Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

O Século da Mulher

Texto preparado pelo Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (Cedim) para a exposição "O Século da Mulher"

Introdução

O Conselho Estadual dos Direitos da Mulher quer desvelar, nesta exposição, a trajetória da mulher brasileira no século XX. Um século da longa gestação da mulher, que não nasce feita, mas se constrói a cada dia, a cada escolha, a cada ação. Uma reflexão sobre o ser tutelado que se rebela contra a dominação secular. A construção da mulher liberta, ousada, que infringe regras, alavanca transformações e elege seus próprios valores. Algumas são aqui nomeadas. Na generosa contribuição de cada uma, reverencia-se a formidável participação de todas. É uma história de lutas e resistência. No áspero cipoal de leis, convenções e preconceitos que escalavram a condição feminina, a brasileira reage e se levanta, ergue sua voz, mostra sua capacidade, representa a si mesma. Na lenta conquista de seus direitos, nada é conseguido sem o preço de altos sacrifícios Vencendo todas as resistências, em movimentos organizados ou ações isoladas, alcançam avanços espetaculares e se inscreve, na constituição e nas leis, o texto de cada vitória. Livre, enfim, da asfixiante tutela patriarcal, dona de seus plenos direitos políticos, e mais que isso, de seu direito à liberdade, à vida e ao trabalho, assume seu desempenho social. No entanto, entramos no século XXI com uma grande distância entre a edição das conquistas e sua prática concreta. O ranço obscurantista e a falta de empenho de diversos setores da sociedade continuam a exigir uma constante mobilização.

A trajetória continua. Por onde andou o coração libertário da pioneira do passado, a mulher brasileira seguirá pavimentando um Brasil mais justo, solidário e igualitário.

A Gestação da Cidadania

Ao som da música de Chiquinha Gonzaga o século se inicia. "Ôi abre alas, que eu quero passar." E a brasileira vai passando. Empurrando. Arrombando portas. As baianas Tias Ciata, Veridiana a Preseiliana fundam os primeiros blocos e ranchos carnavalescos do Rio, mascarando os cultos de candomblé, então proibidos. As paulistas invadem as fábricas e, em 1901, são quase 50% do operariado das indústrias têxteis. No Rio, prostitutas de origem judia fundam a Associação Beneficente Funerária Religiosa Israelita, que administram durante 80 anos. A advogada fluminense Mirtes de Campos luta e entra para a OAB, em 1906. As operárias paulistas fazem greve a garantem, em 1907, a redução da jornada de trabalho de 13 para 9 horas. A poetisa Gilka Machado e outras fundam o Partido Republicano Feminino, em 1910. A caricaturista Nair de Tefé, primeira-dama, abre o Palácio do Catete a saraus de música popular brasileira. Um escândalo! Nhanhã do Couto funda a primeira orquestra feminina de Goiás em 1914. Em 17, Leolinda Daltro comanda, no Rio, uma passeata de noventa mulheres, em defesa da completa cidadania feminina. Maria José de Castro Rebelo Mendes é a primeira mulher a entrar para o Itamarati, em 1918. Em 1921, é realizado em São Paulo o primeiro jogo de futebol entre duas equipes femininas. As pintoras modernistas Tarsila do Amaral a Anita Malfati agitam 1922. Mãe Menininha assume o terreiro mais famoso da Bahia. Anésia Pinheiro Machado pilota um avião em voo transcontinental. Bertha Lutz lidera a criação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, que passa a conduzir a Iuta sufragista no país, e organiza o I Congresso Nacional Feminista. A mineira Maria Lacerda de Moura defende o amor plural e livre no livro "A mulher degenerada", de 1924. Escândalo absoluto! Bertha Lutz e Carmen Portinho lançam panfletos de um monomotor, sobre Natal,(RN), em 1927, em campanha pelo voto feminino. Em 1928, a potiguar Celina Guimarães Viana torna-se a primeira eleitora brasileira e Alzira Soriano, a primeira prefeita do Brasil, em 28, em Lages,(RN). 0 Comitê das Mulheres Trabalhadoras se instala, com a costureira Maria Lopes na direção. Em 1930, Rachel de Queiroz estreia com "0 Quinze", a Cleo de Verberena constrói um estúdio e dirige um filme. 0 país canta com Carmen Miranda: "Taí".E as Brasileiras afirmam: Tamos aí!

