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Psicologia social na escola: relato de uma experiência

Priscilla Maia Rangel

Psicóloga, Mestre em Psicologia Social, aluna do Curso de Especialização em Psicopedagogia da UERJ

Este artigo relata uma experiência de atuação psicológica numa escola particular do município do Rio de Janeiro, ao longo de quatro anos letivos, em que a Psicologia Social foi utilizada como referencial teórico básico. Tem por objetivo discutir as transformações suscitadas naquele ambiente, partindo dos valores, das condições, vontades e projetos dos sujeitos ali presentes, bem como da análise do campo de forças estabelecido.

A prática profissional do psicólogo social tem por intenção e finalidade a transformação e consequente recriação do sentido dos registros de mundo dos sujeitos e grupos implicados. A partir de então, concorre para o restabelecimento de projetos de vida e de ações cotidianas (Bock, 2002).

A expectativa sobre a atuação do psicólogo na referida escola teve tanto o caráter de urgência quanto o de desconfiança. O ingresso na escola se deu no mês de agosto, num ano em que duas psicólogas já haviam sido contratadas e demitidas por impossibilidade de adaptação. Enquanto os problemas se avolumavam, crescia também a descrença num trabalho psicológico com resultados favoráveis.

Diante de tal quadro, uma pergunta se fez necessária: qual é o papel do psicólogo numa escola? Zanella (1998) entende que as ações do psicólogo no espaço escolar devem contribuir para a construção de novos contextos. Já Guzzo (1996) acredita que não há, na formação curricular do psicólogo brasileiro, modelos para a atuação profissional e padrões éticos e profissionais difundidos e conhecidos pela comunidade. Considera a Psicologia distante dos reais problemas institucionais e o psicólogo aquele que trabalha isolado e tem poucas chances de produzir mudanças efetivas no conjunto e na dinâmica desse contexto. Novaes (1996) considera que o psicólogo escolar precisa ter condições de analisar as situações socioeducativas, articulá-las e conjugá-las, utilizando modelos de inteligibilidade das práticas educativas que distingam olhares centrados no indivíduo, nas interações grupais e naquelas institucionais, ligadas a aspectos referenciais diversos como o psicológico, o sociológico, o antropológico, o histórico, o filosófico e demais (p.128).

Certamente, qualquer profissional que se utiliza de referencial clínico e escolhe trabalhar isolado tem graves obstáculos em desenvolver um trabalho cuja finalidade seja transformar contextos. A Psicologia Social mostra-se como referencial válido para as situações socioeducativas, uma vez que tem por objetivo contemplar a simultaneidade das esferas social macroscópica e do universo individual.

Fez-se necessário a utilização de uma estratégia que incluiu um plano de atuação imediata e dois níveis de observação psicossociológicos. Um em busca de compreensão dos valores da escola, da sua história e sua mentalidade, dos valores e perspectivas dos profissionais e das famílias dos alunos. O outro em busca de compreensão da dinâmica das forças atuantes nas turmas, na equipe profissional e em toda a comunidade escolar.

O chamado plano de ação imediata consistiu em 'apagar os incêndios', dar conta das demandas mais urgentes enquanto, paralelamente, houve busca de compreensão da realidade escolar, tanto em sua história quanto em sua dinâmica atual. 'Apagar os incêndios' significou atuar em situações muito diversas, como, por exemplo, junto às crianças e suas mães que choravam no período de adaptação, ao rótulo de "impossível" dado a um menino da Educação Infantil, ao aluno da classe de alfabetização que não se concentrava, aos "indisciplinados" da primeira série que a professora dizia não dar conta, à dificuldade de adaptação de uma professora nova, às questões de sexualidade que urgiam em algumas turmas e a outras inúmeras demandas urgentes conhecidas somadas às demandas reprimidas que, naquele espaço escolar, cabiam ao profissional de Psicologia.

