio, S. Simão, Menino Deus contra o sol e o mar salgado, Maria Madalena, Dores, S. Pedro e S. Paulo, S. Emídio, S. Tiago pelos agonizantes, Sonhos de Nossa Senhora, Juízo Divinal, Perdão Eterno, Senhor dos Passos, S. Cosme e S. Damião, Nossa Senhora da Glória, que sei eu? Há até orações a santos que o Papa desconhece e nunca foram canonizados, como a oração de S. Gurmim, boa para a dor de calos, e a de S. Puiúna, infalível nas nevralgias. Os homens vivem no mistério das palavras conciliadoras.

Antes de nascer tem logo a oração do Bom Parto, em que se suplica à Virgem, apelando para o nascimento de Jesus, um bom sucesso. Toda a mulher que trouxer consigo esta oração no pescoço, rezando todos os dias 7 ave-marias, e uma salve-rainha, 7 dias antes de parir, terá sempre junto a seu leito a Virgem Santíssima do Bom Parto.

Acompanham-na a oração para a dentição e a de Nossa Senhora dos Remédios, logo depois de nascido. Quando já fala, decora a oração para ao deitar na cama: "Nesta cama me deito, desta cama me levanto, a Virgem Nossa Senhora me cubra com o seu manto. Se eu coberto com ele for não terei medo nem pavor, nem coisa que deste ou outro mundo for" e a oração para levantar da cama, que se pronuncia mesmo ao ruminar os mais horrendos delitos.

Depois começam os contratos extravagantes, as rezas covardes em que se lisonjeia os santos para obter deles altos favores e até clamorosas maldades. Têm a forma de padre-nossos, são às vezes assinadas por homenzinhos que as precedem de palavras contando o milagre do seu achado. Não há em todo esse baixo mundo de crença uma oração inteiramente altruística ou desfeita dos egoísmos terrenos. Só duas existem defendendo apenas a Igreja - a de S. Pedro e S. Paulo e a de S. Miguel, que por sinal começa neste violento estilo:

Ó arcanjo S. Miguel, meu poderoso protetor, a quem Deus onipotente encarregou a defesa geral de todos os homens, apesar de terem o Anjo da Guarda, e que sois capitão dos nove casos angélicos, cuja prerrogativa me animo a suplicar-vos que me perdoeis o atrevimento com que vos falo apontando-vos a relaxação, atrevimento, altivez e desenvoltura, falta de religião e vícios de que estão possuídos os corações cristãos...

As outras pedem pelo menos o céu, e estão neste caso modesto a do Rosário e a de São Benedito. Os autores, porém, prudentemente, numa nota à parte, comunicam aos crentes os bens de tais rezas:

Quem usar desta oração e rezar com viva fé, ao menos uma vez por semana, não será mordido por cão danado; se for à guerra não morrerá nem será vencido, não se afogará nem morrerá queimado, sua casa estará em paz, tudo lhe irá bem, os invejosos, os maus olhos, os mal intencionados, nem os que usam de maléficos e feitiçarias lhe farão dano algum.

E ainda por cima, se rezar umas ave-marias, terá indulgências.

As outras são verdadeiros requerimentos ou cartas de empenho.

O sujeito reza como vai ao ministro do Interior pedir um lugar de guarda-civil. A bajulação é quase idêntica. Diante do altar, a humanidade trata de viver da mesma maneira por que vive diante dos césares, dos senhores feudais ou do chefe de polícia.

Ó incomparável Senhora da Conceição Aparecida, mãe de meu Deus, Rainha dos Anjos, Advogada dos Pecadores. Refúgio e Consolação dos Aflitos e dos Atribulados ó Virgem Santíssima cheia de bondade, lançai sobre nós um olhar favorável.

E como um poeta sem emprego diante de um oligarca estadual:

Lembrai-vos, Clementíssima Mãe Aparecida, não constar de todos que a vós têm recorrido e implorado vossa singular proteção, fosse por vós algum abandonado. Animado por esta confiança, a vós recorro e vos tomo de hoje para sempre por minha mãe, minha protetora, minha consolação, meu guia...

Algumas, talvez duvidando do poder dos santos no ócio perpétuo do paraíso, vão diretamente a Deus, levando-os como simples advogados. Há, por exemplo, a oração de São Elesbão e Santa Efigênia reunidas não sei por quê. Pois bem. A oração começa assim:

Atendei, ó Deus onipotente, às nossas súplicas, e porque nos confessar réus de muitos pecados, permiti que sejamos absolvidos deles pelas intercessões dos gloriosos mártires S. Elesbão e Santa Efigênia e que o precioso sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo fiquemos lavado e relavado das nossas culpas; limpo e puro mais do que quando nascemos.

Esta petição é um modelo de lisonjearia, de adulação, de humildade postiça, de engrossamento ao velho potentado de todos os tempos, infinitamente multiplicado nesta democrática época de potentados! É o suprassumo do rés-do-chão, é a flor perfeita da maneira de pedir!