Conquistando a Cidadania

Avançávamos, embora a passos lentos. Pressionado pelas lutas pioneiras da década anterior, o governo inclui o voto da mulher no Código Eleitoral de 1932. Mas... as casadas ainda precisavam do consentimento do marido a as solteiras e viúvas, de comprovante de renda. Para a Assembleia Constituinte de 34, elegemos a primeira deputada federal de toda a América Latina, Carlota Pereira de Queirós. A eleição de Artonieta de Barros para a Assembleia Estadual de Santa Catarina foi uma conquista importante das mulheres negras, discriminadas como as índias. A Constituição amplia o direito de voto feminino a proíbe remunerações diferentes entre os sexos para o mesmo trabalho. Em 32, Cecília Meireles, Armanda Álvaro Alberto a Noemi da Silveira assinam 0 Manifesto pela Escola Nova. No ano seguinte, Pagu publica "Parque industrial", romance proletário, urbano a feminista. Tarsila do Amaral pinta "Operários" e "Segunda classe", aderindo à temática social. Brilham as "cantoras do rádio". 0 Brasil entra na II Guerra Mundial. Setenta a três enfermeiras são habilitadas. Quando os primeiros soldados brasileiros chegam a Nápoles, Itália, elas já estão à espera, sob o comando de Olímpia de Araújo Camerino. Em 43, a Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, inclui um capítulo sobre a proteção do trabalho da mulher. Proteção ambígua, baseada no pressuposto de nossa fragilidade. Em 44, é fundado o Teatro Experimental do Negro, revelando atrizes como Ruth de Sousa, Léa Garcia e Marina Gonçalves. Clarice Lispector lança seu primeiro livro, "Perto do coração selvagem", um mergulho na psicologia feminina. Carmen Santos interpreta e dirige o filme "Inconfidência mineira"; Gilda de Abreu firma-se como cineasta com "0 ébrio", "Pinguinho de gente" e "Coração materno", de enorme aceitação popular. Luiza Barreto Leite Iuta contra o exame ginecológico obrigatório das atrizes. A psiquiatra Nise da Silveira funda o Museu de Imagens do Inconsciente. A mobilização social feminina se diversifica: em 53, a Passeata das Panelas Vazias; em 55, o ingresso nas Ligas Camponesas. 1960 chega com Maria Esther Bueno, considerada a maior atleta do mundo da temporada. A caminhada se acelera.

Reinventando o Feminino

As conquistas não podem parar. Com o Estatuto Civil da Mulher Casada, de 62, a mulher finalmente não precisa mais da autorização do marido para trabalhar. A neta de escravos Carolina Maria de Jesus lança "Quarto de despejo", um diário de seu cotidiano na favela. Nara Leão alavanca a Bossa Nova e o Brasil produz uma roqueira original a desaforada, Rita Lee. Surgem Clementina de Jesus e Maria Betânia, em 65. Duas guerreiras da música. Mas o endurecimento do regime militar leva muitas mulheres à luta armada - e muitas sofrem torturas, são assassinadas ou impelidas ao exílio. São os anos de chumbo. A mineira Janete Clair, que já escrevera 40 radionovelas, torna-se a grande autora de telenovelas do país, a partir de 73, com "Selva de pedra". Em 75, é criado o Movimento Feminino pela Anistia e uma nova onda feminista toma conta do país, com jornais combativos: "Brasil Mulher"," Nós Mulheres", "Mulherio" e outros. Em 1980, em São Paulo, organiza-se o primeiro SOS Mulher, de combate à violência contra a mulher. Implantam-se Delegacias Especializadas no Atendimento às Mulheres Vitimas da Violência em vários estados. Hoje, há mais de 300 DEAMs. No Rìo, Marli Soares, negra a favelada, torna-se conhecida como Marli Coragem, ao denunciar as ações criminosas do aparato policial-militar responsável pelo assassinato de seu irmão. Em São Paulo e Minas Gerais são criados os Conselhos Estaduais da Condição Feminina. Outros estados seguem o exemplo e, em 85, a pressão das feministas leva o governo federal a criar o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher-CNDM. 0 Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Rio de Janeiro, o CEDIM, é fundado em 1987. 0 CNDM lança a campanha "Constituinte prá valer tem que ter palavra de mulher". 0 chamado "lobby do baton" obtém conquistas importantes. Na década de 80, o I Encontro Nacional de Mulheres Negras, em Valença(RJ), mobiliza 440 representantes de 19 estados. No Rio, em 82, a favelada Benedita da Silva é eleita vereadora; em 94, torna-se a primeira senadora negra do Brasil. A paraibana Luiza Erundina é eleita prefeita de São Paulo, em 89. Os paulistanos elegem outra mulher, Marta Suplicy, em 2000. 0 Maranhão, em 94, elege a primeira governadora do país, Roseana Sarney, reeleita em 98. No Rio, a juíza Denise Frossard enfrenta a máfia do crime organizado e põe na cadeia a intocável cúpula do jogo do bicho. No ano do centenário,1996, a Academia Brasileira de Letras que só admitira a primeira mulher - Raquel de Queirós - em 1977, elege a escritora Nélida Piñon para a presidência. Em 99, a atriz Fernanda Montenegro é a primeira brasileira a concorrer ao Oscar. Em 2000, o Supremo Tribunal Federal ganha sua primeira ministra, Ellen Gracie Northfleet. Foi um formidável percurso. E mesmo com tantos direitos arduamente conquistados a muitos ainda recusados pelo ranço patriarcalista, ainda precisamos lutar. E seguiremos empurrando, arrombando portas, saltando obstáculos, construindo um país mais justo a generoso.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.