Mas havia todo um sistema de valores que precisava ser conhecido e compreendido para que as demandas urgentes pudessem ser encaminhadas. E em meio a esse sistema de valores, um campo de forças atuando. Se aparentemente o grupo de profissionais da escola era muito coeso, a observação e a análise das forças ali presentes possibilitaram o mapeamento de um campo de funcionamento grupal com dificuldades que levavam a graves retrocessos. E qualquer intervenção efetiva alteraria a dinâmica de forças daquele campo e também poderia ferir valores muito arraigados.

Partindo do princípio de que é impossível resolver problemas sem suscitar mudanças, foi necessário estabelecer uma integração bastante efetiva na comunidade escolar de modo que as ações psicológicas fizessem sentido para o grupo e que algumas necessidades pudessem ser percebidas e algumas mudanças, negociadas.

Tal integração materializou-se por meio de encontros sistemáticos com cada professora interessada em discutir problemas de sala de aula. Nesses momentos, os problemas eram apresentados e percebia-se claramente a expectativa de que o psicólogo lhes apresentasse um modo de resolver rapidamente tais problemas. Num primeiro momento, em função do estabelecimento de vínculos e parcerias, as 'dicas' eram dadas, mas sempre seguidas de reflexões sobre os problemas trazidos. Por exemplo, por que um menino saudável, participativo, atento, morador de apartamento, com um irmão recém-nascido e que só tem o espaço escolar para brincar é chamado de 'impossível'? Será que havia algo de anormal com ele? Ou será que estavam esperando um menino apático e dócil? O encaminhamento a esta questão se deu no sentido de pensarmos em como lidar em classe com uma criança que tem demanda por espaço livre para brincar, que atividades poderiam ser desenvolvidas nesta turma pela professora e que integração poderia haver com outros professores que atuavam no grupo. Algo inicialmente percebido como problema, teve seu encaminhamento de tal modo que deixou de ser entendido como problema do aluno e passou a ser entendido como necessidade que poderia ser satisfeita com os recursos existentes na escola.

No caso das mães que choravam na adaptação dos filhos pequenos, algum tempo foi necessário para encaminhar o processo. Era dito que havia uma ordem superior de que as mães não podiam ficar próximas aos filhos em adaptação, caso contrário eles nunca se adaptariam. Então, as mães ficavam dentro da escola, vendo de longe seus filhos, mas não podiam se aproximar. E a regra não podia ser quebrada. Com o tempo, foi possível repensar e redimensionar tal dinâmica. Na verdade não havia ordens expressas para nada daquilo, mas os processos de comunicação muitas vezes tinham ruídos que descaracterizavam totalmente a mensagem. A integração das falas possibilitou o redimensionamento da dinâmica da adaptação na Educação Infantil, com a preciosa colaboração das professoras, que todo ano adaptam crianças à escola.

No caso do aluno da classe de alfabetização que não se concentrava, essa era apenas uma pequena fração da problemática dessa série. Queixas da professora aos alunos eram frequentes, como também o temor de que eles não fossem aprender o código da leitura e escrita naquele ano. Os problemas eram atribuídos às crianças, aos pais, às séries anteriores, à falta de professora auxiliar. Mas todo ano, na mesma época, as mesmas queixas eram trazidas, independente do grupo de alunos e das condições de trabalho. A parceria com a professora possibilitou o questionamento do que era alfabetizar e do que isso significava para ela. Ficou nítido que a natureza do trabalho gerava angústia na professora. Ao mesmo tempo que lhe rendia 'status', era um empreendimento de risco. Por mais que a direção da escola tentasse desconstruir o mito de que a alfabetização se dá apenas na classe de alfabetização, ainda havia intensas expectativas quanto ao desempenho das crianças que "agora estão estudando pra valer". Esse assunto passou a fazer parte da pauta de reuniões em que era possível pensar junto com a professora modos de lidar com a condição de sua classe.

A construção das parcerias foi lenta e difícil. Pensar junto diferia do contexto tão comum em Educação, em que uns pensam o que outros vão executar. É uma subversão que foi cuidadosamente negociada e lentamente percebida pelas instâncias superiores como não ameaçadora.