Não são, entretanto, Santa Efigênia e São Elesbão os únicos atirados ao secundário papel de advogados, S. Jerônimo, advogado contra os tremores subterrâneos, também o é, tendo como compensação um hino.

Jerônimo santo, máximo penitente,
Rogai por nós a Deus eficazmente.
Jerônimo santo, sábio e forte,
Assiste-nos agora e na hora da morte.

E S. Simão, que livra do raio, não faz outra coisa senão pedir a Deus que fulmine apenas os pararraios, e Santa Bárbara, coitada, logo que começa a trovejar tem que pedir a Deus menos barulho para não ouvir este hino fantástico:

Salve, virgem gloriosa
E Bárbara generosa
Do paraíso fresca rosa
Lírio de castidade
Salve ó virgem toda formosa
Lavada na fonte da castidade.

Mas as orações são antes de tudo um meio de remediar o mal. Que faz a oração de São Luís Gonzaga, praticada pelas meninas do Rio desde o tempo em que a Rua Teófilo Otoni era musicalmente a Rua das Violas? Remedeia os males de amor. Quando uma rapariga cai de joelhos e soluça:

Ó Luis santo, adorado de angélicos costumes, eu, indigníssima devota vossa, vos recomendo singularmente a castidade da minha alma e do meu corpo. Rogo por vossa angélica pureza que intercedais por mim ante o cordeiro imaculado Cristo Jesus e sua mãe Santíssima Virgem e que me preserveis de todo o passado grave, não permitindo que eu saia manchada com alguma nódoa de impureza...

Podeis ter a certeza, ó mortais, que a tentação anda no coração da donzela de tal forma que S. Luís, apesar de angélico e de santo, chegará fatalmente tarde para a salvar. E assim uma velha senhora solteira que recitar convictamente a oração de S. Lourenço:

Onipotente Deus, que ao Vosso bem-aventurado mártir S. Lourenço destes esforço para triunfar dos incêndios e dos seus tormentos, concedei que se extinga em nós o fogo...

Ah! Deus de bondade! esta pobre senhora, assim velha e assim solteira, está muito mal!

S. Luis e S. Lourenço, entretanto, gozam da relativa liberdade de vir quando querem. Santo Onofre porém, pequeno e barbadinho, vive estrangulado no cós das saias das senhoras para ouvir todas as manhãs esta suprema ironia súplice:

Meu glorioso Santo Onofre bispo, confessor de meu senhor Jesus Cristo, em Roma fostes aos pés do padre santo vos ajoelhar, pedistes pão para as solteiras, pão para as casadas, pão para as viúvas, pão para as donzelas. Pedi para mim também que sou sua inquilina. Meu glorioso Santo Onofre, vos peço que me deis comida para comer, roupa para vestir, dinheiro para gastar e graça para vos servir. Amém!

E Santo Onofre não protesta, não grita, não foge, como S. Silvestre, educado na humildade evangélica, tolera este lamentável pedido:

Valha-me o senhor S. Silvestre, pelas três camisas que veste, no ano de trinta e sete, matastes e feristes e abrandastes os corações dos mouros, as bocas das serpentes. Assim eu abrandarei o coração dos meus inimigos que venham ajoelhar-se aos meus pés, porque Deus que é Deus pode e acaba com tudo que quer, traga teu coração debaixo de teu pé esquerdo...

Que diz o venerável Santo a esse coração sem concordância pronominal metido miseravelmente debaixo de um pé? Talvez nem saiba a mísera crendice, e ande lá por cima no azul, esquecido da maldade humana...As almas, apesar de benditas, porém, já por aqui andaram, já sentiram o amor, o ciúme e o medo, e a oração que as incensa é também velhaca e cheia de sandices:

Minhas almas santas benditas, aquelas que são do mesmo senhor Jesus Cristo, por aquelas que morreram enforcadas, por aquelas três almas que morreram degoladas, por aquelas três almas que morreram a ferro frio, juntas todas três, todas seis a todas nove, para darem três pancadas no coração dos inimigos, que eles ficarão humildes a mim debaixo de paz e consolação, a ponto de terem olhos e não me ver, pernas e não me alcançarem, braços e não me agarrarem - para sempre e sem fim.

Os homens, à solta, no recato das alcovas deliram calmamente. Há gente que antes de sair reza a oração de S. Jorge, para não ser ofendida pelos seus inimigos, e a de Santa Catarina para alcançar o perdão dos pecados; há senhoras que aspergem os cantos da casa com água benta, dizendo a oração da bênção das casas, que consta de 382 palavras, e a oração de Santo Anastácio contra os demônios; há seres pensantes que trazem ao pescoço a oração de S. Roberto contra os feitiços, oração que, segundo o editor, estava junto a uma "milagrosa carta, achada em um lugar três léguas distante de S. Marcos, escrita com letras de ouro e pela mão de Deus Nosso Senhor, Filho da Virgem Maria"!