Quanto aos 'indisciplinados' da primeira série, pouco pode ser feito. Todo ano a primeira série era indisciplinada e estava a cargo da professora mais vulnerável da escola. Esta série era uma prova de fogo para testar as professoras novas na casa ou para castigar alguma professora antiga. Se uma série vista como difícil e trabalhosa ficasse a cargo das professoras mais experientes, seus problemas seriam minimizados, mas não era isso o que acontecia. E não foi possível refletir sobre isso junto às instâncias superiores. Foi possível apenas estabelecer parcerias para ajudar as professoras a lidarem com as dificuldades inerentes à série.

Os problemas de adaptação de uma professora nova foram pensados a partir do que ela trazia da escola em que havia trabalhado por muitos anos e que era o seu ideal de escola. O processo de aculturação à nova realidade foi sofrido e nunca se deu por completo. A parceria se formou no sentido de compartilhar os sentimentos decorrentes das condições enfrentadas e encontrar novos sentidos para o presente.

As questões de sexualidade, que urgiam em algumas turmas, foram tratadas a partir de uma aproximação do grupo alvo, para compreensão de sua dinâmica e de suas necessidades. Somente a partir de um trabalho de pesquisa, as ações passaram a ser implementadas. Tais ações sempre foram construídas em resposta ao identificado nas pesquisas. As demandas de um grupo respondem a seu contexto, sua história, seus temas e não era possível transpor a solução de um grupo para outro. O que se buscou fazer foi desenvolver um modelo de investigação para a compreensão das queixas.

Com o tempo e o olhar de pesquisador, foi possível traçar perfis dos problemas mais frequentes e identificá-los precocemente. As urgências foram diminuindo progressivamente, porque os problemas passaram a ser identificados antes de se tornarem urgências. A parceria constante com as professoras e com as demais instâncias da escola possibilitaram integração de falas e de objetivos. A tarefa do psicólogo na escola pode assemelhar-se a do deus grego Hermes, que transita entre Céus e Terra em prol da comunicação. No caso do psicólogo, isso se dá por intermédio da integração das falas e das práticas para o estabelecimento de novos modos de compreender e, consequentemente, para o estabelecimento de novas ações cotidianas.

Tal integração era frequentemente comentada por membros da equipe como uma forma psicológica de atuar nunca antes vista em ambientes educacionais. Isso porque as pesquisas que precediam às ações psicológicas sempre contavam com a escuta dos diversos segmentos ligados à problemática investigada. Desse modo, as diferentes percepções de um mesmo problema eram conhecidas pelo psicólogo, que trabalhava de modo a provocar reflexões sobre verdades estabelecidas e buscar criar condições para novas formas de ver e novos sentidos.

Referências Bibliográficas:

- BOCK, Ana M. Bahia (Org.) Psicologia Sócio-Histórica: uma perspectiva crítica em psicologia - 2 ed. - São Paulo: Editora Cortez, 2002;
- GUZZO, Raquel Souza Lobo. Formando Psicólogos Escolares no Brasil: dificuldades e perspectivas. In: WECHSLER, Solange Múglia (Org.) Psicologia Escolar: pesquisa, formação e prática. Campinas: Editora Alínea, 1996;
- MOSCOVICI, Fela. Desenvolvimento Interpessoal: treinamento em grupo. - 8 ed. - Rio de Janeiro: José Olympio, 1998;
- NOVAES, Maria Helena. Perspectivas Para o Futuro da Psicologia Escolar. In: WECHSLER, Solange Múglia (Org.) Psicologia Escolar: pesquisa, formação e prática. Campinas: Editora Alínea, 1996;
- ZANELLA, Andréa Vieira. Psicologia Social e Escola. In: STREY, Marlene Neves et al. Psicologia Social Contemporânea: livro-texto. Petrópolis: Vozes, 1998.

Publicado em 09/08/2005

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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