É pois natural que as almas não se ofendam com um mau pedido e que S. Marcos - pobre santo! sorria quando ouvia à meia-noite esta tremenda oração brava, que lembra as cenas de enfeitiçamento medievo:

Chamo S. Marcos e S. Manços e seu confidente o anjo mau em meu auxílio para se apoderar do meu espírito e vida, juntamente com a pessoa que desejo fazer o mal, ou bem e com o dedo polegar da mão esquerda faço três vezes o Sinal da Cruz e com uma faca de ponta espetada na porta da rua ou mesa, com um lenço ou guardanapo bem alvo direi as seguintes palavras: Cristo morreu, Cristo sofreu, Cristo padeceu: assim peço-vos meu glorioso São Marcos e São Manços que sofra e padeça os maiores tormentos e torturas deste mundo a pessoa que eu quero para mim e pegando na faca com toda a fé e coragem que me dá esta Oração darei quatro golpes na porta, ou mesa e pela quarta vez chamarei São Marcos e São Manços e o anjo mau, para me dar força e coragem de dizer: "Credo em Cruz" em círculo onde se acha a faca! Amém."

Oh! o poder da palavra pronunciada misteriosamente! Os homens de todos os países, de todas as terras têm-lhe um terror sagrado. Essas orações ainda guardam um sentido mais ou menos claro. A maior parte porém é apenas um estranho jogo de disparates, uma trapalhada alucinante. Há uma oração contra o sol, que ao lê-la sente a gente a vertigem do desequilíbrio:

Deus quando pelo mundo andou muito sol e calor apanhou, encontrou com Nossa Senhora com que o sol se tiraria com um guardanapo de olhos e copo d'água fria. Sim, como falo verdade torna o sol a seu lugar, vai esta senhora pelo mar abaixo com o copinho de água fria, o mal que ela tem no corpo e na cabeça tire de Deus e da Virgem Maria.

É exatamente a maneira rítmica, o disparate deduzido dos literatos do Hospício e até hoje, se eu percebi que tais palavras são contra o calor, não me foi possível ainda saber o que quer dizer esta formidável oração do mar sagrado:

Mar sagrado, eu te venho salvar, a tua água te venho pedir para fortuna por Deus para minha casa levar; para que me dê ouro para guardar e prata para gastar, cobre para dar aos pobres.

Como exemplo de estilo desvairado há, entretanto, outras quase tão lindas como as poesias nefelibatas, pela sua dolorosa e obtusa ingenuidade. Está neste caso "O Perdão Eterno."

S. José que caminhava com a Virgem Maria
Tanto caminha de noite como de dia
Abre a porta porteiro
Que aqui está a Virgem Maria
Não quis parir na cama
Nem na cortina.
Pariu na manjedoura
Onde o bento boi comia.
Desceram os anjos dos céus, cantando Ave Maria
Subiu para o céu rezando Santa Maria.
O eterno lhe perguntou, como ficou a parida?
Ficou coberto de ouro o seu bento filho
E o berço em que ele embalava era de ouro e latão
Aqui se acaba esta santa oração.
Quem esta oração rezar 7 sexta-feira, da paixão,
E outras tantas carnais,
Tem cem anos de perdão,
Se for seu pai, sua mãe, mais toda a sua geração.

Há na Ilíada um trecho muito citado e rico de verdades. Homero fala das orações e diz "As orações são filhas do grande Zeus, filho de Cronos. Capengas, zarolhas, feiarronas ocupam-se em seguir a fatalidade. A fatalidade é robusta e ágil. Vai muito adiante fazendo aos homens um mal que as orações remedeiam." É destino do homem rezar, pedir o auxílio do desconhecido para o bem e para o mal, é sina deste pobre animal, mais carregado de trabalhos que qualquer outro bicho da terra ou do mar, ter medo e desconfiar das próprias forças. A fatalidade o vai conduzindo por caminhos que são despenhadeiros às vezes e campos de risos raramente. O homem chora, ergue os olhos para o azul do céu, a menor das suas ilusões povoa-o de forças invisíveis e fala, e pede, e suplica. Que importa que diga tolices ou frases lapidares, horrores ou pensamentos suaves? É preciso remediar a fatalidade.

E é por isso que enquanto existir na terra um farrapo de humanidade, esse farrapo será um moinho de orações.

É por isso, talvez, que os vendedores de orações acabam mais ou menos supersticiosos dessa superstição teimosa que acredita apesar de tudo; é por isso que um pobrezinho vendedor dessas fantasias do pavor ignorante não sai de casa sem recitar à estrela dos pastores estas precavidas frases:

Desta casa me aparto em boa paz boa viagem. Deus adiante, a bela cruz atrás eu no meio, altos e montes para mim sejam. Oremos bocas de cães e lobos  sejam fechadas, tenham olhos e não me vejam, tenham pernas e não me sigam tenham boca e não me falem, tenham braços e não me peguem, tão guardado me vejam como a Virgem Maria guardou o seu amado filho desde as portas de Belém até Jerusalém. - Amén...

Publicado em 31 de dezembro de 2005

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.